O casamento do milho com a fogueira

O dia parecia ser de grande festança naquela fazenda. Homens e mulheres de um lado para o outro numa correria danada assustando até quem se atrevesse, de longe, ficar a espiar. Um arrastar de palhas, um mexido de panelas, uma zoada medonha. A gurizada em frevo para todos os lados antecipando o arrasta pé, vez por outra estourando fogos de artifícios nos pés das pretas fazedoras de tantas guloseimas juninas, as quais assustadas em gritos e prantos se benziam e rogavam aos céus loas e benditos em proteção e benção, enquanto uma criada destinada a cuidar dos danados corria atrás deles para aplica-lhes castigos.

Só se ouvia a ordem clamada para que ninguém ficasse parado, de braços cruzados ou com dedo limpando o salão ou tirando remela dos olhos, porque até ao cair da noite tudo deveria está pronto: mesas e cadeiras postas enfeitadas com toalhas de tecido xadrez e decoradas com jarros de rosas, o som afinado, o salão todo pronto, o altar dos santos limpos e enfeitados com fitas e luminárias; a comida espalhada pelos respectivos lugares e as bebidas gelados para receber os convidados, selar assim a promessa que o coronel fizera ao santo de sua devoção: “se o inverno for bom, na primeira colheita, todos da redondeza serão convidados a comer e beber de graça no terreiro de sua casa”.

Do outro lado, de ouvidos e olhos bem abertos, sem perder de escutar a falação dos mais esclarecidos no assunto, como que de súbito e levado pelo impulso criativo, um milho inventou de aproveitar a ocasião e brincar de casamento. Inspirado no alvoroço de todo aquele dia de grande movimento, olhou para um lado, olhou para o outro e ficou a pensar quem poderia convidar para brincar com ele. Avistou no meio do terreiro um esplendoroso amontoado de madeira e logo tratou de por seu plano em ação. Sem conversa comprida nem mais delongas e cerimônia, escreveu numa palha seca de milho com grãos dourados um convite, um belo convite no qual convidava ela, a tona assanhada fogueira para ser a sua noiva.

Recebendo o convite, ficou calada por alguns instantes, perdidas em pensamentos. Encheu os olhos de leves lágrimas de emoção, imaginou toda a cena: o vestido de noiva, os padrinhos, a marcha nupcial, o choro, as alianças, enfim, não pensou muito, o fogo era tanto para sair do caritó, a vontade de ter alguém para dividir suas alegrias e tristezas, o convite. Imagina só se ia dar certa essa brincadeira de casamento entre milho e fogueira...

O milho vestido de verde, rosto amarelo e cabelos ruivos, um noivo perfeito para noiva nenhuma botar defeito, ele todo alegria esperando com agonia a hora do casamento.

A noiva fogueira colorida em labaredas, chamas bem acesas naquela noite que parecia ser só dela, em cores vivas: amarela, vermelha, laranja, quanto murmúrio, um acontecimento único nunca visto em qualquer parte do mundo.

O terreiro todo enfeitado de bandeiras em várias cores, palhas de coqueiro por todos os lados, barracas, churrasqueira, fogos de artifício, mais adiante o trio regional, o sanfoneiro afinando a sanfona, o zabumbeiro e o homem do triângulo faltando apenas chegar o cantador...

Logo, logo foi chegando os convidados para os laços de amor.

Os primos Bolosos de fubá chegaram acompanhados de suas esposas Mariandiocas, vestidas em seus vestidos marrons, senhoras sérias, austeras, trancadas em si a controlarem os filhos Minogaus. Chegaram os pais dos noivos, senhor e senhora Pés de milho. O pai, nem aí, queria mesmo que o filho fosse feliz; a mãe, como toda boa mãe, achando que o filho não estava fazendo um bom negócio, derretia-se em lágrimas e xingamentos.

Chegou o irmão Angugu, um angu mesmo, convidado para ser padrinho do noivo ao lado da Palomonha toda vestida em vestido de laços, grandes e pequenos laços. Na cabeça um grande chapéu de palha presente de um admirador secreto, o senhor Balalaio que não podia acompanhar a cerimônia de perto, mas que de longe observava tudo até a beleza de sua amada secreta, sobrinha do assanhado noivo.

Chegou dona Socanjica, a tia, toda derretida em lágrimas, presa a uma bandeja de alumínio, veio até o avô Samingau acompanhado de todo milharal, todos querendo ver esse tal de casamento de um milho inocente com uma esperta fogueira doidinha para devorar mais uma presa. Só os parentes da assanhada fogueira não vieram porque nenhum aceitava tamanho despautério: casamento de fogueira com milho?

Chegou o Balalão juiz em formato triangular, o ser mais sabido de todo esse arraial, estava impecável com seu terno colorido, preso lá no alto. Tudo estava pronto, só faltava, agora, os dois se casarem.

Queria se casar com a benção de santo Antônio numa linda noite de São João, esquecendo o outro santo, que todo enciumado, mandou chuva, tanta chuva, uma enxurrada com tantos raios e trovões que logo apagou o fogo da senhora fogueira condenada a viver só.

Foi água até umas horas, a festa teve que ser adiada. A fogueira aos poucos foi sendo devorada pela água, as chamas que a tornava bela e vigorosa foram ficando fraquinhas até se apagarem de vez.

E o milho, pobrezinho? Ficou tão desanimado que seu choro se misturou com a água que caía da chuva. Só que quando percebeu que tudo era apenas brincadeira, tratou logo de se alegrar.

Mas no outro dia, nos primeiros raios do sol, foi colhido pelas mãos de algum dos trabalhadores do roçado. Era um milho alho, nos braços da fogueira, teria estourado de paixão como as pipocas pulando no óleo quente para depois serem devoradas.

(Marcus Vinicius – professor, escritor e contador de história)