Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo I: Tudo Bem (ou Quase)

Meu nome é Jerry Bocchio. Eu sei que já falei isso aqui antes, mas, se essa é a primeira vez que você vê uma história minha, eu sou um detetive particular. Costumo pegar casos que a Polícia não dá importância. Brigas de vizinhos, gatos de água, luz e internet, pichadores, árbitros de futebol envolvidos em esquemas de apostas, coachs quânticos etc.

Meu nome começou a ficar mais em evidência depois que eu descobri e ajudei a expor um diretor de TV que queria sabotar o próprio programa. Eu comecei a ser chamado para casos cada vez mais interessantes, mais desafiadores, e não apenas casos de suspeita de traição. O problema é que, juntamente com essa alavancagem do meu nome, veio também uma paixão.

E por que isso seria um problema? Porque, mesmo parecendo ser correspondido, ela teve que se mudar para outra cidade para alavancar a carreira dela. Como ela é uma pessoa tão espírito livre quanto eu, não tentei impedí-la. Talvez dois espíritos livres não sirvam pra viver juntos mesmo. Enquanto isso, fico apenas eu aqui, com a minha rotina de detetive.

Todo dia, antes de ir para meu escritório, eu dou uma passada na Padaria Nova Caledônia para tomar meu café da manhã: um copo de café com leite e um pão com manteiga na chapa. Um café da manhã com todos os nutrientes necessários para um dia de investigação. O dono da padaria, o Seu Rogério, me atende com toda camaradagem que só um dono de padaria tem pelos seus clientes.

Um belo dia, fui seguir a minha rotina matinal normal. Cheguei na padaria e vi que o lugar estava cheio. Seu Rogério veio até mim para atender, já com o meu pedido na ponta da língua. Eu, vendo toda a movimentação da padaria, comentei com o Seu Rogério:

– Olha, até que a padaria vai bem mesmo depois daquela gafe que eu cometi com o programa de fofoca.

– Que isso, J.B.! Aquilo ajudou a padaria a atrair ainda mais clientes.

– Como?

– Agora tem muito paparazzi e fã de fofoca consumindo aqui. Eu até coloco nesses programas matinais de TV, ao invés de noticiários.

– Que legal, hein, Seu Rogério? Pelo menos pra alguma coisa aquela aparição em programa de fofoca serviu.

– É, mas não foi só isso não. Quando aquela sua amiga influenciadora veio aqui atrás de você, ela atraiu seguidores pra cá também. Eu tive até que deixar duas mesas do lado da janela arrumadas pra parecer mesas de novela só pra eles tirarem fotos pro tal do Instagram.

Seu Rogério apontou para as mesas ao lado da janela. Acima da janela havia um aviso escrito "mesas instagramáveis". Ele voltou a dizer, dando risada:

– Quem deu essa ideia foi a Renatinha, do caixa. Essa molecada inventa cada coisa, né?

Nós dois estávamos conversando enquanto eu ia tomando café. Eu contava para ele as descobertas do meu último caso quando uma senhora chegou ao meu lado. Era uma senhora de idade já, parecia ter uns 60 anos, tinha o cabelo curto ao estilo Joãozinho, tingido de loiro, meio gordinha e andava com um ar de autoridade forçada, como se ela fosse um personagem do programa "Vai Que Cola". Eu estava reconhecendo ela, ela parecia ser aquela vidente que viralizou na internet pelo modo ranzinza como ela fala com as pessoas que ligam na rádio onde ela trabalha pra pedir conselhos. O nome dela é Solange Maria, mas a rádio a apresenta como a Vidente Solange.

Ela chegou cortando o assunto entre o Seu Rogério e eu querendo falar com o Seu Rogério:

– O senhor é o dono do estabelecimento?

– Vidente Solange! Que prazer recebê-la! Sou eu sim!

– Tá, tá, tá bom! Olha, deixa eu ir direto ao assunto. Eu recebi uma mensagem dos espíritos falando que você tem uma oportunidade de ganhar dinheiro em vista.

