O HOMEM DOS MEUS SONHOS (CONFISSÃO)

Senhor Juiz. Sei que não sou nenhuma beldade. Mas tenho meus encantos. Sou meiga, carinhosa, acredito até inteligente. Moro sozinha em um pequeno apartamento no centro e trabalho como caixa de um banco.

Sempre tive absoluta certeza que posso completar e ser excelente companheira para um homem. Mas não o tenho. Talvez, excelência, porque sempre fui muito tímida. Não gosto de me expor, não freqüento bares, evito festas, reuniões ou lugares com muitas pessoas. Muito raramente visito meus pais que moram num pequeno sítio no interior. Minha vida tem se limitado a comparecer ao serviço e voltar para casa. Minhas amigas são poucas, e nenhuma companhia me fazem, pois são casadas e todas tem filhos.

Foi quando ele entrou na minha vida.

Saíra do banco e estava postada no ponto do coletivo a aguardá-lo quando percebi que um automóvel parou pouco mais à frente. Ele desceu e veio em minha direção.

Alto, musculoso, olhos verdes, bem vestido, um andar elegante e usando discreto perfume.

Mantive-me quieta como me competia. Mas ele, imediatamente dirigiu-me a palavra:

Senhorita perdoe-me perguntar-lhe, mas conhece a rua ou avenida Presidente Vargas?

Não, cavalheiro, ousei responder. Aliás, posso até dizer-lhe que talvez não fique neste lado da cidade. E acrescentei: moro neste bairro desde criança e nunca ouvi falar nela.

Ah! Sim! Sim! retrucou ele. Talvez tenha me equivocado e não seja Vargas nem mesmo presidente. Mas estou atrás de uma localidade e quem sabe a senhorita que conhece bem este lugar poderia ajudar-me.

Inicialmente hesitei em aceitar. Mas ele esbanjava charme e eu não tinha nada a fazer. Então lhe respondi: Sim, talvez possa colaborar.

Convidou-me a entrar no seu automóvel e foi com desenvoltura que abriu a porta para permitir que eu subisse. Logo também percebi que além de extrovertido tinha uma conversa envolvente.

Contou que estava só e precisava de companhia para jantar.

Como já disse meritíssimo ele era bem persuasivo e eu, depois de uma débil recusa também aceitei.

Confesso, excelência que não estava vestida adequadamente para ingressar no luxuoso restaurante onde fui levada. E tive até dificuldades para entender o cardápio em francês.

Lembro-me, todavia, de haver pedido um prato de peixe e recordo-me que bebemos duas garrafas de vinho branco. Admito que ao final da refeição eu estava um pouco alta em razão da bebida. Mas ele, sempre respeitoso, deixou-me à porta do meu prédio, não sem antes colher todos meus dados, pois disse que tinha o firme propósito de ligar-me no dia seguinte logo cedo. Despediu-se dando-me um carinhoso beijo na testa.

Quero abreviar este pedaço da história, excelência. Mas conto-lhe que passamos a encontrar-nos todas as noites e eu conheci duas dúzias de restaurantes novos. Era feliz, e invejada por todas minhas amigas.

Passou a unir-nos uma fortíssima amizade. Mas o que sempre me deixava intrigada é que ele sempre foi respeitoso demais e, apesar das minhas tênues tentativas – eu disse que era tímida – ele nunca tentou tornar-se mais íntimo.

Pensei em fazer algo para conquistá-lo. Consultei minhas amigas, inclusive as casadas que tinham larga experiência no ramo.

Acabei por convidá-lo para passar um fim de semana no sítio dos meus pais. Não sem antes pedir a eles que fossem visitar alguns parentes, pois pretendia ficar só, por alguns dias.

Não acreditei quando tudo começou a dar certo. E, de repente lá me encontrava com ele, em plena sexta-feira à noite com todo o fim de semana pela frente.

Nossas malas foram acomodadas no amplo quarto de hóspedes onde existia uma grande e antiga cama de casal.

Pensei em preparar para o jantar algumas lagostas que sempre ouvira dizer são afrodisíacas. Mas não quis aventurar-me em terreno desconhecido. Por isso limitei-me a fazer deliciosos filés grelhados com molho de alcaparras. Que foram precedidos e acompanhados de inúmeras garrafas de vinho tinto francês de grife.

Ele bebeu demais e percebi que arreara um pouco. Mas um bom banho seria altamente recuperador. Tomei-o primeiro. E vesti uma “lingerie” especialmente encomendada para a ocasião.

Aguardei que tomasse seu banho e esperei-o na cama.

Ele levou um tempo enorme no chuveiro. Acredito tenha feito barba, unhas do pé e da mão, massagem facial e todo o resto.

Por fim, terminada a demorada toalete assumiu o seu lugar no leito, ao meu lado. Deu-me um beijo, desejou-me boa noite virou para o lado e dormiu.

Juro, excelência que fiquei muitíssimo indignada. Chamei-o várias vezes chegando mesmo a sacudi-lo levemente. Mas o que ele tinha de charme tinha também de sono pesado. E em poucos segundos dormia profundamente.

