QUE VEXAME!

Nas várias mudanças que já fiz — de casa, de lugar e de vida — andei perdendo certas coisas que estimava. Livros, por exemplo: perdi alguns, dentre aqueles de que mais gostei. Uns, porque emprestei e nunca mais me devolveram; outros porque, simplesmente, ficaram num desses lugares por onde andei e não tornei a encontrá-los. Quanto a eles, no entanto, só não fico mais triste porque acho, na verdade, que se não estão numa biblioteca à disposição de todos, o melhor mesmo é que os livros circulem, que troquem de mãos e que outras pessoas, além de nós, possam ter acesso ao seu conteúdo também.

Ainda assim, de vez em quando eu me recordo de algo que li e fico um tanto decepcionado, quando vou procurar aquele texto e descubro que ele não está mais comigo. Aí me consolo, lembrando do que me dizia o meu tio Geminiano, um dos irmãos do meu pai, acerca das pessoas que se apropriam de algum título das bibliotecas alheias:

— Quem furta ou não devolve um livro que tomou emprestado, não é criminoso, meu caro! É apenas um intelectual sem os recursos necessários para formar a sua própria biblioteca...

Eu me ria daquela forma debochada pela qual ele colocava a questão e confesso que, algumas vezes, isto me serviu de conforto, quando descobri, também, dentre os meus, algum livro que não me pertencia. E, pior ainda, eu não me lembrava mais quem o emprestara a mim, para que pudesse devolvê-lo. Desta maneira, de uma forma meio compulsória, eu acabava adicionando um novo título aos que eu já possuía, porque, mesmo não sendo um “intelectual”, na acepção exata da palavra, assumo que sou um leitor pobre.

Mas todas estas idéias me ocorrem a propósito de um assunto muito específico, sobre o qual eu conversei, numa noite dessas, com um grupo de amigos: as gafes que todo mundo comete — e algumas pessoas muito mais do que outras — de vez em quando, por mais cuidado que se tenha com esse negócio de “não falar de corda em casa de enforcado”. Eu já cometi algumas terríveis e aprendi, a duras penas, que depois de um tropeção de inconveniência desses, o melhor é mudar de assunto e não tentar consertar. Pois, neste caso, literalmente, a emenda costuma ser pior do que o soneto!

Aí, quando cheguei à minha casa, fui procurar um dos livros do Fernando Sabino, escritor por cujos textos eu me encantei, desde muito jovem, quando li, ainda na adolescência, o primeiro dos seus romances, que foi “O Encontro Marcado”. Na época, muitos ainda torciam o nariz para os chamados “contistas mineiros”, como se a literatura produzida por eles fosse de menor expressão. É que o leitor mediano da década de 60 preferia ler autores estrangeiros, como a norte-americana Pearl S. Buck ou a francesa Françoise Sagan, um sintoma do colonialismo cultural que vivíamos então no Brasil. Mas o tempo demonstraria o contrário e aqueles contistas vindos das Minas Gerais se tornaram exuberantes autores, embora alguns — como o Otto Lara Resende — sempre tenham se dedicado mais ao jornalismo do que ao texto literário.

O texto que eu procurava encontra-se num livro do autor mineiro, chamado “Contos e Crônicas” — que algum intelectual pobre levou de mim — e traz o sugestivo título de “Ocasiões de ficar calado”. Sugestivo porque trata, precisamente, deste assunto: as gafes que cometemos todos, em alguns momentos infelizes e descuidados da nossa convivência social. E na crônica, o Fernando Sabino nos conta algumas engraçadíssimas, dos outros e dele próprio, que assume ser um campeão imbatível nessas mancadas que deixam todo mundo, como se diz, numa “saia justa”. Como aquela em que, conversando com uma interessante criatura, que conhecera numa festa, ele acabou dizendo:

— Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?

Ao que a mulher respondeu:

— Não posso, sou a dona da casa.

E como todos têm direito a certo quinhão de gafes, pela vida afora, eu tenho usado o meu, sem muita prodigalidade, mas de forma embaraçosa para mim mesmo, de quando em vez. E era sobre isto que eu conversava com aquele grupo de amigos, quando me lembrei destas coisas.

Ouvi muitas e contei várias, como uma recente, em que reenviei um e-mail a um grupo de pessoas que tenho em minha lista, sem prestar muita atenção aos destinatários, já que se tratava de uma anedota de salão. A historinha, muito engraçada, não era exatamente inédita e, supondo que alguém mais já pudesse tê-la lido ou ouvido, eu encaminhei a mensagem com uma observação inicial, em tom de brincadeira:

“Esta aqui é que nem a minha vizinha; já está um pouco rodada, mas ainda é muito boa!”

Dias depois, recebo uma resposta lacônica de um dos meus vizinhos, dizendo apenas:

— Gostei muito da piada. E você está mais espirituoso, a cada dia que passa.

Juro que o comentário, de verdade, não dizia respeito a ninguém. E, também, que eu não me lembrava do meu vizinho, entre os meus destinatários do Outlook... Que vexame, meu Deus!