A triste história de Outra

Hospitais são lugares estranhos, parecem fundir diversos tipos de realidades em seus andares. Em alguns andares as pessoas sofrem e choram, em outros, a felicidade contagia quem passar por perto. Era primeiro de abril, e o motivo de toda a alegria no andar de baixo era uma menina que acabava de nascer, já a tristeza no andar de cima, foi causada pelo pai da mesma menina, que na pressa de acompanhar o nascimento de sua primeira filha, havia sofrido um acidente no caminho do hospital.

---- Ele está resistindo, mas, não acreditamos que irá sobreviver. - Informa o médico para a família feliz e desconsolada.

---- Mas não há nada que possamos fazer? - Pergunta a nova mãe, com um sorriso no rosto e lagrimas nos olhos.

---- Os pulmões foram muito prejudicados, não haverá tempo de conseguir um transplante... - o médico fez uma pequena pausa e continuou – Os rins foram perfurados, e não poderemos usar anestesia, o pâncreas está exposto, e o procedimento para devolvê-lo ao lugar acabaria matando seu marido de dor.

---- Mas ele não tem nenhuma chance?

---- Teria, se não houvesse fraturado tantos ossos, e se não estivesse com câncer...

---- Ele está com câncer??? É... Não tem jeito... Queria que ele pelo menos olhasse para a filha, antes de morrer...

A esposa e a família entraram no quarto, para se despedir de seu ente querido, levando a menina, que foi a única visão capaz de arrancar daquele homem beirando a morte, um sorriso.

---- Ela é linda! - disse o homem cuspindo alguns dentes que se soltaram no acidente.

---- Puxou a minha filha – Disse a sogra.

---- Puxou foi o avô – Disse o sogro.

---- Mas tem os meus olhos – disse a tia Bruna.

---- E as orelhas da tia Matilda – disse o cunhado.

---- Nada disso, são as orelhas da Eleonora, que Deus a tenha – disse a tia Matilda.

---- Ela tem uma orelha de cada – disse o filho da tia Matilda.

---- Você nem conheceu a Eleonora – disse a filha mais velha da tia Matilda.

---- Mas conhece a suas orelhas – disse a filha do meio da tia Matilda.

---- Nossa! Como tem gente nesse quarto – cochichou baixinho uma das enfermeiras para a equipe de para-médicos que esperava pelo pior.

---- Qual é o nome que vamos dar a ela? - Perguntou o pai.

---- Eu pensava em Maria... Maria da Silva!

---- Não... Maria não... - O homem na cama teve uma rápida crise de tosse, convulsões e flatulência – melhor chamar de outra coisa... - Ao dizer isso... O homem morreu.

Segundo o cunhado, a lei é clara, a ultima vontade de um falecido deve ser respeitada, assim, a linda menina recém-nascida acabou sendo batizada com o nome de Outra Coisa da Silva.

Os anos se passaram depressa, e logo Outra descobriu a dificuldade de viver com o nome que lhe deram. As pessoas, sempre tão dispostas a trocadilhos infames, viviam tornando o dia a dia de Outra em um inferno, mesmo quando o assunto era com ela, diziam que era de outra, e quando falavam mau de outra, pareciam estar falando mal dela. Quando começou a namorar, a situação se agravou, pois mesmo sendo a namorada oficial, sempre se sentia “a outra”. Quando decidiu ser “a outra” de alguém, sentia-se oficialmente “a outra” e tudo isso a deixava muito confusa.

Era muito difícil sair com amigos que tinham namoradas, por que quando se dizia: “Vou sair com a Outra” a resposta era sempre uma briga, também era muito difícil sair com amigos que não tinham namorada, pois eles estavam sempre querendo outra coisa, e esta outra coisa não era ela.

Em uma conversa era difícil mudar de assunto, dizer “fale de outra coisa” era como pedir para falar sobre ela própria, e normalmente este era o assunto que a mais a incomodava.

Em um dia primaveril, Outra estava sentada em um banco de praça, muito deprimida devido a sua situação para prestar atenção em qualquer outra coisa a sua volta (hehehe), mas eis, que ao seu lado sentou-se um rapaz, da mesma idade, com o mesmo problema.

Durante horas ficaram em silencio, até que a presença de um começou a incomodar o outro.

---- Você precisa mesmo ficar aqui? - Perguntou Outra.

---- E você não pode ir fazer outra coisa? - Perguntou o rapaz.

---- Não me fale em outra coisa! - respondeu Outra – Eu não aguento mais isso! O trocadilho é sempre o mesmo!

---- E você não fale do mesmo! Eu não aguento mais isso! Queria ter um nome normal!

---- Calma ai! - Outra parecia entender que encontrou alguém com o mesmo problema – Qual é o seu nome?

---- Me chamo Mesmo de Souza, desculpa, você não sabia, mas, os trocadilhos que ouvi minha vida inteira me incomodam muito.

---- Mesmo?

---- MESMO! MESMO DE SOUZA! ACHO QUE MINHA MÃE QUERIA JUNIOR MAS MORREU ANTES DE TERMINAR A FRASE!!

