DONA MARINALDA
 
           A linguagem excessivamente rebuscada do meio jurídico — não poucas vezes, tendendo ao exagero e ao pedantismo — costuma ocultar o fato de que não é apenas nos consultórios médicos e odontológicos que ocorrem situações hilárias. Ainda que em alguns casos possam ser constrangedoras, entre os profissionais e seus clientes.

            Por conta dessa temática, já foram escritos vários livros, crônicas e outros textos, a exemplo de dois ou três volumes publicados pelo escritor, teatrólogo e médico pediatra, Pedro Bloch, cujo título já antecipa o seu conteúdo: “Criança diz cada uma...”. Foi um sucesso editorial absoluto, exatamente porque colecionava frases, observações, perguntas e respostas ditas, feitas e dadas pelos seus pequenos clientes, durante as consultas.

            Mas também nos tribunais, nos escritórios de advocacia e durante as audiências acontecem coisas inusitadas, divertidas e eventualmente impublicáveis, que quebram aquele clima de excessivo formalismo, imaginado pela maioria das pessoas como sendo uma característica imutável dos ambientes em que militam os operadores do direito.

            Qual o quê! Não há advogado que não tenha, pelo menos, uma meia dúzia ou mais desses casos para lembrar, em que o estilo solene do exercício profissional foi substituído por uma incontrolável risadaria. Ou pelo riso contido, quando uma frase, uma indagação ou resposta — do autor, réu ou testemunha — levou ao constrangimento de alguma das partes ou do próprio magistrado.

            Em algumas décadas de atividade como advogado, vi acontecerem várias dessas situações, que me possibilitariam, se fosse o caso, escrever um pequeno livro sobre o assunto. Mas, neste momento, prefiro me restringir à lembrança de uma cliente que tive, há mais de vinte anos, que não posso identificar, por razões evidentes, mas a quem chamarei de dona Marinalda.

            Dona Marinalda era uma mulher destrambelhada! Muito inteligente e astuta, mas absolutamente incontrolável, em suas palavras e reações durante as audiências, o que, algumas vezes, criava situações mais do que constrangedoras para os presentes e embaraçosas para o seu advogado. E foi justamente por isto que, já no terceiro processo como seu defensor, decidi substabelecer a procuração que me passara e sugeri que procurasse outro profissional.

            Graças ao seu jeito imprevisível e à sua língua destravada, em mais de uma ocasião precisou defender-se pela prática de calúnia, injúria ou difamação. A mulher era o que se conhece como uma “língua de trapo” e padecia de uma incontinência verbal incorrigível! Porque, era só brigar com alguém, que externava sua opinião sobre o desafeto, sem escolher hora, lugar ou selecionar os adjetivos para isto.

            E, durante o tempo em que cuidei de sua defesa, ela aprontou algumas. Como certa vez, em que o representante do Ministério Público começou a pegar no pé dela, num processo e, irritada com isso, declarou em pleno cartório por onde tramitava o feito, alto e bom som, que o promotor a estava perseguindo, porque ele era um gay enrustido e sabia que ela sabia disso.

            Não faltou um serventuário fofoqueiro do cartório que, como sempre acontece em tais casos, fosse contar a “boa nova” ao ofendido. Mas, naquela época essa história de homofobia não estava em alta, pelo viés do politicamente correto, como vemos agora. Então, o que fez o ofendido foi ajuizar uma ação contra ela, pela prática de crime contra a honra, naturalmente. E, como é da praxe, o juiz, antes de receber a queixa, designou uma audiência preliminar, cujo propósito é o de tentar uma conciliação entre as partes e evitar o processo.

            E lá fui eu acompanhar a dona Marinalda na audiência, depois de orientá-la a negar a veracidade de sua afirmação e a se desculpar pelo que dissera num momento de raiva. É o que se chama de retratação. Só que eu não sabia o que se passava na cabeça da louca e nem o que ela havia elucubrado para o momento daquela audiência. De tal sorte que, quando o magistrado resumiu o teor da queixa-crime para ela, terminou com uma pergunta, que é a dica para que o ofensor tente escapar do processo:

            — Dona Marinalda, afinal de contas, a senhora afirmou ou não afirmou que o ilustre representante do Ministério Público, aqui presente, é gay?

            Sem olhar para mim e contrariando completamente as instruções que eu lhe dera no escritório, ela respondeu ao juiz:
            — Eu não só afirmei isso, como vou pedir ao meu advogado que requisite um exame pericial no ânus do promotor!

            No primeiro instante, nenhum dos presentes à audiência esboçou qualquer reação. Mas, antes que alguém risse, sorrisse ou desse uma gargalhada, o juiz disse, bem sério, que suspenderia a audiência e a remarcaria, porque não havia clima para que aquela tentativa de conciliação fosse adiante.

                Poucos dias depois, renunciei ao mandato para defendê-la, guardando a suspeita de que essa “queixa-crime” morreria na gaveta do julgador.  

            É compreensível... Porque, mesmo que ela fosse condenada, o prejuízo para a imagem do tal promotor, numa comarca pequena como aquela, seria muito maior do que a punição que a dona Marinalda poderia sofrer.

              Pois suspeito que seja este o mesmo motivo pelo qual, até agora, nenhum ministro do STF respondeu ou tomou qualquer providência contra as afirmações infamantes do presidente do PTB, em relação a dois membros da Suprema Corte. Só não sei é se, em caso de processo, o Roberto Jefferson também irá pedir algum exame pericial em ambos.


Ilustração: Google Imagens.