A CUIDADORA NUNCA DESCUIDADA!

Naquele final de tarde, depois de despertar às cinco da matina e terminar mais um dia de trabalho pra lá de cansativo, o médico seguia de volta para casa em meio ao trânsito urbano infernal.

Afinal, iria descansar.

Dentre buzinas estridentes, posto que por ali sempre se travava uma disputa frenética pelo espaço da via, driblava a vida sã e salva frente ao batalhão de motos que lhe vinham pela contramão, sem que fiscalização alguma pusesse a mínima ordem naquela bagunça.

Quanto estresse! Valeria aquilo tudo a pena do esgotamento?

Vinha ele pensando na sua trajetória de vida até chegar ali.

Quantos estudos...desde a pré-escola. Quantas exigências!

Quantas provas, custos, concursos , títulos, noites mal dormidas, plantões aos feriados e finais de semana, anos sem férias, ausência familiar, dias mergulhado nos esforços para que fosse ele considerado, pela boca pequena, uma pessoa "privilegiada" pela sorte da vida.

Uma pessoa de classe média! Que sortudo! Teria que pagar à sociedade que o "formou".

De repente, o seu celular tocou.

Não seria possível àquela hora da noite mais alguém a ser socorrido. Mas era. Porque sempre é.

Uma voz masculina , em entonação desesperada e que se identificava como filho duma sua paciente, o chamava até a residência para avaliar um mal súbito na sua mãe já bem idosa.

Respirou fundo, ganhou fôlego , mudou a direção do caminho de casa e seguiu ao trabalho que lhe chamava.

Lá chegando foi atendido na portaria do condomínio:

-Óia, é o senhor o doutô da dona fulana? Mostra a sua carta de motorista pra mim, homê deu deus!

-Pode ser a minha identidade profissional, senhor?

-Pode não! Aqui nóis tem que sabê se a pessoa sabe dirigi direito!

-Aqui está senhor.

-O homê sabe onde é o apartamento? Já teve aqui?

-Sei sim senhor.

-Mas vou explicá de novo pro homê não errá. Sobe a rampa, estaciona na primeira esquerda da rua e sobe até o andar dez, mas só pelo elevador de serviço.

O profissional acatou prontamente a ordem do porteiro que desconhecia totalmente as leis de trânsito e os dizeres da lei dos elevadores.

Não valeria a pena de mais cansaço tentar argumentar o porquê daquele pedido. Afinal, ele era médico, um ser privilegiado, jamais teria a razão. Era prudente se calar.

Chegado ao andar, tocou a campainha do "hall" de serviço.

-Boa noite doutor, mas por que o senhor veio pelo elevador de serviço?

-Porque eu estou a serviço, respondeu. Percebeu a incompreensão do morador mas omitiu o ocorrido na portaria, afinal ele era médico, um ser privilegiado, nunca teria a razão. Era prudente se calar.

Ao chegar na sala lhe foi pedido um momento.

Depois duns quinze minutos eis que a nova cuidadora lhe trazia a sua paciente, que nem de longe parecia ter tido uma mal súbito.

A paciente vinha caminhando bem, embora a passos curtos compatíveis com suas quase nove décadas.

Com os cabelos tonalizados de cinza claro e vestida num elegante "tailleur" creme, lançou ao doutor um sorriso de batom cor-de -rosa pastel, em tom de agradecimento à grata presença do médico...que dela cuidava há dez anos.

Um "look" clássico que destoava do de vanguarda da cuidadora, que vinha sempre cuidadosamente num batom vermelho paixão, cílios postiços, uma sombra azul de realce ao olhar pontiagudo, com enormes unhas postiças decoradas , bem coladas no leito ungueal, num decote que lembrava as estrelas de Hollywood.

Andava equilibradíssima num salto montanhoso, de fazer inveja ao equilibrista mais conceituado do mundo " soleil".

Depois das perguntas de praxe e do exame físico...

-Ora, a senhora me parece muito bem!

