- O COMUNISTA, AS PRAGAS DO DEMÔNIO E O CABRA VOADOR -



O caso sucedeu pelo final da década de setenta, uma época em que televisão era luxo e ainda tinha gente besta no mundo. Naquele tempo eu era um garoto cheio de ideias e amigos cabeludos. Havia acabado de terminar meus estudos e para não ficar em casa fumando uns baseados e ouvindo rock o dia inteiro na vitrola, aceitei uma colocação que papai havia arrumado para mim no maior banco da cidade.

O trabalho consistia em transportar equipamentos da agência central para as pequenas, que funcionavam nas cidades mais distantes do estado. Não podia dizer que apreciava sair sacudindo por aí em estradas ruins, perigando ser assaltado, me acidentar, ou me perder naquelas brenhas dos infernos. A parte boa era que havia muito motorista largando o emprego e em pouco tempo eu ia pegar rotas bem melhores, e em dois anos, calculava estar dirigindo para o gerente da agência da capital. Era assim que eu me distraía rodando pelos caminhos tediosos e abafados do sertão.

Um dia, depois de uma sucessão infinita de árvores, cães e cercas, tudo muito igual e hipnótico, acabei me distraindo e perdendo a entrada que ia me levar ao lugar aonde teria que ir. Para piorar as coisas, não havia uma placa, um outro carro na estrada, um pé de gente que fosse para me informar qualquer coisa. A noite começava a cair e resolvi seguir em frente até a primeira placa que me indicasse algum sinal de civilização, e foi assim que depois de entrar na estradinha mais estreita, esburacada e sinistra por onde já dirigi, fui bater no aprazível distrito de Porca Prenha.

Cheguei lá pela boquinha da noite. Ainda pensei em ir até a bodega, mas o dono já arriava a porta, e eu, de tão cansado que estava, adormeci ali mesmo abraçado à minha maleta de trabalho. Acordei pela seis da manhã do dia seguinte, com o carro balançando. Abri os olhos e me vi completamente cercado por uns cinquenta meninos que imprensavam seus selvagens rostinhos contra os vidros do veículo.

Era criança por todo lado, subindo no capô, escalando o teto, e pisando nos pneus.  Naquele tempo poucas pessoas tinham carros em cidades muito pequenas. Quem já andou em distritos minúsculos como era aquele sabe que as crianças não podem ver uma novidade e vão logo assuntar o que está acontecendo. A verdade é que eu tentava sair do carro, mas não conseguia sequer abrir a porta. Gritei, mas eles nem ligaram. Mesmo que fossem apenas meninos, a quantidade deles e a sensação de confinamento estavam me dando uma terrível agonia e no meio daquele suplício, acabei enganchando a maleta na buzina, que fez um barulho dos seiscentos diabos.

Se eu tivesse jogado uma bomba no meio daquelas pragas não teria produzido efeito maior. Foi um tal de menino pulando, menino correndo, menino gritando, menino chorando, menino arrancando os cabelos que em poucos segundos eu já conseguia ver o mundo pelas janelas do carro.

Meu plano era sair dali o quanto antes, mas precisava de um banho e um mapa para conseguir voltar ao meu roteiro. Fui até um pequeno bar que ficava de frente para a praça e pedi um pingado com bolo de milho. Três outros fregueses me olhavam com desconfiança e curiosidade. Quando o garçom veio servir, aproveitei para pedir a ele que me ensinasse onde era a entrada para a cidade de Pintolândias. Acho que pedir a informação foi a senha. Em pouco tempo fui cercado de matutos se encostando em mim, metendo o bedelho na minha conversa com o rapaz, e dando pitacos sobre a estrada que me levaria ao lugar.

– Olhe, dotô – falou um rapaz alourado coçando o queixo enquanto me explicava – o siô tem que seguir pelo trevo da vaca morta, arribar pros Foveiro, e quando o siô vê do seu lado o açude da Cunceição, né ali não, tem que andar mais sete légua seguindo a fazenda do Seu Henrique.
– Deixe de sê leso, macho! – Falou o outro, impaciente – num é por ali não, abestado! Lá nos foveiro tem que quebrar pela rua do cemitério, o açude da Cunceição vai é pro lado dos Arruda. Bicho besta!

