A LARVA NA MAÇÃ

A LARVA NA MAÇÃ

Maritza Pérez (POSTADO A PEDIDO)

Para Morgana, a “Estrela da Manhã”.

Esta história transcorre em um tempo diferente, não sei se no passado ou no futuro. Telúria é uma fada e mora em um castelo de pedra e musgo, no meio de antigos bosques a que não chegam as memórias. Sete mil gnomos são responsáveis pelo lustro das folhas das árvores, pelo perfume das flores, das madeiras e das raízes e pelas tonalidades cambiantes da morada encantada de Telúria.

Não saberia dizer o quanto dura aqui um dia ou uma noite — milhares de anos, talvez — alguns segundos, quem sabe? — mas são várias as luas que iluminam o mundo de Telúria e seus gnomos.

Quando a chuva cai e entra na terra, desprende-se dela um denso vapor, com o cheiro dos minérios e as cores dos cristais enterrados... com o perfume das raízes esguias ou bulbosas e das águas tépidas que serpenteiam nas profundezas... Os gnomos armazenam o vapor em uma quantidade enorme de botijas de barro e com ele se embriagam, dançam e cantam, em torno de Telúria, pelas clareiras dos bosques.

Os gnomos-músicos se revezam e, por isso, sempre existe música, mas durante os festivais a embriaguez os transforma de tal maneira que a melodia criada por eles viaja pelo universo, condensando-se em cometas cintilantes e asteróides de esmeraldas, que permanecem no céu por sobre o castelo e os bosques, como lanternas penduradas na noite.

Telúria e os gnomos festejam muitas ocasiões — o Festival dos Grãos Dourados, o Festival das Chuvas, o da Queda das Folhas, o da Colheita dos Frutos, o Festival da Lua Azul e o da Lua Branca... e muitos outros, sempre em danças e cantos e com a música dos gnomos possuídos pelo cheiro das entranhas da terra.

Nos intervalos dos festejos, todos trabalham pela harmonia da Natureza e do Castelo, com suas vastas escadarias de pedra e os muitos quartos e salas, sempre limpos e claros; pela ordem das despensas, em cujas tulhas guardam a farinha dos grãos dourados e as botijas cheias do vapor desprendido da terra após as chuvas. Há os gnomos que estendem os grãos para que sequem aos ventos e os que trabalham na moagem. Há os tecelões, que labutam na tessitura de vestes para serem usadas depois da Queda das Folhas e muitos mais, que se empenham em todo o tipo de outras tarefas.

Após o trabalho, quando surgem as luas, eles partem para os lagos ou para a praia do Mar das Pérolas. Brincam nas águas, recolhem conchas, mergulham em cavernas submersas e recebem das ostras as pérolas para os colares de Telúria. Alguns preferem os bosques, em que buscam os liquens azuis para os xales da rainha.

Depois da Queda das Folhas, há um tempo de sono e de silêncio. O castelo, os bosques, tudo que respira se contrai; a Natureza como que se enrola sobre si mesma e Telúria estende a cabeleira negra por sobre a Terra e permanece assim — os cabelos cobrindo a terra e o corpo imerso nos mares. Os gnomos, protegidos nas cavernas, escavam a rocha e lapidam as pedras — topázios, rubis e safiras — enquanto outros constroem o barco de esmeraldas que conduzirá Telúria despertada para o Festival das Chuvas. E quando, fremente, a terra úmida entra em germinação, as sementes arrebentando, as águas borbulhantes e a beleza toda das verdes folhagens — então os gnomos coroam Telúria com o diadema de gemas preciosas que refletem a luz de todas as luas dessa terra distante.

*** *** ***

Foi durante o Festival da Colheita dos Frutos, de permeio às músicas e cantos, que alguns gnomos ouviram o lamento. Telúria dançava pelo pomar das maçãs. Na relva, os cestos transbordavam; sobre as macieiras, havia tantos gnomos como havia de maçãs.

— Ajudem-me! Libertem-me! Livrem-me da maldição!...

O alarido cessou de repente e, no silêncio recém-instalado, apenas o olhar antigo de Telúria se movia em busca da origem da voz. Os gnomos pareciam esculturas petrificadas de espanto. A Natureza aquietava-se, em um resguardo de espera.

