O TRUQUE DA RAPOSA

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO I

(folclore brasileiro, recontado por

William Lagos, 9 DEZ 2011).

Era uma época de seca e a Raposa

andava às tontas, sem saber o que caçar:

todos os pássaros já haviam sumido,

os coelhos e tatus tinham fugido;

cada bichinho que pudera se escapar

fora em busca de região bem mais formosa...

Ora, com a Onça o mesmo acontecia:

tinham sumido veados e macacos,

pois não havia uma só fruta pelos galhos

e não queriam mais passar trabalhos;

até as cobras se enfiavam em buracos:

dormiam enroscadas noite e dia...

Ela pensara em mudar de território;

havia outras onças pela redondeza

e cada uma a sua área defendia,

com unhas e dentes e a Onça não podia

mudar-se para longe, com certeza,

nem restos davam, se fizesse um peditório...

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO II

Os sitiantes andavam bem armados

e todos tinham cachorros bem ferozes;

sua criação guardavam em cercados,

com ração eram os bichos sustentados...

Os banqueiros, de fato, eram algozes,

mas que fazer? Ficavam endividados...

Mas a Raposa era outra que sofria:

não conseguia entrar nos galinheiros,

tinham voado as codornas e as perdizes,

mal e mal mastigava umas raízes,

era caçada pelos perdigueiros

e nem sabia mais o que fazia...

Até o Corvo já passava mal:

em época de seca, antigamente,

ele comia o gado e até engordava;

mas agora que as vacas alimentava

o seu dono com feno, mais frequente,

os seus bichos nem morriam, afinal...

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO III

Um dia, Onça e Raposa se encontraram,

as duas pele e osso, a se queixar:

“Comadre Onça, a situação está horrível!

Nem se consegue um pinto, está terrível!...”

“Também não tenho de que me alimentar...’

disse a Onça... E as duas se fitaram.

De repente, a Raposa percebeu

que os músculos da Onça retesavam...

Sem pensar duas vezes, disparou

e para o fundo da mata se mandou...

Pensou o Corvo lá de cima que caçavam

e logo em seu encalço se meteu!...

“Se alguma coisa essas duas caçarem,

sempre sobra um restinho para mim!...”

Mas procurou em vão ver um veado,

as duas corriam para o mesmo lado

e logo descobriu porque era assim:

“Vou ver as duas pestes se pegarem!...”

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO IV

“Ou essa Onça cai em algum mundéu

preparado pela outra e morre lá

ou então é a Onça que a Raposa vai caçar

e um restinho de ossos vai sobrar

para meu bico... Vamos acolá,

para ver o que resulta do escarcéu!...”

A Raposa corria mais depressa,

mas estava fraca, por falta de comida

e a Onça era um bicho bem maior,

já a distância ia ficando bem menor!

A Raposa então pensou estar perdida,

a não ser que lhe pregasse alguma peça!...

Logo encontrou um esqueleto ressequido,

reconhecendo de onça uma caveira!...

E como já estava bem cansada,

tomou uma decisão muito arriscada:

interrompeu sua louca corredeira,

pegando um osso bastante carcomido...

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO V

E fingiu estar comendo alegremente...

Chegou a Onça à borda da clareira

e viu a Raposa no seu falso convescote...

E ao preparar-se para dar-lhe um bote,

escutou a Raposa, bem lampeira,

sabendo bem do perigo pela frente...

“Mas que Onça deliciosa que eu matei!

Vou-lhe roer os ossos até o tutano!

Minha fome era tanta, que eu comi

a carne e o pelo e tudo mais que vi,

minha primeira festança deste ano:

com essa onça enfim me banqueteei!...”

A Onça viu o cenário e estremeceu!

“Acho melhor eu me escapar daqui!...”

Com o rabo entre as pernas, foi fugindo,

não lhe convinha seguir mais perseguindo

um bicho tão feroz como esse aí!...

Para bem longe, no mato, ela correu...

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO VI

Mas o Corvo lá de cima, já espiava

e viu estar perdida sua esperança:

“Mas que onça bem burra!” ele pensou.

“Acho que a treta lhe contar eu vou...