Enquanto eles gritavam eu ia tentando tomar nota das referências no meu bloquinho de papel. Mas desisti no momento em que a conversa tomou novos rumos.

– É não, seu corno! – Dizia o louro – Tu quer fazer o dotô se perdê? Vai pra baixa da égua que tu num sabe de nada. Sai daqui, sarará.
- Me chame de sarará não, fidumaégua! Tua mulher bem que dá valor quando eu mostro o sarará pra ela.
– Agora tu é um hômi morto, fidumadiscabaçada! – Falou isso e puxou uma peixeira enorme de dentro das calças. Pensei que ele ia furar a barriga do outro, mas ele mais pulava alternando as pernas e chamava o amigo para a briga, do que brigava de fato.

Logo a bodega ficou cheia de gente e no meio daquela confusão, seguraram cada um dos valentões de um lado do salão, até a chegada das autoridades.

Cabo Lúcio apareceu abrindo a pequena multidão só com o olhar e uma cuspida. De repente todo mundo se calou e ficou esperando as ordens do homenzarrão.

– Quem é o responsávi por esse funaré? – Gritou o homem com a voz mais grossa e impressionante que eu já havia ouvido até então.

Assisti, perplexo, todo mundo apontar para mim, inclusive os dois briguentos que ainda estava com os rostos vermelhos e um deles com a peixeira na mão. O cabo nem olhava para os dois. Eu era de fora, e, portanto, perigoso e suspeito.  Tentei argumentar mas ele parecia nem me ouvir.  Enquanto eu me defendia ele tirava comida dos espaços entre os dentes com um canivete novo.

– Mim acompanhe, sujeitim! – Disse, apontando o caminho da porta e sussurrando entredentes que eu era um comunista comedor de criancinhas.

Passei o resto daquela manhã tentando explicar que não tinha nada a ver com o furdunço, que tinha um prazo para voltar, que estava viajando a trabalho mas nada parecia comover aquele ignorante, e no fim, depois ter sido fichado e ter levado dois tabefes, fui trancado no xadrez até que Cabo Lúcio concluísse as investigações.

Naquele dia, além de mim, só estava recolhido o doido da Cidade.  Felizmente ele estava quieto,  sentado na cela vizinha, e parecia não estar muito interessado na minha pessoa.  Na parte da tarde me deram um sanduíche de pão seco com uma coxa de galinha ao molho pardo, e uma caneca com água.

Soube que ia haver um churrasco na fazenda do Seu Henrique e todo mundo da delegacia, iria se ausentar. Eu e o Toím Doido ficaríamos em nossas respectivas celas até umas seis da tarde.

Sentei ali, encostado nas grades, e fiquei pensando na merda em que estava metido. Depois de meia hora me sentindo o mais desgraçado dos homens, vi que entravam, sorrateiramente, pela porta da delegacia, alguns dos meninos que estavam pulando sobre meu carro.

Um deles foi logo abrindo a gaveta da escrivaninha, e metendo a mão na argola com as chaves penduradas.
– Solta aí o Toím, Genivaldo! – Falou o maiorzinho para outro menino.

– Se vocês me soltarem também eu levo todos para darem um passeio no meu carro!

Precisava ver a cara de contentamento daqueles demônios. Num segundo eu já estava livre e saía correndo à procura do meu carro para ir embora daquele inferno. As crianças e o doido corriam no meu encalço, acabei tropeçando no calçamento de pedra tosca e eles me dominaram.

Minha cara bateu no chão, a calça rasgou nos joelhos. O maluco me dava uma chave de braço e Genivaldo pisava nas minhas costas. Eu estava imundo, cansado e sem a menor energia para qualquer resistência. Levei todos no meu carro até onde haviam planejado uma aventura.

