DR. XANDU

DR. XANDU
A casa na esquina da Tinguís com a Prudente, na diagonal oposta ao muro onde nossa turma se reunia, ficou desocupada por apenas um curto espaço de tempo. Recém-alugada por um casal com dois filhos pequenos, vimos de camarote a chegada da mudança. Nós todos ali no muro, tentando recepcionar os novos vizinhos da melhor forma possível, através de hospitaleiros olhares de boas vindas arremessados generosamente em sua direção. Juntamente com os móveis comuns, lá estava uma vistosa, antiquada e assustadora cadeira de dentista, suplementada com apetrechos exóticos: uma pia esmaltada e redonda pra cuspir; uma luminária Atlante (até hoje não conheço outra marca de luminária pra dentista); e o objeto medieval de tortura mais odiado pela gurizada curitibana, uma broca de três hastes movida manualmente a pedal, daquelas que trepidavam pra burro e sem jato d´água para resfriar o dente, fatores que – pelo menos na minha fértil imaginação - multiplicavam a dor por mil.
Pelo visto, o chefe da família pretendia não só morar ali, mas também exercer a sua profissão - procedimento comum nos saudosos anos da década de 1960 em Curitiba. Em que pese aquele pavor que sentíamos ao pensar nos consultórios de dentistas, nunca era demais ter um deles por perto, para o caso de uma inesperada e insuportável dor de dente.
Lenta e gradualmente, fomos nos familiarizando com os novos vizinhos, e não demorou muito para que um dos ‘doze terríveis’ percebesse que o Dr. Renê (esse era o nome dele) lembrava demais um mágico chamado Xandu, que vinha fazendo sucesso em frequentes apresentações na TV Paranaense. Para ser bem franco, o homem era a cara do Xandu, sem tirar nem por, inclusive com aquele mesmo discreto e oblíquo sorrisinho. Não deu outra: em nossas conversas, ele era sempre mencionado como o ‘Dr. Xandu’.
Eu e dois dos meus irmãos éramos membros remidos da turma, e muitas das conversas de esquina tinham prosseguimento na mesa de refeições lá de casa. Assim sendo, nossa mãe deve ter ouvido várias vezes nós fazermos referência ao novo vizinho como ‘Dr. Xandu’. Ela deve ter estranhado um nome assim tão esquisito, mas desconsiderou seus questionamentos particulares e não se interessou em perguntar o porquê de assim o chamarmos.
Em uma fatídica noite, no aconchego do lar eu me deliciava com uma cocada baiana daquelas puxa-puxa, quando senti uma fisgada animal num dente lá de trás. Devia ser alguma cárie ou nervo exposto, e àquela hora o Dr. Firmino - dentista da nossa família - não estava mais em seu consultório. Tentamos falar com ele por telefone na sua casa, mas nada de achar o homem. A dor era terrível e se espalhou por toda a face, então minha mãe me aplicou a cera do Dr. Lustoza - um remédio milagroso daquela época que acabava com toda e qualquer dor de dente - mas nem de longe me trouxe alívio.
Nisso chegou meu irmão mais velho, e ao notar o estado de petição de miséria que eu me encontrava, sugeriu:_”Mãe, porque vocês não dão um pulo ali no novo vizinho que é dentista, ele pode dar um jeito...” A ideia foi prontamente acatada e minha mãe e eu nos dirigimos apressadamente à sua casa. Batemos a campainha. Quem veio atender foi a esposa, magrinha e simpática. Minha mãe falou:_”Boa noite, muito prazer, somos vizinhos de vocês, moramos ali ó, a senhora desculpe a hora, é que meu filho está morrendo de dor de dente...será que o Dr. Xandu podia dar uma olhadinha nele?” A coitada da mulher ficou olhando perplexa, e timidamente perguntou: _”Desculpe...quem..?” E minha mãe:_”O Dr. Xandu, seu marido, ele é dentista, não..?” Eu fiquei sem saber o que fazer, queria morrer de vergonha, e por um momento até a dor de dente passou. Resolvi por fim à conversa:_”Mãe, é Dr. Renê o nome dele !!!”_”Ué, mas vocês em casa disseram...”. _”É Dr. Renê, mãe, é Dr. Renê, e não teime mais !!!”
Hehehehe...seguiu-se um silêncio constrangedor, mas rapidamente fui atendido pelo Dr. Xandu, desculpem, pelo Dr. Renê.
Saí de lá inteiramente aliviado da dor de dente. Só não sabia onde por a cara na saída, quando me despedi da esposa dele.
(Marco Esmanhotto)
Marco Esmanhotto
Enviado por Marco Esmanhotto em 20/09/2020
Reeditado em 23/09/2020
Código do texto: T7068071
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