Destralhadores Anônimos

Era uma típica sala para uma conversa entre viciados. Dessas que você assiste em filme. Há umas oito cadeiras de bar colocadas em círculo. Todas as cadeiras ocupadas. Tive que pegar uma e entrar no círculo. Agora são nove cadeiras.

Cheguei bem na hora que um homem chamado Charles Fonseca estava falando. Ele é um escritor. Dizia estar viciado em escrever romances maximalistas, de 800 páginas, no mínimo. Então, ele caiu numa conversa de um grupo intitulado “Steve Jobs estava certo”. Deixou de ser maximalista para ser um minimalista. Passou a escrever livros de 80 páginas. Até aí, tudo bem. O problema é que seu minimalismo só fez piorar. Logo ele estava escrevendo livros de 40 páginas, com prosa bege. As editoras passaram a recusar seus originais. Estavam demasiado curtos para uma publicação. Pediram contos, mas ele estava passando dos limites nesse gênero também. Contos curtíssimos, menores que os de Dalton Trevisan. Passou para a poesia. Não deu outra, começou a cortar trechos da poesia também. Hoje ele lamenta ser um mero autor de haicais. “Exagerei no destralhe literário”, ele diz. “Me arrependo, quero voltar a escrever romances calhamaços que podem ser usados para segurar a porta, para que essa não bata. Meu nome é Charles e eu tenho um problema”.

“Obrigado, Charles!”, todos disseram.

O organizador apontou para mim e disse que era minha vez. E perguntou meu nome.

- Marcelo. Mas eu acabei de chegar.

- Quem acaba de chegar sempre deve falar. E não se esqueça: o que importa aqui é “mais é mais”. Seja detalhista.

Levantei e comecei a contar sobre o meu problema…

Lembro de ter chegado em casa e ter visto várias roupas femininas no chão do quarto. Minha mulher que estava espalhando as roupas dela pelo chão. Me desesperei.

- MEU DEUS, VOCÊ ESTÁ ARRUMANDO AS MALAS. ESTÁ SEPARANDO AS ROUPAS PARA IR EMBORA! MAS EU NÃO FIZ NADA DE ERRADO! NÃO SE VÁ!!

- Calma, Marcelo, pelo amor de Deus, eu não estou te deixando!

- O que significa tudo isso, então?

- Vi na internet algo interessante. “Menos é mais”. Estou me livrando de roupas inúteis, que não usarei mais. Doação ou lixo. Chamam isso de destralhe.

- Bobagem.

Minha mulher Érica era uma mulher culta. Ela citou Hamlet para mim.

- Há mais coisas no céu e na Terra do que sonha a nossa vã filosofia, Marcelo. É por isso que o destralhe é necessário. Entre essas coisas, há muitas inúteis.

A princípio, não dei muita bola. Diariamente, Érica se livrava de papelada, roupas e outros itens. Enquanto isso, eu tentava trabalhar na minha mesa cheia de livros, canetas e papéis. Não conseguia. Concentração zero. Não demorou para Érica usar da filosofia “menos é mais” para explicar minha dificuldade de trabalhar no meio de tanta tralha.

- Comece destralhando a mesa e tudo ficará melhor.

Fui resistente. Disse a ela que havia livros importantíssimos, verdadeiros clássicos, não poderia me livrar deles assim.

- Você nem os lê.

- Já os li.

- Mentira.

- Pergunte qualquer coisa.

- Você pode ter lido, mas não tudo.Você fica lendo trechos picotados aqui e ali. Seu entendimento sobre esses livros são fragmentados e desconexos.

Continuei resistente.

- Como você é cabeça-dura!

Mas ela tinha até razão. Aquela quantidade de livros e outras coisas estavam pesando minha visão e minha mente. No escritório do trabalho, a mesma situação. Aquilo foi se acumulando ao longo de meses. Estava atrapalhando minha produtividade. Logo apareceu o recado do chefe, de forma sutil, é claro: “ou você destralha essas porra e trabalha direito ou nós destralharemos você”. Não é uma escolha muito difícil, não é?

