COMO O MEU PAI PARTICIPOU DA LUTA ARMADA

Quem conhece a nossa família haverá de estranhar o título dado a estes apontamentos, porque sabe que somos uma raça de gente muito calma e muito tranquila. Falo, especialmente, da minha família paterna, formada por oito irmãos, nascidos na cidade de Viçosa, alguns dos quais viveram a maior parte de sua vida naquele lugar bucólico, que se localiza na Serra da Ibiapaba, divisa natural entre o Ceará e o Piauí.

Com as diferenças comuns e as características individualizantes, que existem em toda irmandade, meu pai e seus irmãos formaram um núcleo familiar algo original: todos homens, possuidores de um biótipo muito semelhante, constituíam uma espécie de escadinha, com uma diferença média de uns dois anos de cada um para o outro. De temperamento contido, mas com um senso de humor apurado — uns mais e outro menos, tanto numa coisa como noutra — era algo bonito vê-los reunidos, mais confabulando do que conversando, dada a sua natureza reservada, que vem dos nossos ancestrais.

Mas a família, pela compreensível importância na comunidade, tinha lá a sua queda para a política, desde o tempo do meu avô, que foi prefeito da cidade em dois mandatos, no que foi sucedido pelo seu filho mais velho, também prefeito de Viçosa, por duas vezes. Representava, portanto, uma das correntes políticas locais. E a política partidária, para quem pretende exercitá-la a sério, sempre é fonte de muitos dissabores. Assim, mesmo depois que os filhos se afastaram das lides eleitorais viçosenses, continuaram a ser vistos como parte de uma tendência política, o que lhes custou alguns aborrecimentos.

Pois foi em razão disto que, na vigência da ditadura de 1964, um prefeito da cidade, pertencente à tendência partidária antagônica, numa estratégia tosca de perseguição aos contrários, reuniu um grupo de desocupados e sugeriu que invadissem uma propriedade da família, ao tempo em que ainda nem se falava nesse tal de MST. Os invasores, que não passavam de uns dez, entraram na propriedade dos Pinho Pessôa, sem nenhuma resistência. E um empregado deles mandou avisá-los do fato.

Na ocasião, estavam na cidade apenas três ou quatro dos irmãos e decidiu-se que dois deles iriam até lá, para cuidar do assunto: o meu pai e o meu tio Justiniano, que foram escalados para isto. Não dá para imaginar duas pessoas mais calmas, mais divertidas e mais ponderadas do que esses dois! Penso, até, que se tivessem colocado a dupla para negociar com o Osama Bin Laden, talvez, "as torres gêmeas" nunca tivessem caído.

Chegaram à propriedade, reuniram os invasores do prefeito e explicaram que aquilo ali tinha dono e que não era terra abandonada para se fazer reforma agrária. Um argumento simples, posto de forma simples, por quem estava acostumado com a simplicidade daquela gente. A ponderação surtiu o efeito desejado, porque os ancestrais dos "sem terra" de hoje, meio sem graça, se retiraram e deram por encerrada a invasão.

E os irmãos, sem mais nada para fazer, resolveram ficar por ali um pouco, apenas para ver se os desocupados não retornariam mais tarde. Não retornaram, mas um outro tio, ainda sem saber do que ocorrera, teve a descabida ideia de que seria bom se os negociadores da família, por simples cautela, tivessem consigo alguma arma.

Porém, como ninguém no clã costumava usar arma, catou umas duas ou três espingardas antigas e meio enferrujadas que havia pela casa, ainda do tempo dos avós, e as entregou a um empregado da família, para que as levasse até os "artilheiros da linha de frente". Que, de qualquer forma, não saberiam como utilizar todo aquele poder bélico posto à sua disposição, acrescido do fato de que o comandante da retaguarda também não se lembrara que uma arma não atira sem munição. E, portanto, não lhes mandou um único cartucho. Ora, pois!

E como se a tolice fosse pouca, o emissário do comando achou muito empolgante sair exibindo o "arsenal" pela rua afora, em direção ao local do "conflito". Lá se foi para a propriedade onde o meu tio e o meu pai, matando o tempo de espera, conversavam, distraídos e alheios às estratégias da guerrilha que o irmão traçava para eles, na sala da Casa Grande, berço de toda a família, transformada em quartel general da operação.

Enquanto isto, o emissário chegou à propriedade, para a entrega das armas, diante da absoluta surpresa dos irmãos, que, a esta altura, davam risadas das anedotas, sempre impagáveis, que o meu tio Justiniano — o melhor contador de histórias que conheci em toda a minha vida — reproduzia, para enganarem o tempo. Estupefatos, mandaram que o "oficial de ligação" batesse em retirada levando a artilharia de volta. E, algum tempo depois, convencidos de que os "invasores" não retornariam, também ganharam o caminho de retorno aos seus afazeres.

Deixe estar que, ligado à facção política do prefeito, havia um oficial do exército, filho de outra tradicional família local, que diante dos fatos aqui narrados, foi imediatamente procurado pelo alcaide. E, estando o país na época da ditadura militar e das denúncias sem comprovação, na falta de algo mais produtivo para fazer na caserna, o "milico" tacou-lhes, no meu pai e no meu tio Justiniano, um registro por "movimento armado" na Auditoria Militar mais próxima. O que, sendo ambos servidores públicos federais — um na área da educação; outro, na área da agricultura — custou-lhes uma anotação em seus assentamentos funcionais, através da Divisão de Segurança e Informação - DSI, que cada ministério possuía, naquele período de paranoia denuncista.

Não sei nem se o meu tio algum dia soube disto. E o meu pai, disto só soube porque, algum tempo depois, vindo-lhe a oportunidade de viajar, para uma visita técnica, aos Estados Unidos, recebeu na respectiva papelada da viagem, um carimbo vermelho e em letras garrafais, com a objeção da tal DSI do MEC: "Não recomendado"! Conhecedor de sua natureza pacífica, porém, o seu superior no Ministério foi aprofundar os fatos, viu do que se tratava e se responsabilizou, pessoalmente, pela ida dele, apesar da espalhafatosa objeção.

Neste país surrealista, o meu pai e o meu tio Justiniano, assim como narrado, certamente foram os únicos brasileiros a serem fichados pelos órgãos de segurança, por ameaçarem a paz em Viçosa do Ceará, com uma tentativa de "luta armada". O que, convenhamos, numa comunidade pequena como aquela, onde todo mundo se conhece, seria uma ação suicida!

Por pouco mais que isto, o Lula, o Ziraldo, o Jaguar e o Carlos Heitor Cony, além muitos outros, receberam indenizações milionárias e foram aquinhoados com pensões vitalícias, à guisa de reparação pela perseguição política sofrida, durante o regime militar de 1964.

Êta Brasil mais ridículo!