Apocalipse no consultório



          -Calma Rutiléia, anda devagar,  não gosto desses consultorios, eu gosto é do SUS, lá o médico passa seis garrafas de soro e fico bom- disse Roberto.
          -Anda homem que chegou a na nossa vez – dizia RutilÉia e rebocava o marido pelo braço.
          Roberto é alcoolista assumido, por longos anos a cachaça, ressaca e farra com mulheres foi o centro da sua vida,  até que a idade chegou, ficou doente: cirrose, hepatite C, já foi internado cinco vezes, duas delas em clínicas psiquiátricas. Foi humilhante, pois colocaram um homem são com doidos varridos.
          Estava no médico porque sua saúde debilitou de uma hora para outra devido a uma diarreia e a um vômito impertinente. Ficou fraco por isso andava cambaleante, face opaca, emagrecido nas extremidades, braços e pernas, o ventre crescido, sua barriga parecia o globo e as pernas varetas, sentia uma cólica abdominal forte.
          O andar estava incerto, com dificuldade, o braço esquerdo estava seguro pelas mãos quentes de Rutiléia, a mão direita segurava uma sacola plástica para o vômito.
          Rutiléia agora era sua companheira, depois que a mulher que Roberto levou para o altar o abandonou devido as suas aventuras ébrias e luxuriantes.
          Funcionário da companhia de petróleo, com uma aposentadoria gorda, tinha um bom plano de saúde.
          -Oi doutor, bom dia – disse Rutiléia ao entrar no consultório e continuou com a voz tímida - estou trazendo o Roberto praticamente a força.
          -Não adianta, não vou parar de beber, já disse que não estou aqui por causa da bebida, tem dois dias que eu não bebo. - Disse roberto em sua defesa.
          -O senhor está a beira da morte sr. Roberto. – Disse o médico que tinha o péssimo hábito de roer as unhas, Roberto observou isso, cada um com o seu pecado.
          -E daí, quem não morre? –Disse Roberto, Rutiléia não gostou e apertou o braço de Roberto para que respeitasse o médico, autoridade máxima no assunto.
          -O senhor está com cirrose avançada, distúrbio cardíaco, mais um monte de problema relacionado ao álcool. – O médico ajeitava o óculos quando falava.
          -Não consigo ficar de pé por causa dessa caganeira. Veja doutor a Rutiléia fez um bobó de camarão tão gostoso! O problema é que o camarão deve ter morrido em 1970 . A mulher tem mania de congelar comida e deixar congelando, tudo ela congela, sobrou um pedaço de coxinha, Rutiléia põe em um saquinho, passa papel laminado e congela.
          Rutiléia estava invocada, tinha os cabelos pintados de ruivos, olhos cercados de rugas e roupas desproporcionais ao seu tamanho, ridicularmente apertadas.
          -Agora a culpa é minha! - disse Rutiléia soltando o braço do marido canastrão.
          -Acho que não é bom congelar comida assim. – Disse o médico com cara de nojo.
          -Fala pra ele Roberto. Que deve ser porque eu congelo comida que você está broxa. – Disse Rutiléia.
          -Fala o que mulher? Estou me concentrando aqui para não me cagar na frente do médico – disse Roberto, coçando a barba.
          -Você quer que eu fale? - perguntou Rutiléia.
          -Não eu falo, doutor de uns dias pra cá o meu pinto não sobe, nem a poder de reza braba, nem por "São Viagra"– disse Roberto.
          -Bebida afeta a potência do homem. – Disse o médico.
          -Está vendo? Tudo é culpa da cachaça!– Disse Roberto e levantou, cambaleante por uns istantes, Rutiléia o segurou.
          -Onde você vai?
          -Onde eu vou você não pode ir por mim – disse para Rutiléia – e tenho que andar rápido.
          -Onde fica o banheiro Doutor? - Disse Rutiléia.
