CASAMENTO FELIZ - (CONFISSÃO )-

Senhor juiz. Pretendo relatar-lhe os fatos desde o início com todos os detalhes.

Estávamos juntos há pouco mais de cinco anos. Entretanto, nossa vida há tempos deteriorara. Admito que ambos, salvo raros momentos, silenciosamente nos suportávamos.

Mas ela resolveu fazer um último esforço para melhorar nosso relacionamento, programando uma semana de férias numa praia ensolarada. E, com entusiasmo, cuidou de tudo, desde a escolha do hotel à arrumação das malas.

A viagem transcorreu sem maiores incidentes. O único transtorno consistiu naquele com o qual já me acostumara. De tempos em tempos era forçado a dar breves paradas para fumar fora do carro, pois ela tinha horror de fumaça.

Afinal chegamos. Um hotel pequeno e aconchegante, um jantar leve, um passeio pela praia, um banho revigorante e cama. Porque estava bem cansado e ansiava ler um pequeno livro que recentemente havia comprado. Ela fez o mesmo e também deitou.

Minutos depois perguntou-me. “Você pretende continuar lendo? Porque essa luz de cabeceira me incomoda e você sabe que só consigo dormir no escuro!”

“Estou apagando a luz”, respondi.

Sem sono revirava-me na cama. Calor fortíssimo. O suor escorria pelo meu corpo. Lembrei-me do salvador ar condicionado.

Acendi a luz e liguei-o.

“Você não vai querer manter essa droga ligada durante a noite. Amanhã cedo não iremos à praia, mas ao hospital. Por favor, desligue isso!”

“Estou desligando!”

Continuo a suar e a virar-me de um lado para outro em pleno escuro.

Ouço alguns mosquitos fazendo vôo rasante. Sou capaz de suportar quase tudo, mas nunca tolerei mosquito. Especialmente esses sonorizados. Acendo novamente a luz. Abro minha mala e retiro dela um inseticida que cautelosamente havia lembrado de trazer.

Mal começo a espargi-lo ela se levanta como um demônio, permanecendo em pé na cama.

“Que é isso? Quer me matar? Você sabe que sou alérgica a inseticidas. Abra imediatamente a janela e retire do quarto esse ar empestado que já estou sufocando.”

Correu ao banheiro. Quando voltou encontrou-me quase vestido.

“Onde vai?”

“Ao saguão, fazer companhia ao guarda noturno.”

E fui.

Ajudei-o a fazer todos os pães, bolos e tortas que iriam ser servidos pela manhã. Cortei e descasquei uma montanha de frutas. Preparei, até, alguns litros de suco de laranja.

Finalmente o dia raiou.

Procurei-a logo cedo e usei todos os argumentos para convencê-la de que precisaríamos mudar. De preferência para uma casa ampla que dispusesse, quando menos, de dois quartos.

Relutou um pouco, mas acabou por concordar.

Alugamos um belo chalé a pouco mais de cem metros do mar.

Já instalados convidei-a para acompanhar-me ao supermercado para comprar o indispensável, pois a casa nada dispunha a não ser os utensílios culinários.

“Para que?” indagou-me. “Nós não iremos mesmo preparar nada aqui!”

Fui sozinho. Comprei um pouco de tudo e abasteci armários e geladeira.

Ela saíra. Supus que tivesse ido a praia. E lá a encontrei.

Tomava sol quando cruzei com um amigo que há anos não via. A conversa rolou fácil. Dirigimo-nos para um pequeno bar encostado na areia. Tudo parecia dar certo, pois ambas as mulheres também estavam se entendendo muitíssimo bem.

Conclui que fora um encontro providencial. E resolvi estendê-lo convidando o casal a degustar, à noite, uma moqueca que me propunha a fazer. Contei-lhes que tinha a intenção de comprar peixe fresco e tentar conseguir camarões gigantes. Eles iriam adorar.

Concordaram, ficaram de trazer o vinho e despedimo-nos com tudo acertado.

Foi quando, já sós, ouvi uma voz gutural a zunir nos meus ouvidos.

“Você não está pensando que vou ajudá-lo a fazer essa moqueca. Vim para descansar e não estou disposta a cozinhar, limpar peixe fedorento nem descascar camarão. Menos ainda a lavar pratos ou limpar a sujeira toda que vai se formar.” E completou. “Não conte comigo para nada. Você que inventou esse programa doido e é quem vai cuidar de tudo.”

Meus amigos chegaram em casa à hora combinada. Encontraram a esperá-los uma deliciosa moqueca de badejo com camarões graúdos, arroz soltíssimo e um pirão cremoso.

De sobremesa uma singela, mas saborosa salada de frutas com sorvete. E, para finalizar um café instantâneo igualmente delicioso.

Todos, repito todos, amaram a refeição improvisada.

