O perfil de Richard Hell

(Autor do texto: Richard Hell)

[por ele mesmo]

Sempre fui muito desconfiado. Nunca dei as costas a ninguém. Isso explica o fato de andar pelas ruas de Sp, Bh e Manaus girando, rodopiando constantemente. O submundo sempre me atraiu. Entrei pra uma famosa gangue desconhecida em meados dos anos oitenta. O rito de iniciação foi complicado. Fui levado a um quarto escuro vendado. Colocaram biscoitos negresco e pedaços de provolone nos meus bolsos e fui obrigado a pular num pé só gritando uó uó uó mulelé mulelé. Em seguida a cúpula da gangue fez bilu bilu nos meus lábios inferiores – alguns até 2 vezes. Fui descoberto pela polícia quando continuei almoçando tranqüilamente depois de um idoso ser atingido por uma bigorna na mesa ao lado. A vida de arruaças é muito gratificante, embora as vezes você tenha que ter as gengivas massageadas por um sapato. Sem falar nas mulheres, que eu não costumo pensar muito. Só quando respiro. Adepto do toma lá dá cá, sempre tomei mais do que dei. Já fui muito ajudado na vida como na vez em que no teatro municipal espirrei escandalosamente durante o 1º ato de uma ópera e fiz voar a peruca de um figurão da sociedade paulistana na fileira da frente. A platéia se revoltou, mas o Maestro Almeida me defendeu com sua hoje célebre frase, imortalizada nos anais da filosofia contemporânea: “todo mundo espirra”. Tentei a carreira de pintor. Desejava ser um cubista. Pedi pra um indigente posar pra uma natureza morta e comecei a lhe quebrar a cara e o resto do corpo para reduzi-lo às formas geométricas básicas, mas nunca concluí a obra porque a polícia interveio. A sorte foi ter conseguido pagar a fiança com a reedição do meu 1ºlivro: economia e deflação. Que roupa usar em cada uma delas?

De linhagem nobre, sou Bisneto de Humbold que morreu após contrair um bacilo raro ao apertar a mão de Koch. Atualmente me dedico a questões metafísicas como: haverá separação entre corpo e mente? E, nesse caso, qual será preferível ter? Com muita luta consegui superar a fobia de ser capturado por homens de uma perna só e ser recheado com patê de lagostim, pavor esse que me deixou de cama por 5 anos. Apesar de injustamente não ser considerado um intelectual, confesso que tenho um calcanhar cultural de Aquiles que vai da planta do pé até a nuca.

Minha atração pelas 7 artes começou no café 3 corações em BH, no momento em que estava devorando um casulo de queijo e sofrendo uma alucinação tão violenta do colesterol que quase senti minha aorta se solidificando como um taco de golfe. Ao meu lado, uma linda morena atraiu meu olhar. Sem saber que seu namorado lutador de vale tudo estava bem atrás de mim, tirei sua roupa com os olhos. Só me lembro de ter feito uma piada sobre arquitetura moderna antes de perder os sentidos. Na pressa da fuga, quando recobrei a consciência, tentei ligar para a polícia, como estava pisando em uma poça descalço, já que meu tênis foi arrancado após o 1ºsoco, e me apoiei no amplificador do guitarrista, levei um choque tão grande que acabou com a luz do quarteirão inteiro. Minha 2ª órbita em volta do poste de rua só foi interrompida pelo balcão da cafeteria, contra o qual eu fui de cabeça, engolindo 3 gudam garans. Não tive alternativa a não ser entrar num cinema. Devo minha vida às artes. Hoje levo uma vida normal. Só não sei pra onde.

Showzaço de letras. Obrigada, querido.

PS.: Richard Hell existe, escreve essas maravilhas, mas tem preguiça (segundo ele) de escrever. Pena, né?