O FIGURANTE

Vi a vaga de figurante num filme de ação num anúncio da internet. Não pensei duas vezes, "vou encarar!". E logo veio meu irmão Celso me perguntar: "E por acaso você tem alguma experiência como ator?" Você quer dizer como figurante, Celso? E precisa-se de experiência pra isso? Se bem que eu até tinha experiência como figurante trabalhando na empresa do meu pai; o pai era o cabeça, Celso o braço direito, e eu era o quê? O umbigo, que fica escondido debaixo da camisa ou da calça que vai até a boca do estômago, o umbigo, que ninguém sabe pra que serve. Serve pra isso: pra ser figurante. Eu era um umbigo figurante.

Fui chamado para a entrevista na segunda-feira. Perguntaram meu nome e meu grau de escolaridade. Não pude mentir, mandei na lata, "só fui até o sexto". Só fui até o sexto... Essa era a minha frase curricular, sexto o quê ninguém sabe. Pensei que não, mas acabei ganhando a vaga e me levaram para o espaço do cenário, uma rua cheia de automóveis e banquinhas de feira. "Você vai ser um vendedor de melancias", falou um dos caras da produção e me empurrou pra trás de uma das bancas, cheia de frutas, algumas de plástico, mas as melancias pareciam bem reais. Aí esse cara me orientou claramente sobre tudo o que eu iria fazer: "fica calado". Aí eu pensei: ué, um vendedor de melancias ficar calado? Mas entendi que anunciar o produto ou ficar de boca fechada não faria diferença alguma ali, afinal, eu só era o figurante. Bom, mas se era pra fazer a coisa, então que fosse bem feita, eu ia atuar como um verdadeiro vendedor de melancia!

A cena começou, uma moto a toda velocidade surgia lá no comecinho da rua, eu, que não fazia ideia do que ia acontecer, porque ninguém me passou o script, fiz a minha parte, comecei a anunciar: "olha a melancia fresquinha... Uma por 12 e duas por 20! Docinha, hein! Olha lá, olha lá..." Não entendi nada, só vi quando a moto entrou com tudo na minha banquinha e estourou as melancias pra tudo que é lado. O piloto caiu e outra moto se aproximou, agora os dois pilotos se batiam, trocavam socos e golpes de karatê. Os demais figurantes "donos das banquinhas" começavam a murmurar, faziam um tumulto, corriam... Eu cheguei perto dos dois caras e fui logo reclamando: "ô rapaz, isso é coisa que se faça? Como é que eu vou sustentar minha família agora, hein? Olha pra minha banquinha, rapaz, olha o que você fez!" Eu sabia que ninguém estava me ouvindo, eles tinham é que brigar; mas eu era o figurante, eu era o vendedor de melancias e agora minha banca estava totalmente destruída. Entrou mais um cara em cena, não sei quem era, nem o que fazia, e começou a bater nos dois caras que rolavam no chão, aí eu aproveitei e entrei no embalo, bati nos caras também, chutei a areia pra cima deles, reclamei por causa da banca. A briga só parou mesmo quando chegou a viatura da polícia, mas houve uma troca de tiros e eram para acertarem seis figurantes, esses cairiam mortos. Cinco figurantes caíram, faltava eu, mas fiquei de pé, eu estava olhando aquela bagunça, porque sabia que ninguém estava me vendo. Daí a polícia conseguiu render os dois bandidões, e aquele cara que tinha chegado não se sabe de onde para bater nos dois, foi contar pra polícia que os bandidos tinham matado o seu primo na sua casa, que trágico. Eu, que não sou besta, fui reclamar também, falar da minha banquinha, sabia que a polícia não ia me ouvir mesmo, porque eu só era o figurante. O cara suplicava aos policiais: "vamos à minha casa, o corpo do meu primo está lá!" Então entraram na viatura, eu entrei também.

Chegando na casa do indivíduo, vimos o corpo do morto. O policial se abaixou e observou o ferimento, eu o imitei, sabia que não estava nem aí, porque eu só era o figurante. "Quanto sangue aqui" falou o policial, "ketchup" eu afirmei, sentindo o cheiro. "AINDA ESTÁ VIVO!" ele exclamou, ao analisar o pulso do ex-morto, então cochichei no ouvido do desenfalecido: "prende a respiração, imbecil, você não é ator?". "Chame a ambulância" o policial ordenou, daí eu fui fazer a ligação, mas ele estava falando era com o primo do morto, mas e daí? Eu era o figurante, ninguém estava me notando. Liguei e em poucos minutos a ambulância chegou, na verdade nos filmes elas chegam bem mais rápido, exceto quando tem comercial.

Enquanto trocavam o cenário, fui procurar algo para comer, estava com uma fome danada. Achei bolachas encima de um balcão, então enchi a boca e fui me sentar. Novamente o cara da produção foi até mim e meteu um band-aid na minha testa, entendi que agora eu era um dos pacientes na recepção do hospital. Fiquei sentado ali, comendo minhas bolachas, enquanto o primo do moribundo conversava com o policial. Pelo que entendi, tinham atirado no coitado porque ele havia descoberto onde os bandidos estavam escondendo sei lá o quê, é que estavam falando muito baixo e não consegui entender; então o policial pediu ao médico que fizesse de tudo para manter o moribundo vivo, eu também estava torcendo por aquilo, só não esperava que um dos bandidos aparecesse naquele instante no hospital! Foi logo mandando todo mundo deitar no chão, inclusive o policial, que nem teve tempo de pôr a mão no revólver e o que era aquele revólver diante da metralhadora que estava nas mãos do bandido? Eu já sabia, "lascou, ele vai matar o moribundo", então enquanto ele não via corri até o quarto da vítima, lhe dando o maior susto, "bora, eu tenho que te tirar daqui!" falei, com a boca cheia de bolacha. Ele me olhou confuso, mas nem liguei, o pus nos meus ombros e corri com ele pra fora do quarto, e ele repetia: "por que você tá me carregando, seu idiota? Você não é só o figurante? E eu disse: "Mas se é pra fazer a coisa, que seja bem feita".

Lyta Santos
Enviado por Lyta Santos em 04/10/2021
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