Frustrada, não tive outra alternativa senão tentar conciliar o sono. Decidida, entretanto, a no dia seguinte começar a investida mais cedo e não permitir que bebesse qualquer gota de álcool.

Demorei para dormir. Por isso mesmo acordei tarde e ele já se levantara há muito tempo. Sempre fora muito gentil e cuidara de preparar um completo e delicioso desjejum.

Foi então que me participou que recebera um telefonema de um grande amigo que retornara de uma longa viagem. E o convidara para encontrar-se conosco. Ele já estava a caminho. Eu não me importava, não é verdade, perguntou.

Não necessariamente, respondi. Mas nada disso estava nos meus planos.

Nem meia hora depois, recebemos o dito cujo. Era igualmente um homem muito interessante. Pele cuidada, feições delicadas igualmente muito bem vestido trajando um elegante traje esporte.

Ambos carinhosa e demoradamente se abraçaram com insuspeita e reveladora intimidade.

Fui apresentada apenas formalmente, pois eles tinham muitos assuntos a conversar e se retiraram para um local mais reservado.

Pensei com meus botões exatamente aquilo que disse a Vossa Excelência ao início deste interrogatório. Está certo que não sou nenhuma beldade. Tampouco nunca deixei de ter uma mente aberta e arejada, pois sempre admiti todo tipo de união sejam lá quais forem os sexos envolvidos.

Mas o que ambos se propunham a fazer comigo naquele instante era algo totalmente inaceitável, humilhante e indigno. Especialmente observando-se todas as circunstâncias que antecederam os fatos.

Senti-me mais uma vez frustrada e arrasada.

Somente então que me surgiu um plano.

Inicialmente fui procurá-los. Encontrei-os bastante à vontade e entretidos, mas não me incomodei. Perguntei se aceitariam degustar no almoço uma moqueca de peixe com camarões, acompanhada de arroz e pirão, pois estava disposta a prepará-la.

Aceitaram comovidos.

O prato era uma das minhas especialidades. Sabia fazê-lo como ninguém. Mas também não desconhecia que a mistura de temperos e uma boa dose de azeite de dendê podem mascarar qualquer outro ingrediente não exatamente indicado para valorar essa iguaria.

De forma que comecei a fritar alho e cebola em óleo de rícino. Misturado com o dendê é claro. Acrescentei pimentões em rodelas, tomates sem pele ou sementes e postas de robalo. Agreguei uma dose cavalar de um laxante muito forte e perigoso que meus pais sempre reservaram para desentupir vacas entubadas. Deixei ferver e juntei os camarões.

Experimentei apenas muito levemente o caldo. Bom de sabor mas, com um tênue retrogosto a comprometer o conjunto. A pimenta que acrescentei em boa quantidade mascarou qualquer elemento identificador.

Caprichei no pirão que sabia que ele amava. E que também recebeu um batismo a altura do evento.

Chamei-os. Pude vê-los com vontade a dar cabo de dois enormes pratos a transbordar. Estranharam que eu permaneci apenas numa salada. Expliquei-lhe que estava com problema gastro-intestinal e iria poupar-me com algo bem leve.

Contei-lhes que deveria ir a cidade e fui arrumar minha mala. Eles, mais uma vez, recolheram-se ao quarto.

Pronta, resolvi aguardar sentada os acontecimentos.

Perdoe-me excelência, mas esqueci de relatar que a casa era antiga e só tinha um banheiro que dava para a sala onde eu me encontrava.

Nem meia hora transcorreu quando ele passou por mim em desabalada carreira e ingressou no banheiro.

Logo atrás e igualmente apressado veio seu amigo. Este, ao encontrar a porta fechada foi tomado de desespero e começou a bater violentamente na porta e a esbravejar. Ambos passaram a discutir, passando logo mais as ofensas mútuas.

A situação agravou-se quando um deles, não lembro qual, não conseguiu controlar totalmente sua necessidade e sujou-se todo.

Revezavam-se ao entrar e sair do minúsculo e disputado cubículo. Entretanto a questão cada vez mais grave se tornava porque quem tomava assento não mais queria levantar-se. E sua posse passou a ser conquistada a empurrões, tapas e bofetadas.

Mas o problema era incontornável, pois é de todos sabido, excelência, que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Menos ainda num banheiro pequeno.

Um odor inconfundível forte e penetrante passou a contaminar o ambiente.

Resolvi deixá-los, pois estavam em boa companhia.

Sabia que o laxante que haviam ingerido manteria seus salutares efeitos no mínimo pelos próximos três dias. Sem contar a ajuda benfazeja e igualmente eficaz do óleo de rícino.

E meus pais não constituíam preocupação. Pois só retornariam na próxima semana.

Estes os fatos em sua realidade, meritíssimo. Permita-me agora afirmar. Não acredito esteja a merecer qualquer condenação. Nada fiz de anormal ou censurável. Nada se alterou com o incidente.

Pois mesmo antes dele, perdoe-me a palavra excelência, eles nada mais eram que uma grande merda.