BONS TEMPOS AQUELES!

Como tenho dito aos meus alunos, eu não vim para o Brasil com a caravana de Pedro Álvares Cabral. Mas ainda sou de um tempo, anterior a essa paranoia — misto do que se pensa ser o politicamente correto com o que certamente é um patrulhamento ideológico — de que tudo pode ser enquadrado como prática ilícita, passível, portanto, de uma indenização por danos morais.

Na minha época de criança e adolescente, anterior a essa esperteza neurótica em que tudo pode ser considerado um motivo para alguém se dizer mortalmente ofendido e injuriado, com as pessoas querendo ganhar um dinheiro extra e fácil, ao abrigo da Justiça, os apelidos, por exemplo, eram postos e recebidos com a maior tranquilidade. E tanto a meninada punha apelido nos colegas, como recebia apelido dos outros.

Se o colega era negro, passava a ser "negão"; se era ruivo, atendia como "luz traseira" ou "frango assado"; se era branco demais, "barata descascada". Se usava óculos, ganhava a alcunha de "jacaré" (nunca entendi bem essa analogia) ou "quatro olhos"; se tinha o nariz maior do que o normal, virava "Pinóquio" ou "ladrão de oxigênio"; se era gordinho, "rolha de poço"; se era magro, "varapau"; se tinha o pescoço curto, "bujão de gás". E daí prá diante.

Admito que, eu mesmo, adorava chamar os outros pelo apelido, tanto quanto me apelidavam também, tendo sido portador de vários. E nunca me ofendi ou reagi como se aquilo afetasse o meu equilíbrio emocional. É necessário reconhecer, no entanto, que nesses tempos aos quais me refiro, não havia o que hoje se enquadra como "bullying", que a Psicologia define como "violência física ou psicológica contra alguém".

Os apelidos, conquanto alguns se incomodassem com eles mais do que outros, tinham, sim, o propósito de mera chacota; não o de marcar e excluir esse ou aquele colega do grupo. Mas a chacota não se traduzia, de nenhuma forma em violência ou agressão física. Quanto a isto, lembro, até mesmo, de um fato ocorrido na turma do meu irmão, no Liceu de Cachoeiro de Itapemirim.

Havia, na classe dele, um colega que nascera com um desses problemas congênitos, em que a pessoa tem um lado do pescoço mais curto do que o outro, o que a obriga a ficar com a cabeça meio de lado. O nome do menino eu não me lembro, mas ganhou, desde o início do curso, o apelido de "Pescocinho". Pouco generoso, reconheço, porque lhe punha em evidência o defeito. Mas o fato é que a alcunha se consolidou e ele mesmo atendia, sem ofensa, quando assim o chamavam.

Mas como menino é um bichinho desocupado e, segundo dizem, "cabeça desocupada é a oficina do Diabo", num certo dia, alguém, na falta de algo melhor para fazer, deu a ideia de consertarem o problema do "Pescocinho", assim, na marra. Juntaram-se uns três ou quatro e, segurando o menino, começaram a tentar nivelar o seu pescoço. O que, certamente, deve ter começado a doer, fazendo com ele acabasse chorando.

Armada a confusão, interveio o bedel e o assunto acabou sendo levado ao Chefe de Disciplina, que era uma cavalgadura batizada, embora se julgasse um oráculo, em matéria de promover a justiça e manter a disciplina daqueles encapetados alunos do Liceu. A turma ficou retida, após a última aula do dia, que acabava bem ao meio dia e, à sala, compareceu a dita autoridade.

Passou um sermão nos imbecis que tinham tido a iniciativa da brincadeira de mau gosto e, por extensão, no resto da turma, que, se nada fizera, pelo menos se divertira com a tosca ideia. Mas, como naquele tempo a regra era "não acusar ninguém", todos ouviram a completa descompostura do Chefe de Disciplina, "azuis de fome" (pelo adiantado da hora) e mortos de medo (porque a pena de suspensão coletiva parecia iminente).

Por alguma razão, no entanto, neste dia estava o homem de bom humor, porque preferiu aplicar ao caso uma solução mais "pedagógica". E ia chamando a turma à responsabilidade:

— Vocês entendem que erraram com o colega? Entendem que ele tem um problema e que isto não pode servir de brincadeira? Sabem o que fizeram foi uma coisa grave?...

E os alunos iam confirmando, com acenos de cabeça ou com "sim senhor" e outras assertivas do mesmo gênero. Até que ele falou:

— Pois bem... Vou dar a vocês uma chance de se desculparem com o colega. Mas fiquem sabendo que, da próxima vez que fizerem uma brincadeira dessas, serão, pelo menos, três dias de suspensão!

O arrepio foi geral! Quem é que queria enfrentar três dias de suspensão, naqueles tempos em que ainda não havia Lei da Palmada e nem Conselhos Tutelares? Naquele tempo em que os pais davam razão aos professores e não ao que os filhos faziam de errado na escola?!

Foi quando, para arrematar, o tosco chefe de disciplina perguntou, em tom de ameaça:

— Então vão se desculpar colega?

— Sim, "seo" Joênio! Claro, "seo" Joênio! Com certeza, "seo" Joênio!...

E "seo" Joênio, do alto da sua imbecilidade, dirigindo-se a "Pescocinho", deu a ordem final:

— Levante-se o aleijado!

E, estando "Pescocinho" em pé, a turma, em peso lhe disse:

— Desculpe, "Pescocinho"!

Vão ser sutis, assim, lá na estrebaria! Mas não me lembro, apesar de tudo, de alguém pensar em processar o Liceu por essa cretinice coletiva. E, mais ainda: "Pescocinho" voltou a brincar, estudar e jogar bola com o resto dos colegas, como se nada houvesse acontecido...