DOIS PROVEITOS NUM SACO SÓ

       Entre as muitas coisas que essa pandemia do coronavírus mudou no cotidiano dos brasileiros, estão certos hábitos, inclusive, alguns de higiene. Como lavar as mãos com mais frequência e da forma adequada, não tocar o rosto com elas após encostá-las em superfícies e objetos de uso coletivo e — um que era menos frequente ainda — não entrar em casa e nem ficar andando por dentro dela com aquele mesmo calçado que se veio da rua.

            Até conheço algumas famílias que já faziam isso há muito tempo, bem antes da COVID-19. Porém, digamos assim, isso não é ou não era um costume da maior parte das pessoas, que têm a mania de andar pelas calçadas e ruas displicentemente e, depois, pisoteiam dentro de casa, distribuindo os vírus, bactérias e fungos que trouxeram consigo, entre os quartos, sala, copa, cozinha e banheiros.

            Em algumas sociedades, essa prática de retirar os sapatos e sandálias para trocá-los por outros ou ficar apenas com as meias, é corriqueira e faz parte de sua própria cultura. Isso é muito comum entre os asiáticos, por exemplo. Mas não é o que faz a maioria dos ocidentais. Por isso, uma coisa que me tem chamado a atenção, quando chego ao meu prédio, é ver aquela fileira de calçados no corredor, ao lado da porta de entrada dos apartamentos.

            Também faço a mesma coisa. Com a diferença de que, no meu caso, eles não ficam no corredor. Mantenho bem na entrada, mas pelo lado de dentro e sempre embebido numa solução com água sanitária, um pano sobre o qual ficam os que separei, para quando precisar sair do meu apartamento. O que me ocorre é se os meus vizinhos não consideram a possibilidade de, numa hora dessas, deixarem um sapato novo na entrada e, na próxima saída, encontrarem outro par, mais velho, de outra cor e modelo.

            Talvez alguém possa questionar a minha preocupação, dizendo que, afinal de contas, estamos falando de um edifício residencial, onde os moradores se conhecem. E que, ademais, estamos enfrentando um momento difícil para todos, o que incentiva uma natural solidariedade entre as pessoas. Compreendo que, como naquela divertida música do Falcão, “melhor seria, se melhor fosse”, mas não estou seguro de que seja.

         E já que mencionei o cantor cearense, posso demonstrar o que estou dizendo com um exemplo ocorrido, exatamente, na Fortaleza dos anos 1940, quando o Brasil uniu-se aos países aliados e ingressou na 2ª Guerra Mundial. Mais especificamente, no território italiano, para onde foram enviados os combatentes da FEB e da FAB.

            Foi um momento muito tenso para os imigrantes das nações transformadas em nossas inimigos — Alemanha, Itália e Japão — assim como para seus descendentes, que começaram a ser hostilizados, não apenas por aqui, mas em todos os países por onde eles estavam. E na capital do Ceará havia uma família de italianos que por lá se estabelecera no ramo dos calçados, desde a sua primeira geração no Brasil.

            Pois, certo dia, por causa da nossa declaração de guerra à Itália, evidentemente instigada por desonestos oportunistas, sempre prontos a tirarem proveito das tragédias, uma turba resolveu protestar em frente à sapataria dos carcamanos.

                O protesto resultou num quebra-quebra tremendo e no saqueio da loja. Uma coisa lamentável, contra uma família que, afinal, já estava no Ceará há três gerações e mais do que entrosada com a sociedade local! E, como em todo saque, os saqueadores abraçavam o máximo de caixas de sapatos que conseguiam carregar e se iam, levando as mercadorias, sem mesmo verificar o conteúdo das caixas.

             Era o que todos faziam, exceto aquele funcionário de um escritório de contabilidade, que ficava nas imediações da loja invadida. A caminho do trabalho, percebeu o que estava acontecendo e decidiu arranjar um novo “pisante” para ele também. Meteu-se no meio da muvuca, mas, ao contrário dos demais saqueadores, pegou apenas um par de sapatos e sentou-se numa cadeira para experimentá-los.

          Não eram do seu tamanho e ele decidiu experimentar outro número. Levantou-se e caminhou na direção das prateleiras, que, nesse momento, já estavam praticamente vazias e não havia mais nada o que escolher. Assim, desistiu da empreitada e resolveu retomar o seu caminho para o escritório.

           Foi quando se surpreendeu com a constatação de que, pelo menos naquele dia, ele seria obrigado a trabalhar calçando apenas suas meias. Porque alguém, no meio da turba, havia levado os seus sapatos, que deixara junto à cadeira, por poucos instantes. Aliás, até mesmo a cadeira já havia sido levada de lá.

     Tudo isso graças ao fato de que — metódico e acostumado à rotina dos serviços de contabilidade — ele não se dera conta de que o roubo, o furto e outros crimes contra o patrimônio acontecem num ritmo muito mais rápido do que o de uma escrituração contábil.

        Naquelas circunstâncias, ou ele deveria se comportar com a rapidez de um saqueador e não com o estilo mais lento e metódico de um contador. Misturando as duas coisas não tinha mesmo como dar certo. Pois, como costumava dizer a minha sogra (e que Deus a tenha em bom lugar, por este sábio conselho), “dois proveitos não cabem num saco só”!

     Ainda bem que aquele contador cearense não mora no meu prédio!


Ilustração: Google Imagens.