CARNAVAL EM UBATUBA OU ANTES SÓ QUE MAL ACOMPANHADO

Morava em Ubatuba. Numa casa antiga e confortável frente ao mar. Dois quartos enormes, uma sala gigantesca toda envidraçada, cheia de prateleiras e livros de onde se escutava o barulho das ondas a quebrar na praia. Um único mas espaçoso banheiro, boa cozinha, quarto e banheiro de empregada e uma garagem de bom tamanho.

Eu vivia ali. Com a Oracina, uma caiçara que tomava conta de tudo, cuidava da limpeza e fazia uma comida simples, mas deliciosa.

Sempre gostei de receber os amigos. Por isso mesmo coloquei no segundo quarto três camas de solteiro. Além disso tinha uma quarta, desmontável, que poderia armar numa emergência.

O carnaval chegou. Pretendia permanecer em retiro espiritual e cuidar de ler dois bons livros que não sou de me atazanar numa cidade lotada e impossível de viver em dia de feriado.

Sábado. Nove horas da manhã. Vou atender a campainha. É o José, amigo de longa data.

- “Pedro! Estou com o Miguel, o Lima e um casal amigo dele. Viemos passar o carnaval aqui em Ubatuba. Mas já faz duas horas que estamos procurando lugar para ficar. Não encontramos nem hotel, nem casa, nem apartamento nem lugar em“camping”. A cidade está lotada!”

Aí lembramos de você. Teria jeito de V. nos receber por alguns dias?”

- “Não sei. É preciso ver. Porque a casa é pequena. Talvez não dê para abrigar todos.”

- “Não se preocupe! Pode deixar que a gente se ajeita! Ninguém aqui é de luxo! Obrigado! Muito obrigado! Você é mesmo um amigão!”

E sem mais delongas chamou os companheiros. As duas folhas da porta da garagem foram abertas. E quatro automóveis a entupiram.

Eram quinze. Oito adultos e sete crianças, uma delas com apenas três meses de idade.

O quarto de hóspedes foi invadido. A sala recebeu cinco colchonetes. O corredor que a ligava a cozinha outros dois, que permaneceram em pé, pois deitados obstruiriam a passagem.

Foi então que o Zé me perguntou: -“você se importaria se eu o Lima fossemos dormir no seu quarto? É que não há mais espaço. Acredite que não vamos incomodar.”

-“Não sei...”

-“Obrigado. Você é mesmo muito legal.” E meu quarto recebeu dois colchões.

Depois de meia hora de correrias todos desapareceram. Invadiram a praia como se fosse o último dia que o Criador iria permitir o banho de mar.

Chamei a assustada Oracina. – “São quinze,” contei-lhe. –“Vou até o supermercado fazer compras. Prepare para o almoço uma boa salada, arroz, purê e filés de badejo a dorê, que há muito peixe no freezer. Frutas de sobremesa e café. Que tempo não haverá para qualquer outra coisa. E já trarei alguns bifes para o jantar.”

A custo desentalei meu carro da garagem. E hora depois voltava com uma carga substancial de pacotes.

_”Doutor,” sussurrou-me a Oracina. –“A cerveja já está no fim. Acabei de por a última caixa na geladeira pois seus amigos bebem um bocado.”

_”Paciência! Não vou voltar agora ao supermercado. Mais tarde vou buscar mais. Agora só quero tomar um uísque que estou precisado.”

Procurei prepará-lo.

_”Oracina onde está o gelo de água de coco?”

-“Eles pegaram quase todo o gelo para encher o isopor que levaram na praia com cerveja e mamadeira da criança. O que sobrou usei para fazer as caipirinhas que pediram.”

E arrematou. –“Doutor! Se o senhor quiser posso chamar minha irmã para ajudar. Porque nem comecei ainda a fazer o almoço. Não parei de fritar camarão e isca de peixe para mandar para a praia.”

-“NÃO!”