Sobrou-me a louça, talheres, travessas e panelas sujas a lavar. Eram numerosas, pois todo material utilizado para o preparo dos pratos também não fora limpo e estava a aguardar alguma providência

Empilhei-os na enorme pia da cozinha. E, ali os deixei ficar.

Sentei-me a observá-los. E a matutar.

A situação estava a exigir uma enérgica resposta. Porque tinha absoluta certeza que nunca fora um verme. Nem estava disposto a ser tratado como tal.

Por isso mesmo, na manhã seguinte, quando me perguntou se não iria acompanhá-la à praia respondi-lhe que primeiro pretendia lavar as tralhas sujas.

Aguardei-a sair e dirigi-me à cozinha onde resolvi compor um quadro verdadeiramente psicodélico. Misturei toda comida que sobrara na noite anterior e joguei-a sobre panelas e pratos a lavar. Fui ao quintal e recolhi terra, mato, lixo, jornal velho, vidro quebrado e até algum excremento canino que ali encontrei. Lancei sobre tudo, acrescentei alguns quilos de farinha, um litro de groselha, um resto de pinga e formei uma maçaroca decididamente irreconhecível. Não perdoei sequer mesa e cadeiras que receberam generosa camada de creme de leite, molho de tomate, mostarda, molho inglês e goiabada.

Corri depois ao supermercado. Comprei algo em torno de cinco dúzias de inseticidas, pesticidas e cupinicidas. De todas as cores e marcas. Alguns até com bomba manual de acionamento. Inclui no acervo algumas latas de creolina, querosene e cloro de limpeza. Num pequeno armazém adquiri material para o preparo de cigarros de palha. E fumo de corda de primeira. Também alguns charutos dos melhores que encontrei.

Voltei para casa e fiquei a aguardá-la.

Ela retornou pouco depois e nada percebeu. Aguardei que tomasse seu banho.

Quando saia do banheiro, já limpa e perfumada, dei-lhe outro banho com um dos mais fortes inseticidas que comprara. Sua roupa colou ao corpo e seus cabelos se emplastaram no rosto.

Ficou histérica e gritava enlouquecida, dizendo que ia morrer e afirmando que eu ficara doido.

Indiferente ao que verberava, a custa de jatos revigorantes, empurrei-a à cozinha e mostrei o que lhe esperava.

Ela dava mostras de estar apavorada. Mas, na minha mira certeira, não tinha como furtar-se a iniciar o trabalho acabando por assumir e desincumbir-se da tarefa que lhe competia. Porque a cada hesitação ou vacilo recebia nova e estimulante carga de qualquer dos numerosos pesticidas que trazia comigo.

Quando resolvi fumar ela assustou-se ainda mais. Por temer que a chama do isqueiro pudesse incendiá-la.

Está claro que essa intenção não se incluía nos meus planos. Procurei tranqüilizá-la informando que ela apenas iria desfrutar do prazer de compartilhar de algumas boas baforadas que iria dar. Contei-lhe que tinha certeza iria adorar a fumaça do cigarro de palha, especialmente comprado para brinda-la.

Apesar disso não deixei de recomendar-lhe que não descuidasse da limpeza que deveria ser exemplar. Trabalhando em absoluto silêncio. Sob pena de esquecer-me que ela estava altamente inflamável e involuntariamente transformá-la num crocante torresminho.

Foram apenas três horas de labuta. Ela não parava de resmungar dizendo que estava com a pele ardendo, vermelha e pipocada.

“Mentira que você não é milho”, respondi-lhe várias vezes.

A louça acabou por tornar-se brilhante. E a cozinha limpa como um altar.

Quando terminou senti que seu corpo exalava um forte cheiro de querosene mesclado com um toque de creosoto. Não nego, também, que podiam ser vistas algumas poucas manchas vermelhas esparsas. Nada, todavia, que um sabonete de qualidade e alguns bons banhos de imersão não resolvessem.

Delicadamente contei-lhe que precisaria ainda recolher todo o lixo e depositá-lo no lugar a ele reservado. Depois poderia fazer suas malas e retirar-se. Estaria mesmo disposto a entregar-lhe as chaves de seu carro, pois pretendia gozar calmamente o que restava da minha semana de férias.

Não nego tenha gasto um bom dinheiro com todos aqueles produtos. Mas valeu a pena. Ela sumiu e nunca mais quis ver-me.

Ganhamos todos.

Senhor juiz. Perdoe-me a ousadia. Mas acredito não mereça ser condenado. Essa mulher sempre foi um traste. Era pernóstica e não servia para nada. Pelo menos uma vez na vida cumpriu sua obrigação e fez o que devia.

Além disso, excelência, nenhuma lesão lhe causei. Soube que o dermatologista recuperou-a totalmente em apenas duas semanas. E sua pele, ao que dizem, perdeu até algumas rugas.

Exatamente o que ela mais queria!