– Eles estão afiados, hein? Só que pra isso eu teria que abrir mão da padaria, então eu não aceitei.

– Você é idiota, é? Esse lugar aqui é cheio de encosto! Sai daqui antes que a oportunidade vai embora.

Rapaz, essa mulher é ranzinza mesmo! Pensei que era só uma personagem. Eu acabei entrando na conversa pra ver se a mulher se acalmava:

– Olha, dona vidente, talvez esse negócio de encosto não seja tão ruim.

– Como não? Você é lesado, é?

– Bom, aqui tem bastante encosto nas cadeiras pras pessoas não curvarem tanto as costas. Já é um alívio.

A Vidente Solange me olhou no fundo dos olhos como uma professora dos anos 80 que acabou de pegar o aluno colando na prova, pronta pra dar a reguada, e o Seu Rogério caiu na gargalhada. Depois de se recuperar do riso, o Seu Rogério disse para a vidente:

– Não se preocupa com isso não, o único encosto que eu tenho aqui é o Zé Maria. Né não, Zé Maria?

Zé Maria, o chapeiro da padaria, solta um riso meio constrangido. A Vidente Solange volta a falar:

– Você foi avisado.

Ela simplesmente pegou as coisas e saiu. Essa cena ligou o meu alerta. Durante meus anos de experiência como investigador, eu já vi muita cena parecida que se tratava de uma ameaça disfarçada. Então, pra tirar a dúvida, eu perguntei para o Seu Rogério:

– Seu Rogério, do que se tratava esse aviso dela?

– Olha, J.B., eu vou te falar porque você é amigo aqui, mas não espalha pra ninguém, beleza?

– Tudo bem!

– Um cara veio aqui semana passada me fazendo uma proposta pra comprar a padaria. Ele me ofereceu trezentos mil.

– Rapaz! E você fez o que?

– Eu recusei, lógico! Primeiro, porque o valor que ele me ofereceu foi muito abaixo do que a padaria vale. Segundo, porque eu não quero me livrar da padaria, aqui é a minha vida. E terceiro, se eu mandar todo mundo aqui embora, do nada, como eles ficam?

– Que estranho! Como que essa vidente sabia disso?

– Ué, J.B., ela é vidente! Ela deve ter mesmo esse negócio de paranormal aí, senão, não tava na rádio.

– Não, Seu Rogério! Esse negócio de paranormal aí não existe. Ela só está na rádio porque as pessoas gostam de acreditar que a vida pode ser resolvida simplesmente escrevendo o nome de uma pessoa amada num pedacinho de papel, ou bebendo água com limão, ou esperando o dia onde os astros se alinham etc. Quer saber? Me dá a conta aí! Vou dar uma pesquisada sobre ela no meu escritório.

– Eita! Esquenta com isso não, J.B.!

– Não, não, Seu Rogério! Essa mulher ligou um alerta na minha cabeça.

Voltei para o meu escritório para procurar algo sobre essa Vidente Solange. Durante o dia não deu tempo, pois eu trabalhava em mais dois outros casos: Um músico frustrado que desconfiava que sua música foi plagiada por uma outra banda, também não tão conhecida assim, e um vendedor ambulante que desconfiava que seus aparelhos TV Box estavam sendo furtados.

No final do expediente foi onde eu consegui tirar tempo pra fazer a pesquisa. A pesquisa levou mais tempo do que eu esperava, eu demorei uns dois dias para ajuntar todas as informações que consegui. Mas eu descobri algumas coisas interessantes.

Nos anos 90, a Vidente Solange havia sido desmascarada ao vivo, em um programa de auditório de domingo, no horário nobre. Levaram ela para um suposto presídio desativado onde ela dizia ver coisas horríveis. Ela fazia caras e bocas, gritava, babava e suplicava como num filme de terror. No final, o dono do local disse que aquilo não era um presídio desativado, era um shopping center desativado.