O tempo foi passando. As idas e vindas à casa constantes. Toda aquela cerveja consumida e as delicadas crianças deixaram o único banheiro da casa irreconhecível. Mas ele conseguiu recebê-los ainda para o banho. Fizeram fila para toma-lo. Com areia e tudo.

Bem depois, quase três horas da tarde sentaram-se todos à mesa. A Oracina desdobrava-se para atende-los. Um garoto exigiu coca-cola. Só tinha guaraná que não servia. Foi ao carro do pai e não sei como, trouxe duas tamanho família. Tomou-as com o gelo que já conseguira formar-se na geladeira.

O resto do dia não foi muito agradável. Uma senhora, com certeza por curiosidade, resolveu experimentar as latinhas de importados que se encontravam expostas numa prateleira. Abriu inúmeras e parece que não gostou pois descartou-as quase sem tocar, logo depois de abri-las.

Um jovem e destemperado rapaz resolveu sentir toda a potência do aparelho de som. Ao mesmo tempo em que mastigava com sua irmã menor alguns cachorros quentes que não sei de onde surgiram. Nada encontraram que pudesse sensibilizar o apurado aporte musical. Abandonaram logo a empreitada, deixando apenas alguns poucos discos esparramados e levemente lambuzados de maionese e mostarda.

Pior os mais pequenos que resolveram brincar de algo como pega-pega-ladrão no terraço e esconder-se pela casa. E a menina de colo que não parava de berrar, com certeza por falta de adequado leite materno.

As cervejas acabaram. Foi só ao anoitecer que de um dos carros foram retiradas duas caixas que abasteceram a geladeira. Mas nenhum problema tal fato acarretou pois todos voltaram-se para o uísque que era abundante. A preferência recaiu sobre o doze anos.

O jantar foi servido as nove da noite. Compreendia uma gigantesca salada de folhas, arroz, feijão, fritas e milhões de bifes de contrafilé acebolado. De sobremesa abacaxi com sorvete. Recordo-me que este último, apesar de abundante, não resistiu às inúmeras investidas infantis, pois já se acabara quando procurei dele humildemente me servir.

Os primeiros começaram a recolher-se a meia noite. Dois adultos e mais uma criança no meu quarto. E as dependências da casa foram transformadas num verdadeiro albergue noturno.

Ao deitar comecei a conjeturar. A situação não está a me agradar. Preciso fazer algo, pois do contrario não sobreviverei a este carnaval.

Foi quando o Lima ao meu lado começou a roncar. Em alto e bom som a parecer enlouquecida serra madeireira.

Juro que tentei adormecer. Virei-me de todos os lados, busquei todas as posições possíveis, procurei até tampar os ouvidos com travesseiro para abafar aquele barulho ensurdecedor.

Confesso que não consegui. Já eram quase três horas da manhã quando resolvi dormir na casa de um amigo que mora próximo. Ele não me entendeu, mas ocupei seu quarto de hóspedes.

Voltei pela manhã. Já tarde. A Oracina havia servido o café e estavam todos na praia. Preocupada perguntou-me o que deveria preparar para o almoço.

-“Nada,” respondi. –“Aliás V. está dispensada por hoje.”

Quando todos voltaram da praia participei aos mentores da excursão que não teríamos almoço. Sugeri que procurassem um bom restaurante. Indiquei dois.

E arrematei, indiferente às conseqüências. –“Quero pedir-lhes que arrumem suas tralhas. Cheguei à conclusão que não poderei mantê-los em casa neste carnaval.”

A indignação foi geral. – “Porque? Mas porque? Está certo que estamos instalados desconfortavelmente. Mas ninguém reclamou! Tá todo mundo numa boa!”

Mantive-me firme.

- “Tudo bem,” disse o Miguel. – “Se V. não nos quer aqui nós iremos embora.”

E foram!

Eu ali fiquei. Encarando os restos mortais do que fora, há apenas um dia atrás uma casa graciosa e confortável.

A Oracina voltou. Era eficiente e, em poucas horas conseguiu por tudo no lugar.

Deu ainda para passar dois dias de carnaval em gratificante solidão.