O lugar era bem bonito. Devíamos estar em uma das margens do tal açude Conceição do qual os homens da bodega falaram. Desci do carro e aproveitei para tomar um banho enquanto assistia o Toím subir numa mangueira bem alta com os meninos incentivando lá embaixo.

Toda cidade tem pelo menos um doido, e Toím era o maluco mais afamado de Porca Prenha, porque era destemido e sem um pingo de juízo.  Sabendo que o rapaz não tinha instinto de sobrevivência, os meninos viviam convencendo o Toím a fazer coisas arriscadas, e naquele dito dia ele havia sido resgatado da cadeia porque ia tentar voar.

Até hoje eu não sei se o rapaz ficava empolgado com o entusiasmo das crianças, ou se realmente acreditava que ia conseguir voar com aquelas asas de pena de galinha coladas com grude em duas folhas de papelão e amarradas em sua camiseta. Quando olhei para cima o pobre rapaz se balançava em pé num galho do olho da mangueira e a molecada lá embaixo gritava frases de incentivo:

– Pula, Toím! Avoa, macho! Avoa, fidirrapariga!
Os minutos passavam e nada de Toím se lançar ao céu. Imaginei que ele havia perdido a valentia, e só ainda não descera da árvore com medo de levar uma peia dos meninos lá embaixo, mas aí um acontecimento  totalmente inusitado mudou o seu destino.

Eu já estava sentado no banco do meu carro quando senti um grande solavanco que projetou o meu corpo para frente, em direção ao para-brisas.

Toím, pressentindo a desgraça se agarrava, apavorado, ao tronco da árvore e os meninos se maldiziam e gritavam.

– Ispia, Zé, o açude tá freiveno!
– Isso é castigo, Genivaldo, o cão tá atráis de nóis!
– Ai, meu Padim Pade Ciço, valei-me!

Eu não sabia o que fazer. Enquanto tentava entender o que acontecia, a terra começou a tremer com mais força e me sacudir todo dentro do carro. Eu tentava meter a chave na ignição para escapar dali, mas ela caiu da minha mão e sumiu debaixo do banco.

Foi quando deu um tremor mais forte e o doido não conseguiu mais se segurar na mangueira. O coitado despencou como uma bigorna de desenho animado. Só deu para ver o vulto passando. E sem que pudéssemos fazer qualquer coisa para impedir, ouviu-se uma espécie de TEBAF!  E no segundo seguinte Toím estava estirado com a cara enterrada no chão.
O terremoto deu uma trégua e eu consegui pegar a minha chave. Os meninos arrodeavam o corpo sem coragem de virá-lo.

Um dos projetos de capeta se virou para mim e falou para os outros:

– Foi ele! Vamo dizê  pro Cabo Lúcio que foi o dotô cuminista que matou o Toím.

Eu não precisava de nem um outro incentivo para me picar dali. Nem me importava com caminho nem com tremor de terra, eu queria era fugir.

Só parei o carro para abastecer. Quando cheguei em casa dei um beijo na minha mãe e um abraço no meu pai e peguei a estrada de novo. Nunca mais voltei para aquela cidadezinha. Também, ninguém de lá me procurou. Pedi demissão do banco e fiz minha vida por Brasília. Meus parentes quando queriam me ver, vinham aqui. Quem eu sou? Digo é porra. Para que mexer no que está quieto? Hoje no meu carro tem um potente GPS e não tem quem em faça viajar para lugares que eu não conheça.

Só nunca entendi como eles souberam que eu era mesmo um comunista.


 
Iolanda Maria Pinheiro C. Leitão.
 
Observações:

a) Pouca gente sabe mas no Ceará já aconteceram alguns eventos com terremotos;
b) A linguagem é uma tentativa de imitar como a gente de minha terra fala;
c) Este conto não tem conotação política, é apenas uma comédia de costumes;
d) Nos anos sessenta/setenta/oitenta ser chamado de comunista era como ser xingado. Muita gente não tinha nem ideia do que se tratava, mas achava que comunistas eram perigosíssimos e comiam criancinhas.

Enfim. Espero que gostem de ler do mesmo tanto que eu, de ter escrito. Abraços. Boa leitura.