          -Do lado da sala de espera, logo ali– disse o médico enquanto digitava no computador.
          Roberto saiu apressado com passos imprecisos, Rutiléia segurava no braço dele, para que não caísse, quando ele virou a direita da sala de espera deu de cara com a porta do banheiro fechada.
          -Puta que pariu! Quem fechou essa  porta gente? - Mexeu na maçaneta até quase derrubar a porta, vendo aquela luta, um segurança patrimonial se apressou e veio correndo, não falou uma palavra e pendurou a placa  na maçaneta do banheiro com os dizeres: “interditado”.
          As quatro senhoras que aguardavam a consulta com cara de penitentes sorriram.
          A sala de espera estava lotada, além das senhoras sentadas havia ainda gente em pé, um senhor careca e uma mocinha magra de vestido vermelho com cara de louca.
          As senhoras ficaram atentas, sentiam um misto de pena e desprezo  por Roberto, uma delas chegou a falar baixinho para outra.
          -Veja o que a cachaça faz com as pessoas – disse e olhou com o canto do olho para Roberto que parecia agitado, olhando para um lado e outro.
          Quem olhasse para Roberto naquele momento estaria olhando para um homem que teve a razão subitraída.
           -Gente do céu um banheiro, é urgência!- Gritou Rutiléia.       
          Uma das senhoras encolheu na cadeira.
          -Ah meu Deus, dizem que eles vomitam sangue – falou e retirou da bolça um terço.
          Alguém de jaleco falou com Rutiléia, pois ouviu a sua súplica.
          -Senhora, só têm banheiro no terceiro andar.
          -Como? - Perguntou Roberto.
          -Três lances acima – disse o homem de jaleco.
          Roberto tomou uma decisão liminar: pegou a lata de lixo perto da fofoqueira com o terço, retirou as calças, sentou confortavelmente na lata de lixo aliviando o seu desespero com uma descarga intestinal ruidosa, chegou a sorrir.
          Passou uma fração de segundos após o primeiro som da liberação intestinal de Roberto até que a senhora dona do terço desmaiasse e toda a gente correu para acudir.
          O homem careca disse horrorizado junto a pobre senhora desfalecida.
          -Ele está cagando na nossa frente?
          -O senhor comeu alguma coisa podre - disse a menina de vestido vermelho tampando o nariz.
          O segurança percebeu tudo, viu que havia dano patrimonial - a lixeira - partiu para o ataque para recuperar a lixeira. 
          A sala de espera virou uma batalha de esgrimistas, cujo o prêmio era uma lixeira cheia de merda.
          A rivalidade se entabulou entre dois mestres, de um lado o segurança patrimonial, estava disposto a tudo para protejer a lixeira, do outro Roberto, com muita  "coisa"  para dar a sua querida e salvadora lixeira.
          A verdade é que os dois faziam movimentos precisos, no entanto o segurança estava em desvantagem, pois sentia  nojo, fez um movimento com a mão para retirar a lixeira da mão de Roberto que estava aliviado, por isso parecia destraído,  no entanto Roberto fez o movimento contrário de esquiva, nessa troca de movimentos o segurança errou a beirada da lixeira e enfiou a mão na merda.
          Quem estava ali não aguentou ao ver a mão do segurança toda suja e ouvir o choro do pobre rapaz.           
          Curiosos chegaram e outros saíram correndo da sala, até gente de muletas correu, um deles estava na maca levantou e falou: “puta que pariu o sistema de saúde está uma merda mesmo”, parecia o apocalipse, gente xingando, gente gritando, gente chorando e Roberto rindo. 
          O segurança abandonou a luta e aos gritos de “sai da frente que estou bosta pura” foi subindo os três andares para lavar a mão.
          Depopis da sequência de gargalhadas Roberto suspirou e disse:
          -Rutiléia que camarão desgraçado.






 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 17/08/2013
Reeditado em 24/10/2020
Código do texto: T4438965
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