O menino que queria ser santo...

Antonio, o Tonico, era um menino complicado. Coraçãozinho de ouro, espírito místico, gosto pela meditação transcendental, era, entretanto, um peralta rebelde, gênio terrível, brigão inveterado nas ruas do bairro ou no colégio. Raros eram os dias em que não tinha que se escafeder em desabalada correria para a casa da avó, a fim de escapar de uma “surra de arrepiar” da mãe, furiosa com a sua atrevida desobediência, os palavrões que mandava para as irmãs, os petelecos que dava nelas e as suas debochadas e pornográficas atitudes com as menininhas do bairro e colegas do colégio. Era ainda irreverente em matéria de religião, fazia piadinhas com os santos, missas e procissões, imitava os pregadores evangélicos, o escambau! Detestava com todas as letras o seu apelido familiar – Tonico – e tinha prometido para si mesmo que quando crescesse iria embora para um lugar onde ninguém jamais o chamasse de Tonico!

Mas havia um santo que enternecia o coração de Tonico. Era Santo Antonio, o seu padroeiro, olhar paciente e manso, com o menino Jesus nos braços. Muitas vezes Tonico entrava na igreja apenas para ficar contemplando, embevecido por várias horas, o Santo Antonio, o seu herói.

Um dia, de boa vontade – o que era realmente um milagre – Tonico foi levar um recado de sua mãe para uma parenta residente no centro da cidade e por isso teve que passar por sua igreja preferida. Entrou e ficou, como de costume, fascinado pela imagem de Santo Antonio com o menino Jesus nos braços. Mas havia algo diferente no olhar de Santo Antonio, naquele dia! Parecia mais triste, parecia pedir alguma coisa para Tonico...

E ele captou, no seu coração, a melancólica mensagem de Santo Antonio: “Tonico, meu filho, por que és um mau menino? Desse jeito, meu filho, estás caminhando para as garras do Tinhoso! Arrepende-te dos teus pecados, meu filho! Tu ainda podes virar santo, assim como eu...” Santo!? Seria possível? Ele, o carga-torta da família, poderia tornar-se um santo? E logo a sua imaginação viu na igreja uma estátua de São Tonico... Hum, São Tonico, não, pelo amor de Deus! Quem sabe, Santo Antonio do Maranhão? E, corajoso, sentindo-se penetrado por uma luz divina, decidiu-se: ia ser santo!

Santos não mandam palavrões, não brigam, não levantam as saias das menininhas, nem trepam nas árvores para ver as mulheres nuas, lavando roupas nas fontes... Santos não fumam cigarrinhos de papel, não abrem as braguilhas para mostrar os bilaus para as meninas, não gazetam aulas, nem se rebelam quando são mandados pelas mães às quitandas. Não seria uma tarefa nada fácil, mas Antonio estava disposto: ia ser santo!

No dia seguinte, começaram as provas, os testes para avaliar o fervor e a sinceridade de Tonico na sua caminhada em direção à santidade. No colégio, permaneceu atento à aula, sério, compenetrado. A tal ponto que a professora interrompeu a aula e perguntou:

- Antonio, estás sentindo alguma coisa? Estás esquisito, diferente...

Para espanto dos colegas, durante todo o transcorrer da pelada da tarde não mandou um só palavrão nem mostrou o dedo para o juiz. O seu time apanhou de seis a zero, ele não chamou o goleiro do seu time de frangueiro, veado ou de filho de uma égua, e foi para casa calmo, com um sorriso tranquilo nos lábios. Estava começando bem... Não era tão difícil assim ser santo, ponderou.

De noite, a mãe, já preparando-se para o quebra-pau, ordenou:

- Tonico, pega este dinheiro e vai comprar café ali na quitanda do seu Manoel.

- Sim, mamãe.

- Hum?

A mãe realmente tomou um susto: ele não reclamara, nem saíra xingando, chutando pedras pela frente!...

No dia seguinte, a sua conversão a santo enfrentou mais duras provas. O gato de estimação da vizinha solteirona amanheceu com uma lata amarrada no rabo e a mulher fora queixar-se à mãe de Tonico:

- Senhora, já viu o que fizeram com o meu pobre gatinho? Amarraram uma lata no rabo do bichinho. Só fui perceber por causa do barulho que ele fazia no quintal, coitadinho!... Só pode ter sido o Tonico, esse seu filho é uma peste!