— Depressa, ajudem! — falou Telúria. — Existe alguém dentro de uma dessas maçãs!...

De imediato, todos começaram a busca. Esvaziando cestos, agachados na terra, em piruetas silenciosas pelos galhos, percorrendo com os ouvidos cada um dos frutos do pomar. E a vozinha continuava:

— Socorram-me! Ajudem-me! Libertem-me!

O lamento perfurava a quietude. Uma voz de paragens remotas, vinda de outros tempos, talvez do outro lado do universo. De uma certa maneira, lembrava a voz de Telúria, quando ela entoava o “Cântico para a Lua Azul”.

— Achei! — gritou um gnomo, encarapitado em uma das macieiras. E precipitando-se de um salto, arrancou uma maçã do galho mais alto da árvore.

— Não! — gritou Telúria — mas era tarde demais... O gnomo já lhe alcançava a maçã, como um presente dos mais valiosos, orgulho no olhar, no rosto a malícia de um sorriso enorme.

A fada aconchegou a fruta nas mãos, os dedos em concha a envolverem o macio cetim da maçã. Ainda um suspiro se fez ouvir, antes que Telúria corresse em direção ao castelo, seguida pelos gnomos.

Subiram as intermináveis escadarias atrás dela, esqueciam até mesmo de respirar, tropeçavam, caíam e se apertavam pelos longos corredores que levavam ao último aposento da última torre — o lugar em que Telúria vigiava o caminho das estrelas, a sala com a janela mais alta do castelo — a janela de onde Telúria discernia as estações e compactuava com as marés. Apenas três dos gnomos entraram, antes que ela corresse o ferrolho: os únicos que realmente tinham o direito de entrar naquele aposento. Eram os Três Guardiães da Torre Maior.

Telúria colocou a fruta sobre uma pedra dentro de uma terrina de barro; encaminhando-se para a janela, ergueu as mãos para a captação do conhecimento profundo. Virando-se para os gnomos, falou:

— Órus! Aron! Kadós! Sabemos que o fruto não deveria ter sido colhido antes que o estranho nos contasse sua história: mas está feito. Vejamos agora o que temos.

Aproximando-se da mesa e roçando de leve os dedos pela maciez da maçã, exclamou:

— Habitante da madureza do fruto que adoçaria meus lábios; habitante da semente que germinaria em uma nova estação; habitante do perfume do incenso da terra, dize-me: por que lamentas tua sorte?

— Como não lamentaria, senhora? Sou uma larva, presa dentro de uma maçã! Pior ainda, a fruta foi arrancada da árvore! Quando apodrecer, estarei inerme sobre esta terrina!

— No galho, a fruta acabaria por secar do mesmo modo — falou Kadós. — E por que achas que Telúria correu até esta sala? Aqui terás mais tempo para tua história e nós para acharmos a solução de teu problema, pois neste lugar o tempo passa com extrema lentidão.

— Mas por que ela gritou “Não!” ao gnomo que separou o fruto da árvore?

— Nobre criatura — exclamou Órus. — Quem de nós, naquele momento, saberia da atitude certa? Afinal, melhor teria sido escutarmos os fatos e depois decidirmos se valeria a pena libertá-la ou não. Pois aqui, quando escutamos as vozes dos frutos ou das flores, ouvimos orações de louvor à Natureza e não os lamentos de um prisioneiro. A precipitação de Sator, o gnomo que te colheu, alterou a ordem das coisas, mas não perturbará as decisões de Telúria.

— Pois bem, como te chamas? — indagou Aron. — Qual é a tua história?

— Meu nome é Nabir — ou esse era o nome por que atendia. Não me perguntem quando, porque não sei se foi há um milênio ou há poucas luas. O lugar era um planeta azul, mas como não sei onde estou, não saberia dizer da distância. O nome de meu planeta era Teruz. Vocês o conhecem? Sabem onde fica?

Telúria, sorrindo com olhos de melancolia:

— Fala, criatura. Fala o que tens para falar e depois saberás aquilo a que tiveres o direito de saber.

