A seita da Grã Ordem da lamparina Sagrada - parte IX

Já era manhã e Hiflar ainda não havia dormido.Como um planeta interior em busca de alinhamento com seus pares, sua mente girava em torno de questões fundamentais: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Em que barraca vamos dormir amanhã?

Toda manhã Hiflar sentia-se muito mal – isto não significava que no decorrer do dia, à tarde ou mesmo à noitinha, ele se sentisse bem. Mas naquela manhã estava particularmente mal. Talvez porque estivesse pensando na finitude da existência... Mas o mais grave mesmo, era não saber onde iria dormir amanhã.

Oluap estava meio irritado com ele. Na verdade todo mundo estava irritado com ele. Mas como ele não dormia na barraca de todo mundo, então, só se importava com a irritação do Oluap. Se fosse expulso da barraca estaria fulminado. As noites eram bem frias naquele lugar. A barraca que Oluap havia armado estava toda torta, muito mau montada – como tudo que Oluap fazia, a montagem da barraca não funcionou e nem deu certo. Se soprasse um ventinho mais forte ela iria pelos ares. Mas mesmo assim era melhor dormir na barraca do que fora dela.

Levantou a cabeça e tentou erguer o corpo. Sentiu um aperto na garganta e no coração. Sentiu este aperto em quase todos os outros órgãos também, mas isto era extremamente normal.

Abriu os olhos e não viu ninguém por perto.

Balançou a cabeça, fechou e abriu os olhos e continuou não vendo ninguém por perto.

Preocupado, balançou novamente a cabeça, fechou e abriu os olhos de novo e obstinadamente, continuou não vendo ninguém por perto.

Balançou os olhos, fechou e abriu a cabeça... E achou que isto tudo estava ficando muito confuso.

Saiu da barraca e viu que tinha um monte de gente por perto.

Uma destas pessoas que estavam por perto, era a quarta pessoa com nome esquisito nesta estória, e o terceiro personagem com real importância na estória da criação da Seita da Grã Ordem da Lamparina Sagrada.

Esta pessoa era – até onde as aparências podem sugerir – uma mulher. E o seu nome causaria estranheza, ate mesmo em uma ameba que sobrevivesse á entrada no horizonte de eventos, de um buraco negro causado pelo colapso gravitacional de uma estrela super massiva.

Chamava-se Alic Sirp. Estava terminando o seu desjejum, quando viu Hiflar sair da barraca e caminhar – assim como caminham os Paranóico-maníacos-depressivos – em sua direção.

Alic Sirp era uma pessoa extremamente bondosa. Abominava a crueldade com os animais. Era totalmente contra o aprisionamento de passarinhos, e administrava os fundos públicos de uma ONG que se dedicava à erradicação mundial das brigas de galo. Certa vez planejou invadir um jardim zoológico, com a intenção de libertar todos os animais. Seu plano só não foi posto em pratica, porque em frente ao zoológico, havia um shooping center, que ela acabou entrando por acaso e se distraiu olhando as vitrines. Passou a tarde inteira no shooping e acabou por esquecer o plano libertador. Mas em compensação comprou um casaco de vison feito de pele de raposa polar. Um luxo! Não foi barato, mas ela dividiu em doze vezes no cartão de credito de Ramis Seomis - voces ainda irao ouvir falar neste sujeito de nome esquisito -, e ainda ganhou de brinde um pequeno sirilampo – seja lá o que isso for – empalhado originário das florestas tropicais da Toscana. Uma pechincha.

Seu desjejum era um tanto que frugal. Consistia em alguns pedaços de porco, fritos em gordura estraida de lanhas de toucinho. Acompanhava, partes de frango como, coxa, asinhas e sobrecu, fritos na mesma gordura.

Hiflar já chegou sendo desagradável. E não apenas pelo seu caminhar desagradável de paranóico-maniaco-depressivo-suicida.

A forma como caminhava, como parava de caminhar, como falava, como ficava calado, como gesticulava, como permanecia imóvel, enfim, Hiflar conseguia ser desagradável de todas as formas possíveis. Mas nesta manhã, ele estava conseguindo se superar. Alem de todas estas formas desagradáveis de se comportar, naquele dia ele estava desagradavelmente beligerante.

Zombou de Alic Sirp:

____Vejo que está comendo, hein?

____Não sua besta! Estou sentada aqui esperando que ocorra um eclipse.

____O quié isto que esta fritando? Perguntou Hiflar, anotando mentalmente a resposta mal educada sobre o eclipse, para poder usar quando Oluap lhe enchesse o saco.

____São pedaços de porco. Estão fritando em gordura extraída de lanhas de toucinho. Pode pegar um pedaço pequeno se quiser. Respondeu a mulher, enquanto limpava os dedos sujos de gordura nos próprios cabelos.