Após esse episódio, ela sumiu por um bom tempo, mas, por incrível que pareça, tinha alguns seguidores de suas dicas astrais que a tratavam como o novo Messias. Aí, com a chegada das redes sociais, ela começou a fazer vídeos, fazer mais seguidores que, ou se esqueceram do episódio nos anos 90, ou inventavam desculpas esfarrapadas pra justificar o mico. Depois de um tempo, foi contratada pela Rádio Aurora Brasil, onde trabalha atualmente.

Aqueles tais "encostos" que ela se referia seriam espíritos maus que gostam de atrapalhar a vida das pessoas. Só que nunca fica claro quem seriam esses "encostos". Seriam almas de pessoas ruins durante a vida? Ela sempre deixa ambíguo.

A linha de raciocínio dela também é bem ambígua: Uma gororoba de astrologia, com psicologia positiva, com aliens, com rituais de várias religiões diferentes. Algo muito parecido com o que faziam na serie "Supernatural". A diferença é que "Supernatural" se vende como ficção e não fica mandando o público seguir seus conselhos.

Eu acho que já ficou bem claro aqui que eu não acredito nisso, certo? Não que eu tenha algo contra quem acredita, mas não gosto quando quem acredita fica obrigando as pessoas ao redor dela a agirem de acordo com a crença dela. Se existe mesmo alguma força cósmica superior, isso sim seria algo que a irritaria.

Porém, parece que as pessoas que usam as redes sociais dessa Vidente Solange agem exatamente assim. Vi depoimentos de pessoas que terminaram relacionamentos, terminaram amizades, demitiram funcionários ou pediram demissão da empresa, mudaram seus filhos de escola, alguns até mesmo diziam ter expulsado familiares por causa das crenças no tal do "encosto".

Vi até mesmo um divulgador científico, que também era influenciador, que fazia vídeos refutando muitas coisas que a Vidente Solange divulgava. Só que ele tinha poucos vídeos e sumiu depois de um tempo. E ele era muito odiado pelos seguidores da Vidente Solange, diziam que ele fazia os vídeos com a ajuda do "encosto". Esse ser, pelo visto, é onipotente.

Depois de anotar tudo isso, deixei para ir falar com o Seu Rogério. Esperei o dia amanhecer e fui na Padaria Nova Caledônia no horário de sempre. Só que, quando eu cheguei lá, uma surpresa desanimadora: a padaria estava fechada! E na porta havia um aviso que ela foi fechada pela Vigilância Sanitária.

Não pude acreditar de primeira, então, fui até uma das janelas para olhar se havia acontecido algo dentro da padaria. As luzes estavam quase todas apagadas e o Seu Rogério estava no balcão, cabisbaixo, conversando com um homem de terno e gravata.

Eu gritei o nome do Seu Rogério. Ele disse que não queria falar comigo no momento, mas eu insisti. Seu Rogério é meu amigo e eu não queria deixar ele sozinho nessa situação. Depois de muita insistência, Seu Rogério abriu a porta de trás para eu entrar. Enquanto ele ia me levando até o balcão, eu perguntei o que aconteceu e o Seu Rogério, após dar um grande suspiro, me respondeu:

– Um cliente chamou a Vigilância Sanitária falando que ingeriu pelo de rato na comida e pegou uma infecção alimentar.

– Nossa, Seu Rogério! Como isso aconteceu? Eu vejo você ligando pra dedetização frequentemente.

– Sim, semana passada mesmo eu contratei, mas, por algum motivo, a Vigilância Sanitária achou um ninho de ratos dentro do meu estoque, onde eu guardo a farinha de trigo.

Seu Rogério e eu chegamos ao balcão, onde o homem engravatado aguardava. Ele era um homem alto, com o cabelo raspado, um cavanhaque e segurava uma maleta. Na frente dele, em cima do balcão, um calhamaço de papéis que parecia ser um contrato. O homem me reconheceu por algum motivo e foi se apresentando:

– Detetive Jerry Bocchio! Que prazer em conhecê-lo pessoalmente! Meu nome é Jorge Abílio, sou corretor de imóveis.