Ela pega essa raposa e, de lambança,

me garante que uns restos me deixava!...”

E o Corvo foi voando bem depressa

para onde a Onça estava descansando

e pousou sobre um galho, bem pertinho.

“Dona Onça,” ele disse com carinho,

“Por que a senhora está aí chorando,

Um bicho forte que caçar não cessa!...”

Mas a Onça respondeu, num só lamento:

“Você veio é me agourar, seu bicho ruim!

Não como há um mês, mas ainda não morri...

Muito pior foi a cena que hoje eu vi:

essa raposa eu vi comendo assim

uma outra onça!... Ai, que sofrimento!...”

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO VII

“Dona Onça, se um segredo eu lhe contar,

a senhora me dá alguma recompensa?”

“Até daria, mas não tenho nada!...”

“Mas vai ter... A senhora foi enganada,

essa raposa é cheia de sabença

e só fingia a outra onça devorar!...”

“Mas eram ossos de onça, eu vi a caveira!”

“Lá isso eram, Dona Onça, só que velhos;

era o esqueleto da senhora sua avó,

que faleceu um dia, a pobre, muito só...

Com meus irmãos eu fui comer até os artelhos

e a carcaça limpamos toda inteira!...”

“Mas, Dona Onça, isso já faz anos!...

Aqueles ossos estão secos e quebrados,

a raposa só fingiu estar roendo...

Mas agora que a senhora está sabendo,

faça a malvada pagar os seus pecados,

só me deixe os ossos e os tutanos!...

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO VIII

Então a Onça se ergueu, muito zangada,

com novas forças, apesar da fome,

e voltou em disparada até a clareira

a voz do corvo crocitando bem ligeira:

“Vamos depressa, senão a outra some

e a senhora acaba sem ter sem nada!...”

Mas a Raposa, que estava descansando,

depois da vã tentativa de roer

aqueles ossos já velhos demais,

viu que medula já não tinham mais

e ficou ali quietinha, a se lamber,

o seu futuro ainda imaginando...

De repente, escutou a barulhada

que a Onça fazia, em sua correria

e mais os pios do Corvo pelo ar,

entusiasmando-a com seu crocitar;

e ao perceber que às suas costas lhe surgia,

falou assim, como quem não quer mais nada:

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO IX

“Como o Compadre Corvo se demora!

Ele veio me pedir algum tutano,

mas destes ossos não sobrou mais nada

e eu mesma continuo ainda esfomeada,

foi a primeira boa comida deste ano,

mandei logo que o Corvo fosse embora!...”

“Mas ele então me disse: ‘E se eu trouxer

a outra onça, para a senhora matar?

Ela está fraca, a senhora já está forte,

vai ser bem fácil lhe causar a morte!...

E depois que a senhora a devorar,

eu vou comer os restos que me der...’

“Porém o Corvo está muito demorado;

Atrás da Onça eu mesma irei agora,

ela deve estar bem desprevenida

e com dois golpes eu a levo de vencida;

mas o Corvo eu mandarei de novo embora,

depois que a Onça tiver toda devorado!...”

A RAPOSA, A ONÇA E O CORVO X

E a Onça apavorou-se, novamente

e saiu pela mata, em disparada,

enquanto a Raposa se escapava

e logo mais adiante, ela escavava

um ninho de lagarto e sua ninhada

comia de um em um, alegremente!...

Mas o Corvo foi a Onça procurar:

“Dona Onça, isso tudo foi mentira!...”

“Você não passa de um animal traidor,”

disse a Onça, “mas não guardo mais rancor,

enfraqueci e minha cabeça gira...

Eu vou morrer e você vai me devorar...”

E ficou ali parada, bem quietinha,

até o Corvo pensar que tinha morrido

e veio experimentar uma bicada...

Porém a Onça lhe deu uma patada

E engoliu inteiro o enxerido:

carne bem ruim, mas que a calhar lhe vinha!

EPÍLOGO

E é por isso que os corvos hoje esperam

até que tenham a mais plena certeza

de que os bichos morreram de verdade

e só então vão comer à saciedade:

são os coveiros de toda a Natureza

e do mau cheiro e doenças nos liberam!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 11/03/2012
Código do texto: T3548667
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