Adeus ano velho

- Agora sim as coisas vão andar.

- Por que agora?

- Porque é um novo ano, novas vibrações, novas atitudes, novas promessas.

- Mas só mudou o dia, é como se você tivesse dormido e acordado, normalmente. Só trocou o calendário. O que é pior porque tem que ficar rasurando a data até se acostumar.

- Nossa, mas entra ano, sai ano e você continua pessimista.

- Pessimista? Só por que eu falei a verdade?

- A verdade, nada.

- A verdade sim.

- Mas não é o que ele é, mas sim o que representa.

- E o que representa?

- Representa uma nova era, o fim de um ciclo, um novo começo, essas coisas.

- Mas precisa esperar 365 dias para isso.

- Sim.

- Por quê?

- Pra pegar o calendário cheio.

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Os dois mendigos estão sentados no meio fio que divide o calção com a praia, enquanto varias pessoas passam vestidas de branco. Eles bebem, um passa a garrafa de champanhe para o outro.

- Então é isso.

- É.

- Um novo ano, vida nova.

- É o que dizem.

Silencio. Pega a garrafa, da um gole, algumas pessoas passam por eles, desejam boas entradas.

- Fez alguma simpatia?

- Não acredito em simpatia.

- Eu também não, mas por via das duvidas eu pulei as ondinhas, comi uva e coloquei as sementes na carteira.

- Que carteira?

- Uma que eu achei.

- Achou?

- Peguei.

Devolve a garrafa.

- E ai, qual suas resoluções para esse novo ano.

- Não cheguei a fazer.

- Como não chegou a fazer, tem que fazer, um novo ano se inicia tem que fazer planos.

- Olha, eu virei mendigo justamente pra não precisar fazer planos. Nem cumprir promessas.

Fala e bebe. Mas algumas pessoas passam. Dão outra garrafa de champanhe pela metade pra eles.

- Isso é uma das melhores coisas do ano novo, ganhar bebida chique sem precisar pedir.

Silencio. Agora cada um fica com uma garrafa. Bebe.

- Quais as suas resoluções para esse novo ano?

- Pensei que você não ia perguntar.

Saca um papel todo sujo e amassado do bolso.

- O que é isso?

- Minha lista de resoluções.

Ele olha. Balança a cabeça negativamente e bebe.

- Não arrumar um emprego. Ganhar mais dinheiro. Beber mais. Fumar mais. Engordar. Comer mais. Não fazer nada. Comprar um carro.

- Comprar um carro?

- É.

- Mas você é um mendigo, pra que quer um carro?

- Imagina a cara dos outros quando eu aparecer com um carro?

Balança a cabeça mais uma vez. Bebe. O outro amassa a listinha e guarda no bolso.

- A única coisa que eu faço é: passar de branco. Todo ano eu tenho que passar de branco.

- Mas esse ano sua roupa não é branca.

- Não mais, há três anos era.

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Os dois estão sozinhos em casa depois da virada. Ele está sentado de frente para a TV assistindo a comemoração que acontece nos quatro cantos do país e é transmitida em tempo real. Ela está sentada na mesa conferindo a lista de simpatias.

- Comi a lentilha, as três uvas, a romã, Ok. Guardei as sementes na carteira junto com o louro, a arruda e o cominho.

- O que é isso? Você temperou a carteira?

Ele fala tirando sarro, sem tirar os olhos da TV. Ela só olha para ele bravo.

- Sem graça.

Silencio. Ela volta a conferir a lista.

- Dei três pulinhos com o pé direito, sim. Três pulinhos com a taça sem deixar cair nenhuma gosta depois joguei o conteúdo fora, sim. Três pulinhos em cima da cadeira. Doze pulos fazendo meus pedidos. Coloquei o dinheiro no sapato. Em todos os bolso. Dei dinheiro de boas entradas, também. Passei de branco pra atrair paz, amarelo pra dinheiro, vermelho paixão. Mas sinto que está faltando alguma coisa.

Silencio.

- Me ajuda Adalberto.

- Amor, se depois de fazer tudo isso de simpatia você ainda precisa de ajuda é porque a situação ta feia mesmo.

- Não brinca Adalberto, eu to esquecendo alguma coisa.

- Devia ter feito uma simpatia para memória.

- Não brinca Adalberto, não brinca que eu to fazendo isso por nós.

- Por nós? Eu nem acredito nessas besteiras.

- Besteiras não, respeita. Tudo que nós temos é graças a essas “besteiras” que eu faço todos os anos.

- E eu pensando que era por causa do meu trabalho.

- Mas você só tem seu trabalho porque eu pedi numa simpatia do réveillon de 99.

- Então já ta na hora de você fazer uma nova pra eu conseguir um emprego melhor.

- Fica brincando fica. Brinca. Lembra do ano que eu não fiz como foi ruim?

- Mas esse ano que passou você fez e não foi assim tão bom.

Ela só olha feio. Ele volta a assistir rindo.

- Falta alguma coisa. O que é?

Silencio. Ele levanta.

- Vou ir dormir, vamos.

- Já vou.

Ele da de ombros e vai para o quarto. Quando ele está começando a cochilar ela abre a porta com tudo.

- Lembrei o que faltou.

- Oi?

- A simpatia que faltou. Levanta.

- O que?

- Levanta que eu lembrei a simpatia que faltou.

- E porque eu tenho que levantar?

- Porque você tem que ir junto comigo.

- Onde?

- Na praia. Esqueci de pular as ondinhas.

- Mas amor, já são cinco da manhã. Não funciona mais.

- Claro que funciona, eu atraso meu relógio.

- Eu não vou levantar.

- Vamos comigo Adalberto.

- Não. Eu não saio dessa cama mais nem com simpatia.

- Ah não?

- Não.

- Ta ok, então eu vou aproveitar pra fazer uma simpatia pra arrumar um novo marido.

Ela fala e sai, batendo o pé.

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Meia noite de réveillon, os três estão na beira do mar.

- E ai, prontos?

- Quantas ondinhas são mesmo?

- Três.

- Não são sete.

- Ué, eu achei que eram doze.

Antes que a primeira onda chegue aos pés deles, eles voltam para areia.

- E ai, quantas vão ser?

- Eu pulo todo ano sete.

- Então não são sete.

- Ei.

- É, ele tem razão.

- Mas esse ano passou foi bom.

- Mas você não passou a virada na praia.

- Aé.

- Então são três.

- Não pode ser três.

- Por quê?

- Porque três é muito pouco. Não faz sentido.

- Ah, e doze faz?

- Sim, equivale aos meses do ano.

- Se for assim três equivale uma para cada quatro meses.

- Nada a ver.

- Tudo a ver.

- Gente, temos que resolver isso antes do próximo réveillon.

- Vamos perguntar. Quantas ondas são?

- Quinze.

- Quinze?

- São nove. – fala a pessoa do outro lado.

- Lógico que não, são cinco. – outro se intromete.

Começa uma discussão na praia.

- Quer saber não vamos pular ondinha nenhuma.

Os três concordam e vão se encaminhando para fora da praia.

- Verdade. Não serve pra nada, só pra molhar a barra da calça nova e branca e termos que ir embora mais cedo. Vamos fazer a simpatia das três uvas.

- Mas não são sete?

- Lá em casa nós sempre comemos doze.

Afonso Padilha
Enviado por Afonso Padilha em 01/01/2013
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