A mãe não gostou da observação e as duas travaram uma acalorada discussão. E quando Tonico chegou da escola, ela, sem conversar, meteu-lhe o relho nas costas:

- Menino danado! Perverso! Por que foi fazer isso com o gatinho alheio? Toma!

Não há dor maior do que a dor de um inocente, principalmente porque Tonico sabia que tinha sido o seu irmão mais velho o autor da travessura. Mas, conformou-se. Afinal, todos os santos tinham sido mártires... Enxugou as lágrimas e rezou para Santo Antonio.

Lá pelas três da tarde, saiu à rua e encontrou os seus primos, dois meninos e duas meninas, entre estas, Helena, travessa e safadinha.

- Oi, Tonico, vamos brincar de casinha?

Hum, casinha!... Sua diversão predileta!... Sempre exigia ser o pai, a Helena era sempre a mãe, e os outros primos eram os filhos. Espertamente, costumava dar tarefas para os “filhos” fora de casa e ficava brincando de “marido e mulher” com a Helena. Abriu a boca para dizer um alegre sim, mas lembrou-se de Santo Antonio, que o esperava – mas, sem pecados! - no Paraíso:

- Não posso, tenho coisas para fazer.

Tonico dormiu feliz nessa noite. Dois dias sem nenhum pecado! De fato, não era difícil ser santo...

O terceiro dia chegou e era um sábado. Após a aula de catecismo, a meninada corria e brincava no Largo da Igreja. Um desafeto de Tonico, um tal de Pelado, um menino chato, mas alto e forte, viu-o pensativo, sentado nos degraus da Praça e veio aporrinhar:

- Olá, babão, que é que tu fazes aí com essa cara de besta?

- Deixa-me em paz, Pelado. Vai cuidar da tua vida.

- Tão dizendo por aí que tu ficaste frutinha. Não briga mais, só vive em missa. Virou coroinha, veado?

Os meninos que acompanhavam Pelado caíram na gargalhada. O sangue subiu ao rosto de Tonico, mas se conteve. Santo Antonio esperava que ele fosse forte para enfrentar Satanás. E Pelado era um Satanás!

- Deixa-me em paz, Pelado, por favor!

Pelado e os outros meninos retomaram a caminhada, gargalhando, debochando e repetindo, entre mímicas e trajetos femininos:

- Ui,ui,ui, deixa-me em paz, deixa-me em paz, ui,ui,ui!...

Pareceu a Tonico que precisava de um socorro espiritual urgente. Pensou na igreja e já ia levantar-se para conversar com Santo Antonio, quando apareceu Helena:

- Oi, Tonico, estás tão triste, coitadinho... Olha, vem aqui, vamos namorar um pouquinho!

Pegou Tonico pela mão e levou-o para os fundos da igreja. Lá, encostou-se dengosa na parede e pediu:

- Me dá um beijo, Tonico!

- Não posso, Helena.

- Não pode, por quê?

- Não quero mais pecar.

- Quem disse que beijo é pecado?

- Eu sei.

- Sabe nada, seu besta. Tu tá é ficando fresco!

Tonico só queria ser santo. Mas ainda não era. E por isso, sem pensar duas vezes, avançou para Helena, imprensou-a na parede e beijou-a com raiva, furiosamente.

Minutos depois, despediu-se de Helena e caminhou para casa. Lá na frente, divisou Pelado e os seus amiguinhos. Bom, já tinha começado a pecar, e mais um pecado, menos um pecado, não fariam diferença... Pegou um pedaço de vara de cerca que estava pelo chão e escondeu-a atrás da calça. Avançou para eles. Pelado aproximou-se debochado:

- Qualé, padreco, que é que...

Não terminou a frase, pois uma varada de Tonico atingiu-lhe o peito e ele caiu no chão, gemendo. Os outros meninos, sentindo que o diabo estava solto, meteram o pé na estrada, porque amigos, amigos, varadas à parte.... Tonico deu mais duas varadas nas costas de Pelado que continuava gritando e pedindo socorro.

Calmamente jogou a vara fora e voltou assobiando para casa.

Amanhã pediria perdão para Santo Antonio e recomeçaria o seu projeto de ser santo. Talvez Satanás não lhe tentasse mais com seus Pelados e Helenas...

Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 26/09/2006
Reeditado em 24/03/2011
Código do texto: T250094
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