-Foi algo passageiro , doutor, já melhorei. Fiz o que me orientou na última consulta. Cuido do Diabetes com a dieta que me orientou.

-Claro, doutor, ela está bem porque sou eu que cuido dela, sempre com muito cuidado. Faço uma vitamina com cinco frutas e mel todos os dias, no jantar.

-Cinco frutas? Mel? No jantar? Mas e o diabetes dela?

--Ara, o doutor não sabe que frutas e mel são alimentos saudáveis para todos?

-Sim , claro que sei, sei sim; e há quanto tempo a senhora cuida dela?

-Faz duas semanas já.

O doutor, então, depois de mais um um acurado exame físico perguntou ao filho mais alguns detalhes do que havia ocorrido.

-Reclamou que os olhos escureceram quando se virou na cama. Pensei em algum problema na pressão arterial.

Mas o filho logo foi interceptado pela cuidadora.

-Nada disso, pressão não é assim, é diferente; foi o fígado, explicou ela, com todo o cuidado de praxe.

-Como assim, o fígado?- perguntou o médico.

-O senhor, depois de tantos anos de estudo, não sabe disso doutor?

-Do que, senhora?

-Que idosos não podem tomar chá de cidreira a essa hora da noite? Tomou e torceu o fígado! Tem que ter cuidado!

-Ah, sei, a senhora é cuidadora há quanto tempo?

-Há muito, doutor! Já tenho seis meses de experiência na profissão. Eu trabalhava no Hospital em outro tipo de trabalho e aprendia tudo só de ver os médicos e enfermeiros trabalhando. Mas era muito cansativo, então, fiz um curso e resolvi ser cuidadora. Descobri que meu dom é cuidar.

-Curso de quanto tempo a senhora fez?

-Dum final de semana todinho, doutor! Foi mole não! Estudei bastante e por isso sou uma cuidadora bem cuidadosa. Eu não descuido de nada! E não durmo em serviço! E também oriento os médicos.

-Ok, a pressão arterial, de fato, está um pouco baixa, a depressão está controlada, o diabetes um pouquinho descontrolado; vamos suspender esse remédio para hipertensão -por enquanto- e depois reavaliaremos. Vou deixar esses exames pedidos. Sigam direitinho a dieta que orientei por escrito.

Assim a cuidadosa cuidadora ficou extasiada com o atendimento.

-Doutor, o senhor é um dos meus! Adorei sua orientação de dieta! Eu também acho que remédio só faz mal! Gosto de médico que tira remédios! E que pede exames! O senhor está aprovado por mim! Eu vou dar uma linguiça bem leve para a pressão dela melhorar. Ela precisa de "sustança!"

O médico suspirou em tom de fuga. Percebi que pendurou as chuteiras das orientações e educadamente se despediu de todos.

-Obrigado, doutor- disse o filho totalmente refém da situação.

A cuidadora, então, levou o assustado e combalido doutor até a porta, enquanto lhe explicava:

-Doutor, o senhor não repara, mas eu gosto de saber "bem de perto" quem é que está cuidando dos "meus pacientes".

Meu defeito é ser cuidadosa e não descuidar nunca.

- Imagina, eu que agradeço pela sua ajuda diagnóstica e pela sua avaliação primorosa quanto aos meus cuidados profissionais.

(A resignação era a porta de saída do profissional, afinal, ele era um privilegiado e, numa réplica, ele nunca teria a razão).

O dia terminava com um desgastante episódio em metáfora dos tempos...

No dia seguinte, bem cedinho, o celular lhe soou. Era o filho da paciente. Ele gelou.

Mas...não demorou muito para o resignado doutor ser informado de que a cuidadosa cuidadora havia sido cuidadosamente despedida.

E o doutor, ainda exausto, aprendeu que os fatos dos tempos são os senhores de todas as razões...

Não é preciso explicar nada, as ocorrências falam por si mesmas...

Obs: Texto baseado em fatos reais.