O Sonho de Cacilda

O Sonho de Cacilda

Marisa Queiroz

Tivera mais uma briga com Enzo e desta vez resolvera dar um ponto final na relação. Não suportava mais viver sob o domínio de seu esporão. Macho metido a besta! Quem ele pensava que ela era? Simplesmente mais uma igual àquelas penosas que ele conhecia? Que ele podia tratá-la com desdém, como se ela fosse um simples objeto sexual, ou pior, simples máquina de fazer ovos? Iria mostrar que não!

Enzo era petulante e metido a “gostosão” apenas porque as franguinhas lá do morro, não resistiam às suas cantadas. Está certo que cantava muito bem... E quanta potencia em seu co-co-ri-có! Foi o que a seduziu desde o início da relação. Podia dizer, aliás, que o desgraçado tinha um canto tão potente quanto... Bem, vocês sabem o quê.

Mais conhecido lá em cima como Zô, o Bom de Bico, era notório seu orgulho em se saber inspirador do nome do morro onde viviam: Cantagalo! Envaidecia-o também ser o despertador mor de trabalhadores, estudantes e donas-de-casa que iniciavam sua labuta aos primeiros raios de sol. Trabalhador, bem, lá isso ela reconhecia. Trabalhador e bom de briga. Bicava todos os seus adversários, o que lhe acentuava aquele ar presunçoso e calhorda, típico dos cafajestes.

Cacilda descera morro abaixo em busca de vida nova ou talvez de uma aventura que a preenchesse e a fizesse sentir que era diferente das demais. Ardia pela oportunidade de ser famosa - por que não, se Darlene e Jakie Joy haviam conseguido? - e quando estivesse lá no topo, seria mais respeitada e admirada por Enzo, e então... Daria-lhe o troco! Ele, com certeza, lhe faria juras de fidelidade e amor eterno e ela o esnobaria, pois teria aos seus pés todos os galos que quisesse... (?) Bem, já se contentaria se, ao menos, ele a tratasse como o menino Marcelo, seu primeiro amor, a tratava: cafunés na cabeça, colinho de vez em quando, comidinha no bico, hum...Que saudades! Sonhava em transar com Enzo de forma diferente: não tão rápido e talvez com alguns beijos no cangote, sussurros no ouvido e algumas preliminares ‘calientes’.

Andava tão insegura ultimamente... Será que Enzo a reconhecia em meio às outras? Concordava que em sua raça são todas muito parecidas, às vezes até, idênticas – ela mesmo já havia confundido Marilu com Dorotéia – mas os olhos amorosos sempre distinguem o verdadeiro objeto de amor e de desejo, ensinara-lhe a menina Clarice. É uma expressão no olhar, um odor singular, um jeito de ser, de andar, de falar...!

Escutara tanta coisa, desde que morara na cozinha daquela gente amorosa que a acolhera desde que botara seu primeiro ovo... Enzo, porém, não dava qualquer sinal de que ela era especial. Soubera até, que a “cantada” que recebera dele, pela primeira vez, fora igual à que ele dava em todas as outras lá no morro - que cafajeste! - e ela havia feito tantas fantasias românticas com ele, seu primeiro amor verdadeiro.

Está certo! A sua “primeira vez”, não havia sido com Enzo! Mas com ele havia sido a primeira vez que se entregara daquele jeito: com a volúpia da mais inebriante paixão, como uma verdadeira fêmea se entrega ao macho amado. Com ele, ela se perdera e _ co-có-ri-có!_ se achara. É diferente quando é feito com amor! - bem lhe disse Clarice.

Quando o conheceu, estava pronta para viver uma autêntica relação a dois. Estava mais madura, mais humana...!? Sim, perdera muito daquele instinto puramente ovíparo. Marcelo a ensinara que o fundamental na relação a dois, era o afeto. A relação amorosa de agora em diante continha algo mais que a fazia palpitar, sonhar e cacarejar de saudades na ausência do objeto amado.

