Entre fumaças, aquele barulho tick tick das chupadas diárias das balas de tamarindo, fui aprendendo a me defender do chefe rabugento. O mal humor dele já entranhado nas veias não poupavam nem a senhora cabelo vermelho com seus 60 e poucos anos. Aliás, mexendo nos arquivos da empresa, havia descoberto que a amizade entre os dois era dos tempos de colégio técnico.  Ui... haviam se conhecido por voltas dos seus vinte anos. 
     As festas de final de ano da empresa eram hilárias! Bastava ir à uma única festa para estar em todas que iriam acontecer nos anos posteriores. O chefe rabugento se transformava - bem que os especialistas em RH costumam dizer que, nas festas de final de ano, os funcionários precisam se controlar - pura ilusão para aquele ali. Aquela música dos anos noventa do grupo molejo:
"Varre pra esquerda, varre pra direita
Levanta poeira que essa dança é porreta
Varre pra esquerda, varre pra direita
Levanta poeira que essa dança é porreta
Pitipi pitipi pitipau
Pitipi pitipi pitipau"
fazia qualquer rabugisse evaporar na mesma velocidade dos copos de cerveja.
     Na segunda-feira em seguida, ele se enclausurava em sua sala e não dava bom dia para ninguém, não chamava nenhum de seus funcionários. Ele simplesmente não existia. 
     Nunca mais voltei a nenhuma festa. Não entendia essa mudança brusca de personalidade das pessoas. Gente doida! O diretor da empresa, esse é outro personagem, não saía da sua sala e também não ia às festas. Não sabia o nome de ninguém. Todas nós erámos tratadas por "filhinha". Além desse fato interessante, também perguntava às funcionárias se gostariam de trocar seus filhos por um fusquinha. Nunca soube a relação disso.
     O diretor não gostava de marmitas em seu estabelecimento e por isso pagava um único restaurante onde todos eram obrigados a almoçar caso não chegassem atrasados ao trabalho. Alguns levavam suas marmitas e comiam suas comidas escondidos na saída de emergência.
     Passado mais algum tempo , foi preciso mudar de endereço e, com isso, a disponibilidade de salas por setores precisou ser alterada.  Foi então que a Contabilidade, Departamento de pessoal, Faturamento e Contas a pagar se emaranharam em um único espaço. Como num passe de mágicas éramos oito mulheres separadas por "baias" num mesmo quadrado.
     Minha chefe cabelo pica-pau, que nessa altura já estava com mais idade e com a idade também mais manias, tomou para si vários cotonetes para a limpeza do ouvido. Cotonetes que podiam ser encontrados por vários lugares daquela sala; até mesmo no bolso de um casado que essa mesma senhora emprestou para uma das oito mulheres ir à festa familiar.  A chefe ficou em uma baia, eu em outra, a jurema - minha máquina de escrever - em outra, pois eu precisava de duas baias. As outras meninas foram distribuídas nas demais. Vivíamos também num viveiro, pois a sala era de vidro. Servíamos como distração para os demais funcionários da empresa. 
     Não podíamos falar. imaginem só! oito mulheres dentro de um mesmo ambiente sem poder abrir a boca. Política do chefe rabugento. Tão rabugento que foi apelidado pelas oito mulheres de "Tio Sam".  A víbora (lembram-se dela?) também estava em uma das baias. Havia música ambiente para todos da empresa, mas a víbora levava seu radinho à pilha e o ligava só para infernizar. Então agora éramos oito mulheres, a jurema, o rádio ligado, o som ambiente, as chupadas de balas de tamarindo e os cotonetes. Morria de raiva. Só pensava em como me livrar daquela vida.  Administrava um hortifrute: descascava pepinos, abacaxis, e ainda por cima ganhava de quebra o cheiro azedo de alho podre toda vez que o tio Sam me chamava.       Além de todos esses fatos narrados, eu tinha ainda uma curiosidade horrorosa: queria saber o tamanho dos cacos de dentes do rabugento. Masoquismo puro. Nunca soube.
     Um dia, ele me chamou até sua sala e me perguntou se eu gostaria de indicar alguém para trabalhar na sala das oito mulheres (foi quando convidei a pessoa que me ajuda a narrar essas lembranças). Óbvio, que eu havia lhe contado todas as coisas que aconteciam naquela empresa e entre tantas instruções foi a de não falar: - Hello Kitty, você não pode conversar!