No jantar

Isaque e Fernanda estavam em um restaurante sofisticado. Para Isaque, aquele jantar tinha status de missão de paz da ONU. A esposa estava uma fera com ele há algum tempo. Vivia falando de um monte de coisas que pareciam saídas de um consultório de terapia para casais. Mas tudo girava em torno de romantismo. Cobrava atitudes românticas, gestos românticos, palavras românticas. Cobrava, cobrava e cobrava, como que para compensar os anos que haviam passado no vazio. “Como é possível eu estar em um casamento e me sentir tão só?” Este parecia ser o mantra dela. E não adiantava ele dizer que há quinze anos ela sabia que ele era assim, mais contido nos afetos. Fazia as conversas entre eles parecerem discussões dignas de Casos de Família.

Tudo ficara pior quando ele comprara um carro novo, há pouco tempo. Agora ela se queixava que o carro contribuía para aumentar a distância emocional entre os dois. Ele tinha que por um fim nessas desavenças e por isso estavam ali.

O pessoal do trabalho havia caçoado da ideia:

“Desde quando levar uma mulher faladeira e brava para um restaurante cheio é algo inteligente a se fazer?”

“Ela vai fazer você passar vergonha.”

“Faz esse jantar em casa mesmo.”

Sabiam que Isaque tinha verdadeiro pavor de chamar atenção em público. Mas ele não lhes deu ouvidos. Nada do que vinha fazendo ultimamente parecia suficiente. Precisava de algo mais arrebatador.

O restaurante tinha um espaço moderno e acolhedor. A iluminação era suave, delicada, um verdadeiro convite para o romance. Quadros com pinturas abstratas destacavam-se nas paredes. Sem Fernanda perceber, Isaque observou as pessoas que chegavam, torcendo para que não viesse muita gente. Para sua insatisfação, poucas mesas ficaram vazias. Contudo, no decorrer do jantar, empurrou esse detalhe para um canto distante da mente. Todo mundo parecia cuidar da própria vida, e até mesmo eles ali conversavam em um tom de voz manso, amistoso.

Fernanda mal havia tocado no prato que eles pediram. Não devia estar com fome, o convite havia sido surpresa mesmo. Por outro lado, estava bebendo vinho sem parar. Tudo bem, pensou ele, quanto mais bebia, mais relaxada ela ficava.Ele havia planejado bem suas atitudes para essa noite. Seria um Isaque do jeito que ela queria, gentil, atencioso, galanteador. Um projeto de Don Juan. Havia sido assim quando a conhecera? Não se lembrava. Mas estava cumprindo bem o seu papel. Agora mesmo, segurava a mão dela pousada sobre a mesa, numa demonstração convincente de carinho. Terminava um doce gole de vinho, quando veio uma pergunta:

- Você reparou que essas luzes deixam os quadros mais dramáticos? – ela olhava para os lados, um copo cheio na mão.

- Não, não reparei. Você tem um olho bom para essas coisas.

- De nós dois, eu sou a que mais se importa com os pequenos detalhes, não é?

Fernanda deu um sorriso enviesado e tomou o restante do vinho em um gole só. Isaque também sorriu, mas aquilo foi mais um movimento involuntário da boca que qualquer outra coisa. Veio-lhe a imagem de uma estrada com curvas perigosas e um motorista descuidado ao volante. Não havia com que se preocupar, ou havia? Ela estava tão calma até agora, tão controlada. Era verdade que quando começava a falar de algo, não parava mais, mas estavam em uma situação prazerosa, fora da rotina, certo?

Houve um momento de silêncio, enquanto ela enchia novamente o copo com uma das mãos.

- Sabe – recomeçou ela, afastando a outra mão do carinho de Isaque – há pouco tempo me dei conta de algo curioso. Quer ouvir o que é?

- Claro – ele manobrou as sílabas devagar.

- Quando lembro dos momentos bons da vida, eles aparecem na minha cabeça como dias ensolarados. O engraçado é que nem todos foram mesmo em épocas de sol.

- Interessante.

- Não é? Para os momentos desagradáveis, que são muitos, você sabe – ela piscou maliciosa – o tempo é nublado...

Silêncio. Uma curva se aproximava.

- Deve ser mais ou menos assim com todo mundo. – Isaque olhou para os lados apreensivo.