Ele me deu a mão e eu o cumprimentei, mas depois me toquei de uma coisa:

– Seu Rogério, você vai vender a padaria?

Seu Rogério viu minha cara de preocupação e respondeu:

– Sinto muito, J.B., eu não tenho muito o que fazer nessa situação. A família do rapaz está processando a padaria.

– Mas você disse que trezentos mil é muito abaixo do valor real da padaria.

Então, o corretor se intrometeu na conversa todo pomposo:

– Não é mais trezentos mil. A gente está comprando por cem mil agora. Economia é assim, né?

Seu Rogério, tentando tirar graça da situação, e falhando por causa de falta de forças pra isso, respondeu:

– É, J.B., bem que a Vidente Solange me avisou, né?

Nesse momento, vendo o Seu Rogério abatido e o corretorzinho de meia tigela dando risada, juntamente com a menção àquela picareta, que eu já odeio só pelo fato de tudo resultar nisso, eu fiquei irritado. Eu precisava fazer algo para impedir isso. Eu olhei no fundo dos olhos do Seu Rogério e disse:

– Seu Rogério, não venda a padaria!

– Mas, J.B.! Como não?

– Eu vou livrar você dessa. Eu tô sentindo cheiro de coisa errada no ar, e não é esse perfume de cara metido a macho que o corretor tá usando não.

O corretorzinho se meteu de novo:

– Qualé, detetive! Eu sei que você é bom no que faz, mas não tem o que investigar aqui não. A Vigilância Sanitária achou o ninho dos ratos e o cliente fez o exame que detectou os pêlos de rato. Pelo que eu ouvi da história que o Seu Rogério me contou, a Vidente Solange acertou de novo. Você deveria ouvir o programa dela, te ajudaria a alavancar sua carreira de detetive.

– Eu não estou dizendo que ela errou não, Jorge. Ela havia dito que tem encosto nessa padaria. Ela só não contava que o encosto sou eu.

– Hahahaha! Você é muito engraçado, detetive! Só toma cuidado que os encostos não gostam de ser desafiados.

– Você, pelo visto, conhece bastante do assunto, Jorge.

– Claro! Eu sigo as recomendações dela e estou aqui agora.

– Destruindo sonhos dos outros? Os astros, ou espíritos ou os sei-lá-o-quê devem sentir muito orgulho de você.

– Olha, eu não destruí sonho de ninguém. Foi dado um aviso a ele e ele não ouviu. Eu sou só o executor, não tenho culpa nessa. E então, Seu Rogério? Falta só a sua assinatura.

Essa última fala do corretorzinho irritou o Seu Rogério. Ele pegou o contrato de cima do balcão e o rasgou no meio.

– Dá o fora da minha padaria, seu moleque!

Num tom meio debochado, o corretorzinho se virou e foi embora.

Seu Rogério e eu ficamos um tempo sozinhos na Padaria Nova Caledônia. Pra agradecer a minha ajuda, ele pediu um café da manhã por delivery para entregar lá para nós dois. Quando chegou, nós sentamos em uma das mesas para tomar e o Seu Rogério, um pouco mais em si, começou a falar:

– J.B., e agora? Você acha mesmo que consegue? O julgamento é daqui a algumas semanas.

– Tem algo muito errado aí, Seu Rogério. Você dedetizou a padaria na semana passada e já apareceram ratos com ninho feito e tudo? Além disso, o tal do corretor aí é seguidor da vidente, é muita coincidência.

– Ah, mas ela tem muitos seguidores.

– Seu Rogério, eu não acredito nessa papagaiada. Tem coisa errada aí e eu vou descobrir.

Seu Rogério abriu um sorriso amigável e respondeu:

– Muito obrigado, J.B.! O que eu puder fazer pra te ajudar, é só me falar.

Eis aí meu novo caso. Alguém quer prejudicar meu amigo e eu preciso saber quem.

Continua...