NÓS “TAMO” É LASCADO!

No chamado “Sul Maravilha”, que é como alguns identificam o Brasil, da Bahia para baixo, há um perceptível preconceito — às vezes, subliminar; às vezes, bem explícito — contra os que ficam na parte de cima do mapa, sobretudo, os nordestinos. Certa vez, conversando com alguém que me fizera uma referência depreciativa em relação aos irmãos do Nordeste, eu reagi:

— Engraçado, por que será que vocês não manifestam o mesmo tipo de intolerância contra os brasileiros do Norte e os do Centro-Oeste?

A resposta veio “na ponta da língua”, como se diz:

— Porque no Norte, só tem selva. E no Centro-Oeste, só tem boi e pantanal...

Ou seja, o meu interlocutor, além de preconceituoso, também era totalmente desinformado, ignorante das coisas do Brasil. Cheguei a pensar em responder, mas desisti e preferi deixar que o boçal morresse pensando que o mundo começava e terminava na terra dele, que era o não menos glorioso Estado de São Paulo.

De outra feita, estava eu posto em frente a uma carrocinha de batatas fritas, quando o dono do “estabelecimento”, coincidentemente, oriundo de Sampa, fez-me ouvir — enquanto eu esperava, com paciência, que as batatas ficassem prontas — uma série de impropérios contra “esses paraíba”, que era como ele se referia aos nordestinos em geral, fossem maranhenses, piauienses, cearenses, pernambucanos ou, até mesmo, paraibanos. E me dizia, com aquele sotaque típico dos paulistas:

— O que estraga “Sampaulo”, meu, é esses paraíba que vem lá de cima, “caquele” jeito deles, e bagunça tuda cidade... Os cara só qué sabê de forró e sanfona...

E por aí foi, a “louvar” os nordestinos que, aos milhares, efetivamente, aportam em São Paulo, dia após dia, com a esperança de uma vida mais digna e confortável, para si e para a sua família. O que, na esmagadora maioria dos casos não acontece mesmo, razão pela qual muitos ficam na maior penúria, tentando voltar à terra de origem, por vezes, depois de anos e anos de frustração.

Eu já havia até feito o pagamento pelas minhas batatas, mas quando ele me entregou a caixinha de isopor com elas, antes de sair, eu não resisti em lhe dar a resposta, em defesa dos meus ancestrais:

— Os eleitores paulistas elegeram Ademar de Barros (o político do “roubo, mas faço”), Paulo Maluf (o político do “estupra, mas não mata”), Paulo Pitta (o político do “roubo, mas nego”), Marta Suplicy (a política do “relaxa e goza”)... E vocês ainda acham que o que estraga São Paulo são os nordestinos?

Ele ficou calado e eu saí comendo uma batatinha, que, por sinal, estava deliciosa! Mas aquilo me fez pensar no quanto, apesar dessa xenofobia de alguns, aquele Estado e, sobretudo, aquela capital devem à mão de obra nordestina. Na construção civil, só para não expandir muito estas considerações, alguém já prestou atenção em como esses “paraíbas” trabalham?

Os caras dormem no barracão da própria obra, acordam de madrugada e, quando o dia clareia, já estão trabalhando. E, não raras vezes, dependendo do que estejam fazendo, trabalham até o dia escurecer. Quando, então, vão tomar um banho, preparar a sua própria comida e dormir numa rede, para começar tudo outra vez, no dia seguinte.

Contam, até, que um Sheik desses multimilionários, vindo ao Brasil e estando hospedado num hotel de super luxo, por alguns dias, observava da janela da sua suíte uma dessas obras em andamento, nas proximidades. E se admirava, cada vez mais, com a disposição e capacidade para o trabalho de alguns daqueles homens, coisa que ele nunca vira igual. E assim, aos poucos, foi-se formando uma idéia na sua cabeça. Como estava prestes a iniciar a construção de um novo palácio num oásis de sua propriedade, imaginou que, se levasse uns dois daqueles homens para trabalhar na obra, talvez eles pudessem puxar esse ritmo para os trabalhadores de lá, que, com certeza, não tinham tanta disposição quanto aqueles brasileiros.

Dito e feito. Chamou um dos seus assessores que falava razoavelmente o Português e lhe disse que fosse até a obra e escolhesse dois para a missão. Salário de 4.000 dólares por mês, além da alimentação, transporte e alojamento por conta. O homem de sua confiança foi até a obra, no final de um dia, reuniu os peões que estavam ainda preparando o seu modesto jantar e fez a proposta.

Foi um alvoroço! Não arranjou dois, mas dez ou quinze interessados na oferta de trabalho. Acabou tendo de improvisar uma espécie de seleção, na qual altura e peso entraram como fatores de aprovação. Só aí já foram reprovados dez, porque, para falar a verdade, foi um pouco demais, exigir peso e altura dos “paraíbas”. Mas, no final voltou ao hotel para prestar contas de sua missão ao Sheik, deixando escolhidos os dois que iriam para o Oriente com a caravana do riquíssimo árabe.

No dia marcado, um carro a serviço do Sheik recolheu os dois escolhidos no canteiro de obras, onde ainda permaneciam dormindo, por concessão do encarregado, levando-os para o aeroporto, onde, após as formalidades de praxe, embarcaram no jato particular do novo patrão e seguiram em direção ao país onde iriam trabalhar, ganhando em dólares. Mas, para abreviar, já quase chegando, a aeronave fez um pouso nas proximidades do oásis, em que seria erguido o palácio do contratante e o assessor — aquele que falava o Português — lhes disse:

— Vocês ficam logo aqui. Aguardem que, mais tarde um pouco, vai chegar outro avião do Sheik, trazendo barracas, comida, ferramentas, muito material de construção e o engenheiro com as plantas, para que começe logo a obra. Enquanto isso vocês procurem uma sobra aí debaixo de umas palmeiras e esperem.

Desembarcaram os nordestinos, o jato fechou a porta, decolou e lá ficaram os dois, sozinhos naquele oásis, cercado de areia por todos os lados. Sim, porque, tirando o próprio oásis — as palmeiras e o lago cristalino, cuja água brotava do subsolo — só tinha mesmo era areia, até onde a vista alcançava.

Foi quando um dos “paraíbas”, vendo aquela areia toda, pôs a mão na cabeça e disse para o outro:

— Severino, quando chegar o cimento, nós “tamo” é lascado!

Realmente, pensando em fazer massa com aquela areia toda, não ia ser nada fácil...