- É mesmo? Vamos ver – esvaziou o copo rapidamente e recomeçou com uma voz ao mesmo tempo mais alta e engasgada - Como são os momentos desagradáveis para você? Ou você simplesmente não pensa neles?

O rosto de Isaque assumiu um ar aflito. Para esconder, ele coçou o alto do nariz, entre os olhos. Ótimo, pensou, ela queria transformar o jantar em lavagem de roupa suja, estava na cara. E ele não podia entrar na discussão, não ali. O jeito era conduzir essa conversa para outro caminho, um terreno menos acidentado e tranquilo. Sentiu uma veia da testa pulsando enlouquecida. E se não conseguisse e atraísse os olhares daquele restaurante lotado, cheio de olhos curiosos que não hesitariam em cair em cima deles para apreciar o barraco? Por Deus, não!

- Proponho um jogo, um joguinho bobo – continuou Fernanda – Você diz um momento das nossas vidas e eu respondo se na minha cabeça ele aparece como ensolarado ou nublado.

- Se é para deixar a noite mais divertida, eu sugiro um jogo mais interessante e que a gente pode fazer lá em casa – foi a vez dele piscar sugestivo.

Ela gargalhou. Isaque viu algumas cabeças se moverem na direção deles, mas foi coisa rápida. Olhar, perder o interesse, voltar.

- Você sempre desfazendo das minhas sugestões, né? Mas hoje vamos fazer do meu jeito. Você prometeu que a noite seria minha, esqueceu?

- Ok, mas dependendo do que eu disser, suas respostas vão ser muito óbvias, não acha?

- Nem sempre, nem sempre. Nem tudo que você acha que me agradou, foi bom mesmo. Hoje é o dia que você pode descobrir.

- Não tô nem um pouco curioso, Fernanda.

- Ah, estraga-prazeres! Estraga-prazeres! Vamos fazer o seguinte, então: eu falo um momento, um fato e você tenta adivinhar se houve sol ou nuvens.

- Você bebeu demais, Fernanda – disse ele tentando ser mais categórico.

- Não, não bebi – explodiu ela – Não bebi. Você sempre tentando sair pela tangente. Teve o descaramento de nos trazer aqui naquele seu carro que sabe que eu não suporto. – a voz dela foi se elevando perigosamente. Era mais uma curva sinuosa e depois dessa poderia haver um desastre, pensou Isaque agitado. Tinha que fazer alguma coisa, não queria lavar roupa suja em público. Tomou uma decisão, enquanto a torrente prosseguia – Sempre na sua, nunca disposto a falar o que se passa, nunca quer dividir e vem com a desculpinha esfarrapada de que gosta de falar só o que é importante. “Sou econômico” Econômico?! Sabe o que você pode fazer com a sua economia? Enf...

Isaque levantou apressado e avançou na direção da esposa em passos anormalmente ligeiros. Inclinou-se e tapou a boca de Fernanda com um beijo a tempo de evitar que ela gritasse a última frase para todo mundo ouvir. Teria sido uma cena das mais românticas, se o movimento inesperado não tivesse surpreendido um garçom que vinha apressado, carregando uma bandeja com vários copos, uma garrafa e uma refeição fumegante. Pego de surpresa, o garçom não teve tempo de se desviar e esbarrou em Isaque. A bandeja desequilibrou-se de sua mão, indo cair na mesa mais próxima. Um forte estrépito, onde se misturavam sons de copos se partindo, metal tinindo e outros estrondos, fez-se ouvir. Os ocupantes da mesa levantaram assustados, mas não foram rápidos o bastante para evitar que respingos de bebida e comida caíssem em cima deles.

Não adiantou para Isaque. Evitou que Fernanda chamasse atenção pela exaltação, mas acabou chamando atenção por algo mais constrangedor. E pior: que pesou no bolso, pois teve que arcar com parte do prejuízo pelas perdas que causou. Nem sequer levaram em conta que aquilo havia acontecido por causa da demonstração de um sentimento romântico. A verdade é que nem mesmo Fernanda levou isso em consideração, porque encheu seu ouvido de falação ao saírem do restaurante e ao entrarem no carro. Talvez tivesse sido melhor, deixar só ela reclamando. Teria sido mais tranqüilo.

Alex Nunes
Enviado por Alex Nunes em 26/05/2013
Código do texto: T4310379
Classificação de conteúdo: seguro