PIMENTA NO "ZÓIO DO OUTRO"

Não foi difícil perceber a perene e correspondida paixão de ambos: a paixão dele por ela e a dela por ele.

Estavam os dois aguardando ali, bem juntinhos, abraçados, prestes a entrar na consulta do doutor João, cuja principal queixa dele seria logo esclarecida: era o inconformismo dele com o mundo atual.

Falou muito...com se esvaziasse um arquivo superlotado há anos.

Parecia algo deprimido e relatava que não assistia mais televisão.

"só coisa ruim, doutor João!" queixou-se ele com o humor visivelmente rebaixado.

Não era nada dessas depressões pseudo-dignosticadas que existem por aí e que inundam os neurônios de antidepressivos para que se cerre os olhos às realidades difíceis.

Tratava-se ele dum "deprimido algo bem consciente, até!Tinha todo o álibi do mundo para se deprimir.

-Não se preocupe, é super normal o seu estado!- exclamou o médico.

E é certo, dizia-lhe o doutor João, que toda consciência deprime quando é muito consciente.

Então, convenceu o paciente que se tratava duma doença de lucidez extrema, que fazia com que os mais sensíveis sentisse o mundo como se fose pimenta, mas era doença curável, e que ele entendia perfeitamente suas inquietações...

"Doutor, a vida às vezes parece pimenta mesmo, o senhor me entendeu, é isso!" se até já se alegrava naquela anamnese pormenorizadda.

Eu que estava ao longe pude perceber que o paciente se animou com a explicação e com a compreensão do doutor. Até já parecia curado.

Mas ela, a esposa, permanecia ansiosa, estava muito preocupada com o marido e já tentara todos os chás que conhecia: alecrim, camomila, erva santa, erva doce, erva milagreira, e nenhum chazinho daqueles supimpas que aprendera com a sua avó resgatara o maridão daquele certo sabor picante da vida.

-Doutor...ele parou tudo! parou de acreditar, de sonhar...e até de trabalhar, diz que nada mais tem sentido. E eu doutor?

Ele parou até "aquilo", sabe o que é, né doutor, acho que não me ama mais...mesmo.

Então, senti que doutor João repensaria o caso...

E o paciente, na sua super lúcida e humilde consciência lhes explicou:

"Doutor, eu amo ela de paixão, amo tanto ela que quando ela come pimenta é meus óios que ardem...".

Foi ali que doutor João entendeu o que faz uma depressão...apimenta todas as relações, todavia, prescreveu um antidepresivo e, claro, proscreveu as pimentas...para a paixão dos dois.

Já que não se pode mudar o mundo...

Nota do autor: verídico