Me livrei de alguns livros de Tolstói, Machado de Assis, Alan Moore e Dostoiévski. Doeu demais. Semanas lamentando. Doei essas obras-primas para uma biblioteca próxima de casa. Para que eu pudesse visitar esses livros sempre que quisesse. Era uma aposta que eu estava fazendo, para melhorar meu desempenho. E acabou dando certo! Minha produtividade melhorou e eu recebi elogios. Fiz o mesmo em casa, minha produtividade como marido melhorou e eu recebi elogios da minha esposa.

Parecia haver uma correlação entre destralhe e bom desempenho. Mas, como diz um clichê estatístico, correlação não implica em causalidade. Mesmo assim, continuei experimentando. Ajudava Érica no destralhe. Comecei a destralhar roupas também. E não apenas isso. Destralhamos as camisinhas e não demorou para Érica engravidar. Tivemos uma filha. Destralhes sucessivos em mais de um ano. A cada uma ou duas coisas que comprávamos, destralhávamos cinco. Nosso apê ficou mais espaçoso. Mas eu queria alcançar o “teto”.

Haveria algum limite, será que alcançaríamos uma satisfação cada vez maior quanto mais destralhássemos coisas? No trabalho, eu comecei a destralhar coisas digitais do computador. Atrapalhavam minha sensação de alívio. Mas meus colegas estavam odiando. Eu não queria parar, era muito bom destralhar coisas. Assim como passou a ser bom para a empresa eu ser destralhado. E assim, parei no olho da rua.

- Marcelo, você está exagerando.

Érica me apresentou a droga e agora se arrepende.

- Érica, você tem razão. Eu me sinto melhor cada vez que destralho. Parece que não há um limite. O destralhe descarrega minha alma. Aliás, parece que minha alma está perenemente carregada. A cada destralhe, uma carga tirada. Parece não ter fim.

Se você está desempregado e é viciado em destralhe, não é boa ideia ficar em casa. Destralhei o sofá, a cama, tapetes. Érica estava assustada, horrorizada. A gota d’água foi quando ela chegou em casa e notou algo estranho.

- Marcelo, cadê nossa filha?

- Eu não sei! Ela estava aqui agora.

Com tanta coisa destralhada, não seria difícil procurar a bebê. Mas não achamos.

- MARCELO, CADÊ A MINHA FILHA?!

Lembrei. Estava na caixa do lado de fora do apartamento, junto com outros objetos a serem destralhados.

- VOCÊ ESTÁ COMPLETAMENTE LOUCO! VOCÊ DESTRALHOU A NOSSA FILHA!

Érica foi embora e eu fiquei sozinho naquele apartamento quase vazio. Para me sentir melhor, destralhei mais algumas coisas. Até não sobrar quase nada.

Numa noite solitária, bandidos invadiram o apartamento. Ficaram chocados.

- Gonçalves, isso aqui não é bairro de playboy?

- Acredito que sim.

- Mas olha só esse apartamento limpo, leve e solto. Quase nada. Um humilde entre pujança. Olha ali o dono da casa.

Eu estava no chão, deitado. Tinha destralhado o colchão.

- É o seguinte, nós íamos tocar o terror, te bater, te torturar, comer seu cu. Mas não faremos isso, não. Sentimos dó de você. O que houve?

- Destralhei sem limites.

- Que porra é destralhar?

Expliquei. Disse que havia uma relação entre destralhar e se sentir melhor. Os bandidos ficaram convencidos. Falaram que tinha armas demais e que iriam destralhar. Além disso, iriam exigir um pouco menos das vítimas, a partir de agora. Deixaram algum dinheiro para mim e foram embora. No outro dia, de manhã cedo, eu estava comprando coisas para destralhar. Percebi que precisava de ajuda. Foi então que procurei os Destralhadores Anônimos.

Meu nome é Marcelo e eu tenho um problema!

FIM