UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRAÇÃO (cordel infantil)

Na sala a mesa estava posta

Do jeito que a criançada gosta.

Tinha suco, sanduíche e pipoca,

Pinhão, pé-de-moleque e paçoca.

Era noite escura de sexta-feira,

Dia em que, queira ou não queira,

O tio João tinha um compromisso,

Depois de pescar com a vara de caniço,

Contar histórias de medo e de terror

Para os filhos do seu irmão Alaor.

Ele chegava rindo muito contente

E dizia: quero ver quem é inteligente,

Forte e muito corajoso

Que não trema nem fique choroso

Com a história que contarei

Da moça que eu encontrei

Num dia festivo de carnaval.

Dona Lenita, amarrando o avental,

Serviu sanduíche e o gelado suco,

E seu Alaor, deixando o jogo de truco,

Veio sentar-se ao lado da filha Eleonora

Para ouvir a história assustadora,

Que seu irmão João inventara

Da moça que se chamava Clara.

E o tio João começou a contar:

Numa noite de carnaval saí pra dançar

E, ao passar perto do denso milharal

Da fazenda do senhor Durval,

Vi aquela formosa e delicada moça

Preparando-se para pular a grande poça

De água para não molhar os lindos pés.

Então eu desci do meu cavalo pangaré

E, gentilmente, peguei a moça nos braços

Livrando-a do grande embaraço.

Sentindo meu coração bater forte

Pensei: eu sou um homem de sorte.

Foi aí que eu, curioso, perguntei

O nome daquela que parecia filha de rei.

Meu nome é Clara! Disse com voz suave

Movimentando os braços como divina ave.

De onde vem e pra onde vai a donzela?

Perguntei com muita cautela.

Eu venho da minha nova casa...

Disse fazendo longa pausa.

Ah, meu Deus, que voz tinha a menina!

Meu coração era só adrenalina.

Então eu fiz o convite atrevido:

Quer dançar este carnaval comigo?

Ela disse sim e, montados no meu pangaré,

Fomos ao baile carnavalesco do Clube da Maré.

E dançamos juntinhos marchas e sambas

E eu tentando na dança imitar os bambas

Só para conquistar aquela moça divinal.

Ela me olhava com um olhar anormal

E a mim pareceu

Olhar de quem já morreu.

Mas eu estava, pela moça, enfeitiçado

E mesmo que eu fosse açoitado

Ainda assim com ela queria ficar,

E nos seus braços a noite toda dançar.

Lá pelas três da madrugada

O vento, em grande rajada,

Prenunciou o temporal

Em que se acabaria a noite de carnaval.

Então Clara agitada me pedia:

Queria voltar para casa da tia

Antes que a chuva forte caísse.

E eu, no que depois considerei burrice,

Insisti para ficarmos mais um pouco:

A chuva passa logo, pois o tempo é louco

E sairemos com o sol ao amanhecer o dia.

Assustado, vi que nos olhos de Clara ardia

Uma chama de maldade infernal.

Então pensei: para onde foi o olhar angelical?

Aparentado do mundo toda calma

Disse: senhorita do fundo de minha alma

Juro que não quis contrariá-la ou ofendê-la.

Vamos partir, pois outro dia quero vê-la.

O tempo de repente se transformou

Raios, trovões e chuva na terra ele derramou.

Então eu disse a bela senhorita:

Não fique tão ansiosa, tão aflita.

Montemos no meu pangaré Alcazar

Ele seguirá o caminho que eu indicar.

Disse ela: Não é preciso um cavalo:

Ouça bem o que eu falo,

Sigamos pelo milharal

Minha casa não é tão longe afinal.

Eu tremi. Sabia que depois da plantação

De milho do senhor Durval da Conceição

Não havia casas, só o velho cemitério

Onde almas penadas vagavam pelo necrotério.

Clara entrou milharal adentro. Eu fiquei parado.

Senti como se alguém estivesse ao meu lado

Empurrando-me para dentro da plantação.

Os pés de milho pareciam grande assombração,

Um polvo com longos tentáculos de aço

Tentando me dar fantasmagórico abraço.

O temporal crescia. Eu como doido corria

E ao mesmo tempo em que rezava eu pedia:

Clara, espere por mim! Está escuro não vejo nada.

Ela não respondia. Da minha vista sumira a danada.

Corvos levantaram voo na noite tormentosa,

A curta distância um canto em voz lamentosa.

Finalmente saí da plantação de milho

Todo sujo parecendo um velho andarilho.

E lá estava o velho cemitério de muro branco,

De medo quase fiz xixi na calça, sou franco,

Ao ver Clara entrando sem abrir o portão.

Então ela era uma assombração?

Era ali a nova casa a que ela se referiu?

Saí dali correndo. Seu Amarildo quando me viu

Assustado perguntou o que havia me acontecido

Para eu estar todo enlameado, enegrecido.

De vergonha contei uma história de assalto

Onde lutei bravamente rolando pelo asfalto.

Observador como era o velho Amarildo disse rindo,

Mais um que foi dançar com a defunta, e agora fingindo

Vem com essa conversa de assalto. Pensa que sou bobo?

Ah, ah, ah, caiu direitinho na boca do lobo.

Deu sorte - disse ele -, de não ter visto a tia.

Se vem a megera não estaria vendo a luz do dia.

E foi assim meus sobrinhos que seu tio João

Dançou, num carnaval, com uma bela assombração.

Depois que a história terminou

Seu Alaor não aguentou:

- Irmão! Ah, ah, ah, eu queria ver a sua cara

Depois de dançar com a defunta Clara.

20/03/11

(Maria Hilda de J. Alão)

(histórias que contava para o meu neto)

(https.//hildaalao.blogspot.com)