DANADO DE QUENTE!

O meu tio Hildo, irmão do meu pai, é um desses cearenses típicos do interior, com a sua simplicidade no conversar, o seu senso de humor espontâneo e aquela verve que costuma caracterizar os nordestinos, de uma forma geral. Longe de ser uma pessoa simplória, no entanto, tem uma inteligência aguda, um valor profissional inegável e desempenhou, ao longo de sua carreira, na área do Ministério da Fazenda, alguns cargos da maior projeção, até a sua justa e merecida aposentadoria.

Mas a caminhada dele pelas atividades fazendárias começou quando, aprovado num concurso e ainda recém formado em Agronomia, acabou virando coletor de impostos, pelo interior do Ceará. Viajava muito por isto, naquelas estradas poeirentas de então e antes que o asfalto fosse coisa comum naquele interior do Nordeste, hospedando-se, de rotina, naquelas pensões “algo familiares”, das cidadezinhas que visitava, para o cumprimento do seu ofício.

E de tanto viajar, acabou ficando conhecido como um hóspede bem-vindo em todas elas, sem contar o fato de que, naquele fim de mundo e naqueles tempos, um coletor de impostos tinha lá a sua importância e o seu galardão. Por isto, exatamente, onde quer que chegasse, era “doutor Hildo” prá lá, “doutor Hildo prá cá” e “avia essa galinha à cabidela, que o doutor Hildo chegou para almoçar”...

Seguindo as tradições da linhagem paterna, o tio foi um desses homens que se casaram já mais maduros, depois da “metade dos quarenta”, uma coisa até comum, na família do meu pai, que, por sua vez, para fugir às tradições familiares, casou-se com a minha mãe (pouco antes dela completar os dezoito) aos 25 anos de idade, para a surpresa e alguma decepção da minha avó. Vá entender a cabeça desse povo!

Mas o fato é que, viajando tanto e ainda solteiro, o meu tio-coletor era considerado, nas cidadezinhas por onde passava, digamos, “um bom partido”. Do que — segundo a mofa que lhe faziam os próprios irmãos, por vezes, com algum exagero — ele muito se aproveitou naqueles tempos idos, de gloriosa juventude.

Foi por isto que, certa vez, chegando cansado e já meio tarde, para os hábitos do interior, a uma dessas pensões em que costumava hospedar-se, foi recebido, com um ar de decepção, pela dona da hospedaria, que lhe disse, contrafeita:

— Ah, doutor Hildo, eu estou morta de pena, mas hoje, todos os quartos estão ocupados...

O meu tio explicou que não tinha como prosseguir viagem àquela hora, além de estar exausto, pela jornada do dia, que tinha sido extenso. E pediu à mulher que lhe arranjasse uma rede e a armasse em qualquer lugar da casa, porque o que ele precisava era se deitar.

Foi quando a dona da pensão lhe disse, com alguma hesitação:

— Olhe, o que eu posso fazer é lhe preparar uma rede limpinha num canto lá da sala, para o senhor dormir... Se não se importar, porque já tem outra pessoa dormindo lá. Mas, se quiser, eu ponho a sua rede do outro lado e pode dormir na sala, então...

Essa coisa de oferecer uma “rede limpa” ao hóspede é o símbolo máximo de hospitalidade para o nordestino do interior. Cansado como estava e ainda diante da hospitalidade oferecida, o tio disse que não havia problema quanto a isto; pois o que ele queria era dormir. Foi tomar um banho e, em seguida, acompanhou a mulher até a sala, que era onde eram servidas as refeições durante o dia. Mas, ao passar pela rede do outro hóspede, percebeu que não se tratava bem de “um” hóspede...

Pelas frestas da barra da rede, que, por lá chamam de “varanda”, notou que ali se encontrava, observando a cena, uma caboclinha, pouco “entrada em anos” — expressão que, neste caso, está empregada em sentido restrito, por assim dizer — e atenta ao movimento da sua chegada. A dona da pensão disse um “boa noite” e se foi. Ele se deitou, mas percebeu que a “cunhã” (como no interior chamam essas mocinhas) continuava, lá da rede dela, exercendo o seu direito de ser curiosa. Olhava de lá, mas quando ele, intrigado por aquilo, olhava de volta, ela se escondia nos panos da rede. Olhava de novo, mas surpreendida na sua abelhudice, tornava a se esconder...

Assim é que, depois de vários lances desse jogo de “pique – esconde” sertanejo, surpreendida num momento em que ele resolveu esperar que ela olhasse para o lado da rede dele de novo, ela finalmente falou:

— Moço, se o senhor quer “faltar com o respeito”, falte logo. Porque eu preciso dormir...

O resto da história, eu não sei. Porque foi ele quem contou isto aos irmãos... Mas somente até este ponto, como devem e costumam fazer os cavalheiros.

Êta Nordeste velho danado de quente!