A larva retomou sua narrativa:

— Em Teruz, éramos sem forma, radiantes de energia pura, livres e criadores. Nossas paisagens mudavam conforme nossos caprichos e humores. Nossa imaginação rodopiava incansável, em uma verdadeira ciranda de prazeres. Fazíamos com que a terra explodisse em vulcões e estes vomitavam estrelas, que de imediato se fixavam no infinito. Conduzíamos os ventos para baixo dos mares, elevando a prateada espuma das ondas para revestir os prados e as colinas, por onde dançaríamos em consistência de âmbar. Habitávamos as dunas de conchas nacaradas, sobre as quais as luas explodiam em mil cores. Os seres todos de Teruz assumiam as mais diversas aparências — voávamos com asas de plumagens cintilantes, nadávamos com escamas prateadas, submersos em mares e lagos. Vivíamos como corais ou pérolas buriladas no ventre das ostras. Percorríamos os caminhos dos ventos, transmutados no próprio vento, desvendando o segredo de todas as coisas quietas e silenciosas. Éramos chuva, barro e luz e o fogo que se consumia para renascer das cinzas. Éramos a própria vida em nosso contínuo exercício da criação.

Teruz deslizava pelo universo, carregando em seu bojo a incomparável fertilidade de nossas mentes. Nessa trajetória, havia um tempo especial — a época das tormentas, quando pelos céus cruzavam-se os clarões de milhares de raios. Nuvens densas e baixas enrolavam o planeta, libertando uma carga espantosa de energia. Nenhum malefício nos acontecia, mas todos os seres se tornavam magnéticos.

Enroscados nas areias úmidas e salgadas, tornávamo-nos luminosos e fosforescentes — era a ocasião em que nos reproduzíamos. Cada um de nós imaginava uma outra mente, em tudo semelhante à própria e, quando Teruz deixava para trás o Céu das Tormentas, éramos em dobro.

Mas foi justamente após um período de reprodução — o último que se viu — que surgiu entre nós o “Grande Mago”. Ninguém soube como nem porquê, mas logo compreendemos para que ele se achava em Teruz. Convenceu-nos um a um à estagnação em formas definitivas e imutáveis e cada forma passou a ter um nome — peixe, rã, gafanhoto, garça, gato, homem, minhoca... Desviou a rota de nosso planeta, separou-nos em machos e fêmeas... e assim decretou a nossa morte.

Logo que apareceu, nem ele sabia de suas diferenças, mas todos nós sentíamos as energias estranhas que emanavam dele. Às vezes, penso que, se nossas mentes tivessem inibido essas percepções, se não houvéssemos projetado para ele suas próprias estranhezas, ele acabaria por ser apenas mais um de nós. Mas... fomos engolidos por nossa própria ingenuidade. O Grande Mago, sarcástico, brincalhão, inconsequente, tornou-se progressivamente mais diferente, até ser o único imortal. Na medida em que enfraquecíamos, que perdíamos as forças e a liberdade, ele crescia em poder... tornou-se o Senhor da Vida e da Morte.

— Mas enquanto isso, Nabir, onde estavas? — perguntou Kadós.

— Bem, eu fui a última das criaturas livres. Quando todas as outras já estavam estagnadas em formas definitivas, eu, bloqueada em um pequeno espaço pela força de sua mente cada vez mais poderosa, tinha por tarefa a transformação contínua, segundo a sua vontade — era uma espécie de bobo da corte.

Gritando, a sorrir ameaçadoramente, ele ordenava: “Agora uma pedra, Nabir! Não, árvore! Borboleta! Mosca! Água! Vento! Esquilo, concha, areia, girafa, larva!...” – até que se cansou. Com os olhos cheios de falsa bondade, do alto de sua infinitude, fez uma última brincadeira: “Tua mente será preservada, Nabir. Guardar-te-ei em uma dobra do tempo, tal qual estás. Talvez, um dia, voltes a me divertir, quando eu não conseguir mais lembrar de como tudo começou...”

Minha fraqueza é a última lembrança, até o momento em que consegui falar no pomar das maçãs. Esta é minha história. E agora, sou apenas uma larva encerrada em uma maçã e nada mais serei quando a maçã apodrecer...

— Esta é toda a tua história, Nabir? – indagou Telúria.