Hiflar recusou indignado:

____Não quero! Você sabe muito bem que eu não como carne. Procuro evitar todo e qualquer sofrimento desnecessário.

____Mas para estar comendo – Alic Sirp, nas horas vagas, trabalhava como Operadora de Telemarkenting – estes pedaços de porcos fritos em gordura extraídos de lanhas de toucinho, não foi preciso estar causando nenhum sofrimento.

Hiflar transpirando ironia retrucou:

____Ah não é? Por acaso este suíno já nasceu assim em pedaços?

____Não! Claro!

____Então para fazê-lo assim em pedaços, foi preciso antes matá-lo, não?

____ Claro que foi. Ou você acha que eu iria estar cortando em pedaços um porco ainda vivo? Respondeu Alic, fazendo outra pergunta.

____ Então, devo presumir que este pobre e inocente suíno, - pigarreou como se estivesse em uma tribuna da ONU debatendo sobre situação no oriente médio - foi assassinado covardemente. E você, com pedaços da carcaça do pobre animal entre os dentes, ainda vai me dizer que não houve sofrimento?

____ Não, não houve sofrimento!

____ Comé quié? Disse Hiflar, surpreso como se o Hamas tivesse explodido a tribuna em que ele discursava.

____ Não houve sofrimento. Este pedaço de porco que estou devorando, é um fragmento da costela de um suíno geneticamente modificado.

____ Geneticamente modificado? Disse Hiflar, agora arregalando os olhos como se os caras do Hamas estivessem invadindo o local, de armas em punho.

____ É isso aí! Nunca ouviu falar da Planice Endemoniada não? Perguntou, e sem esperar pela resposta emendou:

____ Por todos os cantos do planeta os vegetarianos, por muitos anos vem atacando de forma sistemática, os comedores de carne. Temos sido chamados de bárbaros insensíveis e indiferentes ao sofrimento alheio. Mas agora chegou a nossa redenção! Uma empresa de biotecnologia chamada Planície Endemoniada Corporation , desenvolveu um porco geneticamente modificado para sentir prazer em ser comido. As porcas mães sentem uma satisfação indescritível, quando vêem seus rebentos, engordando dia a dia, em cubículos mega esterilizados, para quando chegarem no peso ideal, serem mortos com galhardia, nos abatedouros dotados de sistemas de qualidade total.

A planície Endemoniada Corporations desenvolve dinâmicas de grupo, onde os porcos, podem expressar toda o seu orgulho em ser um elo na cadeia alimentar dos comedores de carne. Lógico que o sonho de todos eles é um dia ser transformado em uma suculenta costeleta ao molho de aspargos, mas isto não diminui a satisfação daqueles que são transformados em lingüiças, torresmo, bacon, feijoadas e todos estes menos sofisticados, mas não menos nobres pedaços de porco.

Fez uma pausa para tirar alguns fios do seu cabelo que estavam erolados em um joelho de porco semidevorado, entre seus labios, e prosseguiu:

____ Agora podemos comer porcos picados e fritos em sua própria gordura, sem nenhum problema de consciencia. Sem o menor perigo de estarmos sendo cruéis ou desumanos com os bichinhos. A planície Endemoniada Corporation nos entrega um certificado assinado pelo próprio porco e endossado pelo S. A. S. – Superintendência de Assuntos Suínos - da corporação, garantindo, que o porco em questão, além de ter orgulho e satisfação em ser comido, ainda agradece a oportunidade de poder participar da cadeia alimentar de tão distinto primata. No documento o animalzinho se declara realizado em contribuir para a fascinante aventura humana na terra.

Alic Sirp, contrariando as características da alma feminina, gostava de falar.Falava que nem judeu pobre na chuva, querendo indenização de guerra.

Aquela conversa toda deixou Hiflar ainda mais deprimido do que ele costumava ser.

Alic Sirp, sensibilizada com a situação do amigo, calou-se, parando de fazer a segunda - a primeira era comer pedaços de porco – coisa que mais gostava. Abriu um livro de receitas da Ana Maria Braga, e foi verificar se tinha todos os ingredientes para temperar o “Macaco Prego Grelhado á Moda Louro Jose”. Afinal já estava quase na hora do almoço.

Hiflar balançou a cabeça, fechou e abriu os olhos. Estava confuso. Apesar de ver um monte de gente por perto, estava muito confuso.

Devorou um pedaço de porco e voltou para a sua barraca, onde tinha certeza que mesmo se balançasse a cabeça, abrisse e fechasse os olhos, mesmo assim, não veria ninguém por perto.

milimetro
Enviado por milimetro em 29/05/2007
Reeditado em 28/12/2007
Código do texto: T505138
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.