Footing no Shopping

Entediada pela ferrugem dos dias sem movimento, catou umas moedas na carteira, vestiu estrategicamente a blusa branca com bordado inglês e a calça jeans com o corte da moda, ambos presentes de aniversário de seu ex-marido, o “desgraçado”, como gostava de dizer...

Uma maquiagem básica, um cabelo diferente e lá foi ela, esperando encontrar alguma novidade nas vitrines esperançosas de um shopping no final de tarde. Durvalina andou, andou e andou... Olhou-se no espelho, descobriu uma ruga nova, pensou em botox,ficou triste. Subiu pela escada rolante, seguiu pelo corredor, virou à esquerda, seguiu mais adiante, entrou na farmácia, procurou elasticidades classificadas por preço e marca, pegou o mais caro e, enquanto procurava seu cartão de crédito, pensava com amargura “-Dane-se, é o babaca quem vai pagar!”. Com a menstruação atrasada e a forte possibilidade de estar grávida do porteiro de seu prédio, sentiu a responsabilidade de um filho batendo pesado nas costas. “ Como?” Desesperava-se silenciosamente. A pensão que ganhava de seu ex era oito vezes mais alta que o salário do “quase-futuro-pai-de -seu-possível-rebento”... Tudo tão simples e tão complicado. Seria uma questão de cortes,cortes de gastos, comprar menos futilidades, menos idas ao salão, menos issos e aquilos! Teria de preencher a vida com o que realmente interessa. (...). Mas o que realmente interessa? Pensamentos profundos demais para um “ footing”casual (sim, pessoas comuns fazem um passeio,já as chiques fazem “footing”,ainda que com o dinheiro alheio). Comprar era uma solução bem palpável para suas feridas e recalques arraigados na alma rala, objetos e pedaços de pano lhe acenavam com gentileza celestial que Durva, sua alcunha, não ousava recusar. Encheu as sacolas de inutilidades e gozos instantâneos, esqueceu por completo as ameaças de morte que fizera a seu ginecologista e o fracasso da vida sentimental repleta de amores perros e infantilidades possessivas,uma comédia de erros com ressacas monstruosas. A terapia perfeita, debitada no cartão de crédito marital! O anestésico de dores existenciais e surtos de banzo, do vazio das saudades do que nunca teve, do que nunca conheceu... Ê laiá! Embalada pelo raquitismo da orgia consumista e salvadora,seu corpo com as veias carregadas de sentimentalismo e colesterol,ansiava agora por outra droga,um sorvete talvez... Isso! Um sorvete! E lá foi Durva, lambuzar a realidade amarga e sórdida com a doçura calórica de um gelado qualquer. “ – Esses médicos não sabem de porra nenhuma! Ninguém morre de gordura ou problemas genéticos, só o amor mata, só o amor!”

Rastreou os corredores do shopping feito raposa bêbeda até achar um quiosque redentor, o dito-cujo tinha ofertas de sabores e tamanhos para todos os gostos e pesos. Tremendo feito criança às vésperas de dia de São Cosme e Damião, praticamente jogou-se no balcão e pediu: - Quero cinco bolas do de Kiwi.

- Senhora, não temos kiwi no momento.

-Então dê cinco do de Saputi!!

-Senhora, também não temos Saputi...

- O que tem aí então?

- Só tem de creme.

- Como assim?!?!?!? Porque só creme?

-Estamos em falta senhora, amanhã chegarão mais opções.

- Que merda é essa?!?! Odeio creme!

-Mas senhora...

-Eu quero kiwi e quero agoraaaaaaa!!!!

Durva alterou-se de maneira descomunal, parecia possuída por algo muito poderoso, algo que lhe roubou o controle e a clareza. Utilizou-se de suas aulas vespertinas de Boxe Tailandês e aplicou golpes desumanos no indefeso atendente, pulou pra dentro do quiosque e acertou-lhe um cruzado de esquerda no queixo seguidos de um peteleco na orelha e um chute no nariz. O sangue jorrava enquanto ela quebrava o cenário de seu labor aos berros de “- Merda!! Só tem de creme!!!” Num átimo de vida, o danificado rapaz embolou-se nos cabelos de Durva e caíram dentro do freezer,numa luta frenética e desmotivada. Baldes voavam e espalhavam sorvete pelos corredores, transformando a pacata praça de alimentação numa arena medieval. Seguranças surgiram e apartaram a rinha sangrenta, enquanto Durva se recompunha, ajeitando as sacolas de compras à espera da polícia...

Rachel Souza
Enviado por Rachel Souza em 24/02/2007
Código do texto: T391907