a cigarra que não fazia farra

Entre as folhas daquela floresta aconteceu uma coisa estranha. Era o nascimento da cigarrinha que não fazia farra. Ela não conseguia fazer barulho. Quando era convidada para as festas, sempre ficava num canto. Não sabia tirar um ruído sequer. Seus pais viviam desanimados, não agüentavam mais as piadinhas.

- Imaginem só uma cigarra que não faz farra.

- Isso é um caso médico.

- Isso deve ser castigo. O pai dela é o maior caloteiro.

- E a mãe então. Ouvi falar que lava roupa pra fora.

- Sério?

- Isso é inaceitável para nós... cigarras da mais fina estirpe.

- Para mim, essa história de lavar pra fora é conversa fiada.

- Ah tá, entendi. Mas você vê maldade em tudo! Não vamos levantar calúnias, apenas a verdade. Eu sempre prezei a justiça. Levantar coisas sem fundamento é coisa de gente fofoqueira. E como detesto esse tipo de gente.

- Nem fale, só sabem se meter na vida dos outros. Quero distância desse povo.

- E eu muito mais. Reconheço que meu telhado é de vidro.

- Eu já troquei pra alumínio. Não enferruja e é um pouco mais resistente.

Fatos raros sempre foram motivos de discórdia. Para tristeza de nossa cigarrinha, seus pais já estavam se deixando levar. Críticas surgiam, Cig passou a sentir o peso da discriminação. Passou a freqüentar os melhores psicólogos, psicanalistas. Entrou nas melhores escolas de música. Porém os únicos avanços vinham da parte do preconceito. De que servia uma cigarra que não fazia farra? Tinha menos valia que um copo vazado no fundo.

Quando se anunciava a proximidade das festas locais, Cig se enfurnava em seu quarto para ver se a esqueciam. Toda festa tinha o concurso para ver a cigarra mais melodiosa. E o máximo que ela arrancava de si era um muxoxo silêncio. Um silêncio que, por incrível que pareça, arrancava um barulho estrondoso da platéia. Eram gargalhadas das mais variadas possíveis. Quando Cig subia ao palco, já se instaurava um outro concurso: o da risada mais potente. Esse era o motivo de nossa cigarrinha preferir que a esquecessem. Mas as gargalhadas eram o máximo, que o mais esperado desses concursos passou a ser a performance de Cig no palco. Nem o rebolado das cigarrinhas do samba tinha tanta aceitação e pedido.

Esses momentos de reclusão e solidão pelos quais passava nossa cigarrinha, a faziam pensar nas atitudes alheias. Ela chegava a questionar o ser dessas cigarrinhas. Questionou tanto que chegou à seguinte conclusão: - Se o prazer delas é zombar dos diferentes, vou ser mais diferente ainda, não tenho melodia com as músicas, mas tenho com as palavras.

Cig se descobriu poetisa. Que choque para seus pais. Como se não bastasse o fato de não fazer farra, ainda ia se aventurar a essas coisas bobinhas que rimam palavras. Seus pais tinham a certeza que aí sim a humilhação seria maior. Jamais tinham ouvido falar numa cigarrinha escritora. Não tinha jeito, não. Cig era realmente diferente.

Como o escritor precisa de assunto para seus escritos, Cig passou a reparar na vida das outras cigarras. O que a surpreendeu demais. Quanta diferença havia entre elas. Claro que as cigarrinhas não perceberiam isso nunca. O único foco de interesse para elas era a farra. Não imaginavam quanta coisa se guardava em seus interiores. Agora sim as consultas com os melhores psicanalistas e psicólogos valeram para nossa Cig. Não vamos esquecer dos músicos também. Cada um contribuiu de alguma forma. O músico, com o ritmo. Os outros, com a temática. Nessa busca por uma explicação de porque que ela não fazia farra, Cig passou a compreender melhor o ser dos outros e de si própria.

Cig começou a descobrir as coisas mais engraçadas sobre a vida das outras cigarrinhas. Descobriu que uma não gostava da sua cor. Que outras não gostava dos seus olhos. Que outra era pequena demais para sua idade. Que a outra não conseguia conquistar os “cigarrões”. É, a vida naquela floresta nunca mais foi a mesma.

Moral da história: não mexa com quem está calado.

jeferson bandeira
Enviado por jeferson bandeira em 08/07/2008
Código do texto: T1070176
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