JÁ ERA QUASE DEZEMBRO...
       
          Na Fortaleza do século passado, aí pelos anos 50, havia um jovem médico, que era tão boêmio quanto despreocupado com os seus compromissos financeiros. Naquela época, ao contrário do que temos agora, os profissionais da medicina não faturavam tanto e nem com tanta facilidade, como os de hoje em dia, que podem associar plantões, consultório e dois ou três empregos, para garantir uma boa renda mensal.
      Os médicos de outrora não se organizavam em cooperativas, não existiam os planos de saúde e a maioria deles vivia, mesmo, era da sua clínica particular ou do seu trabalho em algum hospital. E, às vezes, como acontece com muitos profissionais liberais, isto fazia com que a sua contabilidade, ao final do mês, já estivesse operando "no vermelho". Pois, assim, também acontecia com o "doutor Bené" — apelido carinhoso pelo qual era conhecido — que apreciava, muito mais, segurar um copo do que um estetoscópio.
        Como a maioria dos boêmios, o médico adorava reunir os amigos ou reunir-se com eles, para uma noitada de boa comida e grandes libações. E, de vez em quando, gostava de patrocinar um jantar ou recepção para alguns convidados, porque era um sujeito festeiro, embora não dispusesse de reservas pecuniárias suficientes para tanto. E por ser assim, era uma pessoa muito bem relacionada e muito festejada, quando surgia no ambiente. Um desses tipos cativantes que todo mundo conhece e aprecia.
   Em contrapartida, sempre tinha várias contas "penduradas" pelos bares e restaurantes da cidade, porque nunca as pagava nos prazos prometidos. E, apesar disto, aqui e ali, não se sabe como, ainda conseguia ser atendido e pendurar novas contas, por cima das anteriores.
      Uma das fraquezas do "doutor Bené", que também ajudava a endividá-lo, era a sua irresistível atração pelas tripulações das companhias aéreas que, naquela época, pousavam e pernoitavam na capital do Ceará. Não eram tantos esses voos, num tempo em que viajar de avião traduzia uma espécie de "status" social e econômico. Em compensação, as empresas de aviação comercial caprichavam no serviço de bordo e na composição das equipes.
       O aspecto físico fazia parte do processo de seleção dos aeronautas e aeroviários. Não havia nenhum desses chatos “politicamente corretos” que existem agora, protestando contra a discriminação dos mais feios ou querendo ser indenizados, por serem desprovidos de algum encanto físico. E como havia essa liberdade de preferência estética, as aeromoças de então — graças à sua beleza física, porte e elegância — povoavam os sonhos e as fantasias de todos quantos tinham a possibilidade de fazer um voo de vez em quando.
     Provavelmente, era isto o que fazia o "doutor Bené" sentir aquela atração irresistível pelas equipes de voo que realizavam conexões e pernoites na Fortaleza mais provinciana daqueles anos dourados. E como, aqui e ali, deviam sobrar olhares de alguma aeromoça bonita ou algo a mais para ele, o médico se desdobrava para demonstrar a sua simpatia e hospitalidade aos grupos de aeronautas que aportavam na cidade. Sempre que possível, costumava recepcioná-los, não se importando com o quanto iria gastar ou de que jeito iria pagar depois.
        Foi assim que, certa vez, estando avisado de que uma equipe da PANAIR, com a qual ele mantinha boas relações, voando dos Estados Unidos para o Brasil, faria um pernoite na cidade, correu a um restaurante, que ficava na bela Praia de Iracema — que, depois, o avanço do mar fez desaparecer — para encomendar ao proprietário, um jantar caprichado, com que pretendia receber os pilotos, comissários e, principalmente, as aeromoças. Chegou e foi logo especificando:
        — Quero tudo do bom e do melhor, para oito ou dez pessoas! Patinhas de caranguejo e ostras para a entrada. No jantar, uma peixada "no capricho" e lagostas, dessas bem graúdas. Sobremesa, com doces típicos e frutas da terra. E vinho... Quero um de boa qualidade, além de água de coco e refrigerantes, para quem preferir! Estarei aqui com os meus convidados, entre 9 e 10 horas da noite.
       O dono do restaurante, entre impaciente e desalentado, disse para o médico:
       — Não vai ser possível, doutor... Desta vez não vai ser possível!
         O "doutor Bené" não entendeu e nem aceitou a recusa:
         — Como não vai ser possível?! Tem que ser! Se estiver faltando alguma coisa, mande comprar logo, ponha o seu pessoal a trabalhar, porque esses convidados são amigos especiais para mim. E não posso fazer feio diante deles!
      O proprietário da casa voltou à negativa, agora, de forma mais incisiva:
        — Mas não vai dar mesmo, doutor... Hoje não vai dar, de jeito nenhum!
      Indignado e sem atinar com o real motivo da recusa, o médico deu um ultimato ao dono do lugar:
      — Tem que dar, fulano! Ou você me prepara esse jantar ou eu fecho esta sua espelunca à bala!
       Ao que o outro encerrou a conversa, dizendo:
      — "À bala", o senhor não fecha! Mas, se não me pagar o que já me deve, vai acabar fechando é "a vale"!
    De fato, o boêmio e irresponsável "doutor Bené" não pagava suas contas e tinha vales "pendurados" naquele restaurante, desde o começo do ano. E já era quase dezembro...

Ilustração: Google Imagens (Pics of the Day)