VIVER PERIGOSAMENTE

          Tenho boas e divertidas lembranças dos tempos em que fui aluno da Universidade Federal do Ceará. Apesar da coincidência daquela época com a fase mais repressiva dos governos militares de 1964 — os chamados “anos de chumbo” — nos quais o patrulhamento político e ideológico do regime esteve focado, de modo especial, nos movimentos estudantis e no ambiente universitário.

            Porém, como além de estudar, eu também precisava trabalhar para garantir o meu sustento, não participei de nenhum desses movimentos ou manifestações de oposição, surgidos no meio estudantil, embora não me agradasse viver sob um governo de intervenção militar. Por isso, talvez, a memória predominante que tenho daqueles anos, dizem respeito ao lado mais lúdico da vida universitária.

            E sendo assim, guardei dessa fase de minha vida uma série de lembranças realmente engraçadas, que ainda me servem de motivo rir, quando a sorte me proporciona um reencontro casual com algum dos meus contemporâneos mais chegados, daqueles tempos do bacharelado em Direito. Como, agora mesmo, estou me lembrando de um episódio desses.

          O Conselho Departamental da faculdade onde eu estudava era dividido mais ou menos ao meio, também por razões ideológicas, entre aqueles que torciam pelo regime militar e os que a ele se opunham. “Os que a ele se opunham” é, apenas, uma maneira de dizer, porque as possibilidades para isso eram extremamente limitadas, pelo autoritarismo então vigente no país.

       Como é compreensível, em geral os alunos se identificavam melhor com aqueles professores que tinham posições mais progressistas. E, entre os docentes que compunham o Conselho, por vezes ocorriam confrontos e divergências, nem sempre muito sutis — durante as reuniões e para além delas — a propósito dos temas e deliberações que eram submetidos aos conselheiros. Como foi o caso de uma polêmica que se estabeleceu entre dois catedráticos da faculdade, temperada por ironias e sarcasmos.  

            Durante muito tempo rivalizaram-se os professores Heribaldo Costa e Jader Carvalho, cada um deles mantendo, naquela época, uma coluna semanal em um dos dois jornais de maior circulação em Fortaleza. Não posso afirmar como certo, mas creio que eram, então, os jornais O Povo e Correio do Ceará.

            O Professor Heribaldo Costa era um desses tipos reacionários, defensor do regime dos militares e até dos excessos que fossem ou pudessem ser cometidos por eles, em nome de uma ditatura à qual chamavam de redemocratização do país. Era um profissional dotado de inteligência incomum e notável saber jurídico, embora não se mostrasse um grande entusiasta daquilo que se conhece como estado de direito.

         Não menos brilhante ou competente era o seu opositor, Professor Jader Carvalho. Dono de uma verve incomparável e conhecido por suas “tiradas” de excepcional humor, em contraposição ao estilo mais vetusto e menos brincalhão, que caracterizava o outro. E, assim, suas dissenções alcançaram um patamar inimaginável.

          Utilizando-se de suas respectivas colunas na imprensa, trocaram farpas por muitos meses, cada qual com o seu estilo, para a delícia dos acadêmicos da Faculdade de Direito, que se dividiam na torcida por um lado e outro, com alguma predominância — digo, sem medo de estar enganado — para os que apoiavam o Professor Jader Carvalho.

          A contenda ia razoavelmente equilibrada, com estocadas de lá e de cá, quando o Professor Jader resolveu “espetar” o outro com mais força. E escreveu o seguinte, em sua coluna: “Conhecido docente da FDC, Professor Heribosta Caldo...”.

            Consta que o Professor Heribaldo Costa, ofendido e indignado, mandou um recado ao ofensor, exigindo uma retratação e um pedido formal de desculpas, sob pena de que, sem isso, ele iria de responder pelo deboche. E também consta que, pelo mesmo portador, o Professor Carvalho teria dito que tudo não passara de um equívoco, um simples erro de imprensa — que era comum nos tempos da linotipia — mas que a correção viria na próxima publicação.

            Pois, de fato, ela veio. Ao finalizar a sua coluna na semana seguinte, o Professor Jader fez uma nota de rodapé, esclarecendo: “Por um equívoco, em nossa coluna da semana passada, foi publicado com erro o nome de um docente da Faculdade de Direito do Ceará. Na verdade, ele não se chama Heribosta Caldo, mas, sim, Hericaldo Bosta...”.

           Não me lembro, ao certo, no que resultou esse assunto. Mas, considerando o conhecido temperamento irascível do Professor Heribaldo Costa, o engraçadíssimo Professor Jader Carvalho, com certeza, gostava de viver perigosamente.


Ilustração: Google Imagens.