---- Não você não entendeu! Você tem o mesmo problema que o meu – Outra percebeu o que havia dito e imediatamente se desculpou – Nossa! Desculpe, eu não queria dizer isso como se fosse um trocadilho.

---- Ok. Eu entendo. Mas, diga outra coisa da próxima vez. Qual é o seu nome?

---- Só pra avisar, meu nome é Outra Coisa da Silva.

---- Nossa! Desculpe! Eu acabei de pedir pra você falar outra coisa!

---- Pois é... Temos o mesmo problema.

Os dois logo descobriram que tiveram infâncias muito parecidas, e que devido a alguma frase impensada do pai ou da mãe no leito de morte, foram batizadas com nomes nada convencionais. Logo surgiu um lindo romance, para Mesmo, Outra era diferente das outras, para Outra, Mesmo era mesmo especial. Após alguns meses, Outra engravidou, e mesmo ouvindo os trocadilhos do médico, dizendo que ela “engravidou mesmo”, e que esse é o único caso em que “engravidar a outra fazia mesmo feliz”, contou a notícia emocionada para o novo pai. Antes que os parentes pudessem desconfiar de algo, se casaram.

No casamento era difícil dizer qual dos trocadilhos era mais desagradável para o casal, se era o Mesmo casando com a Outra, ou a Outra que acabou com o Mesmo, mas, a alegria era tanta que o casal simplesmente ignorava a tudo:

---- Nossa! A Outra esta linda! - Disse tia Matilda olhando para outra mulher de vestido branco que levantou-se para ir ao banheiro.

---- Matilda você está cega! - disse marta - a Outra está entrando agora na igreja!

---- O noivo está tão diferente – Continua tia Matilda – É ele Mesmo, de saia preta?

---- Não! Aquele é o padre! O Mesmo está de costas.

---- Bem que achei mesmo que era outra pessoa...

A noiva finalmente alcançou o altar, ignorando os risinhos contidos entre as fileiras. Um extremamente bem humorado padre iniciou então a cerimonia, talvez estivesse bêbado, mas, talvez apenas estivesse aproveitando a oportunidade única de dizer coisas que não fariam sentido em nenhum outro contexto, mas, o fato é que simplesmente não conseguia seguir adiante sem fazer comentários infames, que o casal não encontrava graça nenhuma, mas, que arrancavam gargalhadas de todos os convidados.

---- Mesmo de Souza, você aceita Outra Coisa da Silva para amar e respeitar na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, sendo fiel a Outra até que a morte os separe?

---- Hahahaha – um riso murmurado surge entre os convidados.

---- Eu aceito. - Diz Mesmo.

---- Aceita mesmo? - pergunta o padre sem segurar o próprio riso.

---- Sim! Eu aceito! - respondem Outra e Mesmo ao mesmo tempo.

---- Não é tua vez – sussurra o padre para Outra, próximo ao microfone para que todos escutem – a tua parte é a outra...

---- SIM! EU JÁ DISSE QUE ACEITO! - Bradou Mesmo, que começava a ficar muito nervoso com a situação e apenas arrancava mais riso de seus entes queridos.

---- Outra Coisa da Silva, você aceita mesmo, digo hahaha, aceita Mesmo de Souza como seu legítimo marido, para amá-lo e respeita-lo na saúde...

---- PARE COM ESSES TROCADILHOS! - Mesmo gritou enfurecido, sentindo seu coração querendo saltar para fora do peito e estrangular o padre.

---- E na doença, na pobreza e na riqueza até que outra, digo hahaha, a morte os separe? - Continuou o padre.

---- HAHAHAHAHAHAHA – as risadas dos convidados já não podiam mais ser contidas.

---- Eu aceito – Outra repara que mesmo ajoelhava-se no chão com a mão no peito – Mesmo! Você está bem?!? Precisa de alguma coisa!

---- Outra! Não sei o que está havendo... Acho que estou enfartando.

---- Mesmo?

---- Sim! Estou enfartando MESMO!!!

---- HAHAHAHAHAHAHAHA – Os convidados não percebiam a gravidade da situação, e apenas aumentavam a aflição do pobre casal.

---- Não morra! Ainda não escolhemos o nome para o nosso filho!

---- Eu quero um nome... Um nome...

---- Qual nome? Qual nome? - Outra não queria acreditar que estava passando pelo mesmo problema com Mesmo.

---- Chame ele de... ahhh... De...

---- Qual nome? Por favor Mesminho querido! Me diga um nome que te faça feliz!

---- Normal... Ahhhhh

Os risos cessaram, e as pessoas que habitualmente choravam em casamentos, não precisaram desativar as lágrimas. Mesmo achou que estava enfartando, mas segundo o legista, morreu de outra coisa em seu coração, ainda não catalogada pela medicina. Nos meses seguintes, Outra engordava, carregando em seu ventre uma criança saudável, que nem sabia, estava destinada a se chamar Normal de Souza e Silva, afinal, a última vontade de um falecido precisa ser respeitada, sempre!

=NuNuNO==

(Que acha que mesmo que Mesmo encontrasse outra, Outra não faria o mesmo)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 19/11/2012
Código do texto: T3993439
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