RELIGIÃO – A Vinda do Ente Triste (ou: A Meia Noite Aproxima-se)

O ente triste dormiu e sonhou.

Em sono profundo, dessa vez ele soube de coisas sobre seu passado do Antes-Do-Nunca-Na-História-Desse-País.

Foi levado em sonho como se estivesse numa viagem astral, quando tudo lhe veio como uma revelação.

Sentiu-se flutuar, todo o ambiente do sonho acusticamente tomado por uma bela e familiar melodia.

Era a trilha sonora de uma anterior encarnação de um tempo em que ele ainda não acreditava que a classe média realmente existia.

Aliás, num turbilhão repentino de ondas oníricas, o seu subconsciente apresentava agora um flashback de quando ele havia testemunhado a criação do Homem, conforme a narração das Escrituras.

Viu quando aquela "bebida" foi destilada e entregue diretamente das mãos de Eva para o pobre Adão.

Viu o primeiro homicídio acontecer, e testemunhou diante dos Céus. Nessa fase, ele era conhecido dos deuses como Hula-Lá, o molusco.

Hula-Lá, então, brilhou como uma estrela.

Mas Hula-Lá sentiu-se incomodado porque viu que o povo do mundo estava ficando muito liberal e até neoliberal, uma espécie de classe aburguesada.

Nessa época, surgia na Terra um ser quase tão perfeito quanto o nobre Hula-Lá, um espécime também evoluído dos moluscos e que era conhecido como Úgui-Úgui-Enchávez.

Dizem que ambos Hula-Lá e Úgui-Úgui-Enchávez haviam sido fortemente enfeitiçados pela deusa do Mal, temida pela classe aburguesada, fêmea de intelecto desenvolvido cujo terrível nome ecoava pelas regiões cavernosas na forma de um som rouco: “Bahri-Léndja-Shaonii”.

Manuscritos registram que aquela tríade, formada pela união das forças de Hula-Lá, Úgui-Úgui-Enchávez e Bahri-Léndja-Shaonii, ajudou o Criador a optar em mandar o Dilúvio.

Continuando tomado por aquele sonho, o ente triste sentiu-se avançando no tempo e, quando alcançou a História Clássica, ficou indignado com os filósofos gregos que inventaram a lenda de uma tal Atlântida, com isso desfigurando a realidade que ele presenciara e testemunhara.

Felizmente, sentiu-se arrastado para diante na História e ajudou a “fazer a cabeça” dos soberanos que custearam as Grandes Navegações.

Na América do Sul já povoada, finalmente, nasceu no corpo do grande Caramuru, o famoso bacamarteiro que pegou muitas índias no meio do mato do imenso Brasil-Colônia.

E, no sonho do ente triste, ele caminhava entre os arbustos recolhendo fragmentos de chumbo dos tiros já deflagrados, mostrando-os orgulhosamente às indiazinhas também orgulhosas de seu garanhão .

Tudo foi engolfado num redemoinho de ondas oníricas, outra vez.

O velho ente triste agora se via presente aos tempos em que um país chamado Brasil precisava de alguém que não necessitasse de trabalhar, dedicando-se exclusivamente a se tornar uma lenda. Viu então isso se tornar possível, a partir da segunda metade do Século XX da Era Cristã.

Pareceu-lhe, naquele ponto do sonho, ter sido puxado pelos cordões do destino em direção ao seu papel de salvador.

Mas, o som que tocava ao fundo mudou e ele começou a escutar, em lugar da música, o ribombar de um brado estranho:

“- À meia-noite virei buscar a tua alma!”

Sufocado (Oh, não!), o ente triste sentiu a agonia de tudo se tornar um pesadelo, quando percebeu que o belo sonho ufanista mudava para algo que lhe soava terrível.

Tomou-se de muito medo, pois descobria agora que os Céus pareciam ter se enfastiado de sua mania de pensar que é eterno... !

O som ficou mais estridente e, de repente, pareciam vaias...!

Mas, para seu alívio, o ente triste acordou e estava de volta ao futuro do pretérito