PERNAS...


Certa vez, numa universidade particular de uma cidade do país do faz de conta, especificamente nas dependências do campus onde eram ministrados os cursos destinados ao ensino superior dos animais irracionais e dos seres mitológicos nacionais, houve um encontro cultural que tinha como objetivo ensinar o emprego correto de algumas regras gramaticais e afins. 

O evento foi organizado por gramáticos renomados da região e eles eram daqueles profissionais que, num debate dessa natureza, usavam e abusavam do conhecimento que eles detinham acerca do vernáculo e por isso fizeram questão de convocar alguns seres bem conhecidos para fazer parte do debate. 

A platéia ali presente, por sua vez, era formada por participantes de vários níveis sociais e intelectuais, sendo que a maioria deles era formada por seres dotados de um conhecimento gramatical apenas mediano. 

Naquele debate, estava em discussão a análise de uma expressão popular que tem sido comumente empregada por muitos desses seres, no entanto poucos o fazem corretamente, devido ao uso constante das três versões, em situações distintas, senão vejamos: 

a) Perna para que te quero;
b) Pernas para que te quero; e
c) Pernas para que vos quero. 

O primeiro ser a pedir um aparte e a se colocar à disposição dos professores e da platéia, se comprometendo a fazer um breve comentário a respeito das expressões em análise, foi a bela e longa jibóia. Necessário se faz esclarecer que além dela, estavam ali na platéia outros seres dotados de um conhecimento um pouco acima da média, a exemplo do macaco, do papagaio, da arara e do saci. 

Em princípio, a jibóia não quis se pronunciar mais amiúde a respeito do assunto dando a entender que não estava gostando de estar ali, por um motivo muito óbvio: dentre os seres ali presentes ela era o único ápode, consequentemente sem patas ou pernas. 

Demonstrando até certa irritação, falou que o tópico tratado naquele momento não lhe dizia respeito e que ela não via nenhum motivo justificável para estar ali rastejando, ralando a sua barriga no chão, em meio aos demais seres. 

O macaco foi o segundo animal a pedir a palavra. Saltitando à beça e jurando não saber o porquê de estar ali gastando o seu tempo, não falou nada que se pudesse entender. 

Inicialmente, ele gesticulou um pouco, fazendo um movimento lento com uma das patas dianteiras e com o auxilio da outra pata, fez outro movimento ainda mais lento que o primeiro, sendo que este consistia em segurar por alguns segundos um dos seus pulsos. Como se ele estivesse arregaçando uma manga de camisa, deslizou essa pata até o cotovelo da outra pata, segurando-o, firmemente, como se naquele instante ele estivesse querendo distribuir “bananas” para os organizadores do evento.

O debate já rolava por mais de uma hora e o papagaio já estava ficando maduro de raiva. Ele queria fazer uso da palavra, mas todas as vezes que tentava esboçar alguma reação neste sentido foi impedido de fazê-lo pela sua compatriota, a arara. 

Esta, por sua vez, sempre dizia que estava com a resposta na ponta do bico para qualquer uma das expressões. No tocante à primeira expressão (pernas para que te quero), ela afirmou que era uma expressão muito usada pela maioria dos animais que fazia uso desses membros como meio de locomoção. 

No seu caso, em particular, ela utilizava suas pernas apenas para se segurar firmemente nos galhos das árvores e nas estacas das cercas das propriedades dos donos do milharal... 

Quanto à expressão “pernas para que vos quero”, ela entendia que era apenas mais uma frase meio erudita e que o papagaio, pelo seu jeito muito falante de ser e pelo conhecimento que havia adquirido na convivência com os humanos, seria o ser mais indicado para analisá-la com mais propriedade.

O papagaio não se fez de rogado. Levantou-se todo garboso e, em face do seu nome ter sido citado pela arara, ele se sentiu no direito de assumir uma posição de destaque no púlpito. Sem pestanejar, fez uso de todo o espaço do tablado, andou de um lado para o outro fazendo questão de chamar a atenção da platéia e disparou:

- Gramaticalmente falando, a expressão “pernas para que vos quero” está correta. Todavia, no linguajar comum do nosso dia-a-dia, nenhum de nós tem o hábito de pronunciá-la. Já na expressão “pernas para que te quero”, se considerarmos a expressão anterior gramaticalmente correta, poderemos afirmar que nesta há pelo menos um erro de concordância verbo-nominal. 

A platéia reagiu com uma salva de palmas bem demorada. O papagaio ficou bastante entusiasmado e a partir daquele instante, por incrível que pareça, quase não parou mais de falar. 

O saci que desde o início ouvia tudo sem nada dizer pediu a palavra.

Disse, de forma bem categórica, que na sua condição de perneta, o emprego da expressão “perna para que te quero” é gramaticalmente correto.

Complementou dizendo que isso é tão verdadeiro que, durante sua infância, quando os seus pais queriam que ele não demorasse senão o mínimo indispensável na realização de uma diligência, era comum eles pedirem para que ele fosse e viesse num pé só...

Todos os seres ali presentes caíram numa longa gargalhada, como se tivessem acabado de ouvir uma grande piada. Os organizadores do debate também riram, embora de forma tímida, e em seguida deram por encerrado aquele encontro.

Esquecendo a opinião do saci que, no meu entender, está perfeitamente correta, na sua condição de humano, se você precisasse de suas pernas, neste exato momento, para fugir de uma situação de perigo iminente, qual das duas expressões você escolheria?

- Pernas para que te quero ou pernas para que vos quero?

Particularmente falando, eu sairia em disparada e, se conseguisse me safar desse perigo, depois eu pensaria na questão lexicológica dos termos em si...
Germano Correia da Silva
Enviado por Germano Correia da Silva em 26/03/2008
Reeditado em 12/09/2009
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