— Sim, até onde me lembre, essa é toda a minha história — concluiu a larva. — Haverá salvação para mim? Afinal, onde me encontro?

Órus, Aron e Kadós, de olhos grandes e sorrisos gulosos, mostrando os dentinhos pontiagudos, olhavam da maçã para Telúria, de Telúria para a maçã...

— Bem — respondeu Telúria — vamos por partes... Tua salvação é possível. Poderás voltar a ser uma mente livre, sem forma, pura energia, se treze pérolas negras forem trazidas para mim, antes que tua maçã apodreça...

Virando-se para os gnomos, Telúria ordenou:

— Órus! Aron! Kadós! Digam a todos que corram para o mar e mergulhem. Quero treze pérolas negras antes da Noite da Lua Azul!...

— Mas onde estou? Que terra é esta? Onde fica Teruz? — quis saber Nabir.

— Cada coisa a seu tempo — respondeu Telúria.

Estava a escurecer quando os gnomos, depois de uma corrida cheia de alvoroço, chegaram à praia do Mar das Pérolas. O céu era de um esmalte azul-escuro e as ondas na areia murmuravam lânguidas e mornas. Logo, logo, o mar estava coalhado de cabecinhas risonhas, que iam e vinham, conferindo à luz das luas a cor das pérolas encontradas...

O tempo foi passando... e muito pouco faltava para a Noite da Lua Azul. Apenas doze pérolas negras aguardavam na praia e Nabir agoniava-se em um resto da maçã já quase toda apodrecida. Telúria velava calmamente, junto à janela da Torre Maior.

A Noite da Lua Azul chegou. Os gnomos, exaustos, continuavam a procura frenética, enquanto Nabir agonizava na podridão que fora a maçã. Telúria velava calmamente.

E foi de dentro de um mar revolto, de ondas negras, que emergiu Sator. Sim, o mesmo Sator, com a décima-terceira pérola.

Quando Órus, Aron e Kadós bateram a aldrava da Sala da Torre Maior, transportando as pérolas negras, a Lua Azul já desaparecera no horizonte... a luz de seus raios, todavia, ainda fulgurava em plenitude na janela da Torre Maior.

Telúria colocou as treze pérolas sobre o peitoril da janela e os últimos raios da Lua Azul incidiram sobre elas.

E de treze pérolas que eram, treze estrelas surgiram em luz e fogo para viajarem pelo infinito. O turbilhão feérico apagou todas as sombras e a realidade se foi desvanecendo por um funil, como um redemoinho de sonhos e de lendas.

Uma lufada de música encheu o aposento e foi da boca de uma Telúria já transparente que saíram mágicas palavras que ninguém entendeu. Tudo estava esmaecido, quase invisível, os gnomos, a pedra... Apenas a terrina com a maçã podre e Nabir agonizante mantinham o mesmo aspecto anterior.

Então Telúria, com voz já remota, falou para Nabir.

— És livre outra vez, criatura sem forma, energia pura. Estás em Teruz, de onde nunca saíste. Teu pensamento, a tua mente, foi escondida em uma dobra do tempo e Sator te encontrou em uma época anterior às tuas memórias. És livre, agora, para recomeçar. Em breve, Teruz passará de novo pelo Céu das Tormentas e te enroscarás nas areias úmidas e salgadas da praia, para que surja uma outra energia semelhante a ti e o ciclo todo se cumpra novamente.

Nabir, fortalecido, cintilava, pairando no espaço. Procurando em torno, sem nada ver, perguntou:

— E vocês, Telúria? E os gnomos? Onde estarão?

— Estaremos aqui, como sempre estivemos, longe das memórias... a velar pela continuidade dos ciclos...

— Não se vá ainda, senhora! Preciso saber mais, muito mais!...

— Nada mais há para saber. Daqui a instantes, não faremos mais parte de tua memória. Teruz continuará na rotação da vida, gastando todas as possibilidades, inclusive de homens e de mulheres... e do nascimento, crimes e morte de tantos e tantos magos...

*** *** ***

A última imagem a perdurar na lembrança de Nabir, antes que tudo terminasse, foi a do rosto matreiro de Sator, espremendo-se em uma risadinha abafada.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 05/04/2011
Código do texto: T2890216
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