O convívio com a menina Clarice havia ensinado Cacilda a se valorizar, a ter mais amor próprio. Fizera-a entender que uma galinha é um Ser - mesmo que não se pudesse contar com ela para nada! - e que botar um ovo é muito mais do que um ato instintivo. Botar ovo era Ser Mãe. Foi preciso conhecer aquele menina para compreender o valor daquele ato.

Um ovo é uma demonstração de um querer-bem da galinha! - dissera-lhe Clarice.

É certo que não tivera tempo de dedicar seus cuidados maternos àquele ovo, pois ele havia desaparecido de seu choco.

Ele virou omelete! – dissera-lhe o pai de Clarice com uma certa malícia no olhar. Não entendia muito bem aquele significado, mas ficou tranqüila quando a menina lhe disse que omelete era algo muito bom e muito apreciado pela humanidade. Ficara orgulhosa de ser mãe de um omelete e dali por diante, passara a andar de cabeça mais erguida, com uma dignidade que antes não sabia possuir.

Imersa em seus pensamentos viu que havia adentrado num bairro chique do Rio.

Era Ipanema!

Não é aqui a terra dos poetas? Não foi aqui que surgiu a “garota de Ipanema”?

Flashes!

Fotos! Fui descoberta! Eu sabia que seria famosa!

Aproveitando seus quinze minutos de fama, Cacilda fazia poses, caras e bicos, batia levemente as asas e insinuava suas formas arredondadas... Já via suas fotos nos principais jornais da cidade e na revista FAMA. Seria contratada pela REDE GLOBO? Participaria do próximo BBB? Uma multidão se aproximava. Autógrafos.

Quem, eu?!? Ora, façam fila, por favor!

Propostas para posar nua na PLAYBOY ou na GLOBO RURAL. Convites para participar de festas de celebridades!

Um momento! Quem era aquele cavalheiro que a olhava insistentemente e se aproximava com tanta pressa? Parecia tão fogoso... Por que aquela agitação e burburinho em sua volta? Seria pela chegada daquele impetuoso? Quem era ele que a cada passo, deixava o ambiente cada vez mais agitado e acalorado? Pensando bem, reconhecia aqueles olhos injetados de sangue e fixos nela... Olhando melhor, reconhecia aquele pescoço vermelho e inchado... Ouvindo melhor...

CÓ-CÓ-RI-CÓ-ÓÓÓ !!!!!!

_ Enzo, o que está fazendo aqui?

_ Acordem e façam fila, meninas, que hoje eu tô que tôôô !!

Sem hesitar e num gesto impulsivo, Cacilda pulou do batente onde costumava dormir, bicou as outras galinhas, perdeu algumas penas e, como sempre, conseguiu se posicionar na primeira fila.

CÓ-CÓ- RI- CÓ-CÓ... CO-CÓ-RI-CÓ-CÓ... CÓ-CÓ-RI- ...

_ Cóóóó...

_ Já acabou? Ohhh!

Desgraçado! Cantando, ele mais uma vez, havia despertado nela aquele instinto puramente animal. E ela, mais uma vez, não conseguia resistir àquele furor cloacal. Havia sonhado tanta coisa enquanto dormia... Mas, quanta ilusão, na “hora h” não passava mesmo de uma simples galinha! Bem, foi bom enquanto durou... Pensando bem, talvez o amor de galinha seja assim: de rapidinhas e rapidinhas, a penosa vai enchendo o papo.

Voltou à rotina do seu dia-a dia. Cisca aqui, cisca acolá, pula a cerca, sobe no telhado quando alguém quer lhe pegar. Desvia-se de um, desvia-se de outro, corre, pula, salta e cacareja:

_ Da canja, serei a derradeira, mas na hora do CÓ-CÓ-RI-CÓ,... Saiam da frente, que serei a primeira!!