DESEMBARGADOR APOSENTADO

Durante alguns anos, na minha atividade como professor, eu tive um colega, que parecia ser um homem muito bem intencionado e que impusera a si mesmo padrões morais e religiosos muito rígidos, mas que, nem por isto, deixava de ser uma pessoa agradável na convivência diária.

Não chegava a ser um homem intelectualmente brilhante, mas era inteligente e muito esforçado. Dizia umas tantas toleimas, quando se metia a discorrer sobre determinados assuntos, mas, aqui e ali, acertava no alvo, ao formular certos conceitos, sobretudo, em relação ao significado de algumas coisas da vida.

Pois foi dele que ouvi, pela primeira vez, uma dessas coisas, que era do seu agrado repetir, tanto para os colegas, quanto para os seus alunos, como vim a saber depois, assumindo uma classe para a qual ele também lecionava:

— O melhor professor do mundo é o “frei Exemplo”...

Dizia aquilo em tom sentencioso, a cada vez, como se aquela fosse a primeira. E olhava em torno, para avaliar o efeito que a frase produzira nos presentes. Em geral todos concordavam e ele se sentia feliz, por ter dito algo “tão original”... De minha parte, pelo menos, posso garantir que o fiz sentir-se original por volta de umas cinquenta vezes, durante a nossa convivência de uns quatro ou cinco anos! Se aquilo fazia o homem feliz, o que me custava assumir aquela expressão de quem acaba de tomar conhecimento da mais recente formulação filosófica?

Independente de ter ou não ter a sua frase de efeito algo de genial — como ele imaginava que fosse, enquanto me fazia pensar que a sentença poderia até não ser dele — o princípio estava certo, como entende e entenderá qualquer pessoa de bom senso. Com efeito, é pelo exemplo que a gente se torna mais eloquente. E um bom exemplo, às vezes, vale mais do que mil palavras. Embora exista mais gente dizendo mil palavras do que dando bons exemplos. E é claro que o “frei Mau Exemplo” também costuma ser muito eficaz, como sabem todos.

Pois foi mesmo a eloquência de um exemplo que me fez, aos quatro anos de idade, pela primeira vez, pensar de maneira sensata sobre o meu futuro. Nesta época nós morávamos no interior do Espírito Santo — bem entendido que eu estou me referindo ao Estado e não àquele outro “Espírito Santo”, que fica mais no alto — e fomos passar um mês no Ceará, onde estão as raízes da minha família e onde vive a maior parte dela. E durante este mês, como era de praxe, tivemos uma alentada programação de visitas a parentes e aderentes, a maioria dos quais nem conhecia ainda aos meus irmãos e a mim.

Para a criançada, uma escadinha de gente miúda variando dos sete aos dois anos de idade, isso não era um programa dos mais divertidos; sobretudo porque, quando era a vez dos tios-avós, em geral nem havia crianças com quem pudéssemos brincar durante o tempo da visita. Mas como o objetivo era de que todos nos conhecessem também, lá íamos nós para aquela programação meio sem graça.

E numa dessas é que fomos parar na casa de um tio-avô por afinidade, que era desembargador aposentado, como disseram em nossa presença, algumas vezes, mesmo que não tivéssemos a mínima idéia do que vinha a ser isto. Pois quando chegamos, lá estava o homem, que, na calma Fortaleza daquela época, passava grande parte do seu tempo deitado numa rede, com uma jarra de refresco e uns biscoitos que a mulher lhe preparava, na mesinha ao lado, lendo, conversando ou tocando o seu violão e cantando umas modinhas de antigamente.

No violão dele, nenhum de nós se atreveu a tocar; mas, em compensação, nos serviram daquele refresco e daqueles biscoitos e isto, como é evidente, foi a melhor parte da visita para nós. Por insistência de alguém, ele depois dedilhou o instrumento e brindou os presentes com os acordes do seu ”pinho”. De tal sorte que, no contexto das visitas, aquela foi um sucesso,no imaginário dos infantes!

Nós estávamos hospedados na casa do meu avô materno e, alguns dias depois, um dos meus tios, puxando uma conversa comigo, fez aquela clássica pergunta, que sempre gostam de fazer às crianças:

— O que é que você vai ser, quando crescer?

Certamente, esperava que eu lhe respondesse: médico, dentista, professor ou alguma dessas profissões que primeiro impressionam aos meninos. Mas eu, sem pestanejar, do alto dos meus quatro anos de idade, respondi:

— Desembargador aposentado.

Eu não tinha a menor idéia do que aquilo significava... Só sabia que era uma vida danada de boa!