OS TRÊS MARTELOS DE SHIVA (em prosa)

OS TRÊS MARTELOS DE SHIVA

Conto popular hindu recontado por William Lagos

(17 jun 2011)

Em um dos reinos da imensa Índia, vivia uma menina chamada Maylu. O destino não lhe fora nem um pouco favorável: nascera vesga, com os dois olhos apontando para lados diferentes, orelhas de abano que lembravam as de um chacal, nariz chato e largo e até mesmo com a boca torta, um dos lados caídos para baixo. Seus cabelos eram lisos e da cor do pelo dos ratos, nem pretos, nem castanhos, mais para um cinza amarelado e sujo. Era tão feia, que seus pais a abandonaram à beira do caminho, achando mesmo que morreria em breve. Mas logo uma mendiga que passava viu o nenê e sentiu pena dela, tomou-a nos braços e conseguiu leite de arroz e de cabra para alimentá-la. Como tudo é equilibrado neste mundo, cresceu forte e vigorosa, mas quando tinha cinco anos, morreu Sutra, a mendiga que a havia criado.

Existia na Índia o sistema das castas, que impedia as pessoas de progredirem na sociedade. Bem no alto estavam os brâmanes, que se consideravam de sangue puro e descendentes dos conquistadores arianos. Desta casta saíam os governantes e os sacerdotes dos grandes templos. Depois vinham os xátrias, que eram militares, soldados, policiais e marinheiros e dentre eles saíam os generais, os chefes de polícia e os magistrados. Abaixo deles, vinham os vayzias, os comerciantes e industriais. E em último lugar, havia os párias, considerados por todos como os mais inferiores, que eram os operários e os artesãos.

Dentro de cada casta havia divisões, mas todos tinham de permanecer naquela em que haviam nascido. Entre os brâmanes, só podiam governar os filhos dos rajás e estes não podiam tornar-se sacerdotes, do mesmo modo que os sacerdotes não podiam aspirar ao trono. Mais do que por lei, tudo era ditado pela religião hindu e, por isso, totalmente respeitado pela imensa maioria. Mesmo no exército, um soldado comum não podia aspirar ao oficialato e só podia tornar-se general quem era filho de outro general. Quem era filho de um mercador de tapetes, só poderia vender tapetes; e cada filho de um comerciante de arroz deveria vender arroz a vida inteira. Entre os párias, o filho de um sapateiro deveria ser sapateiro e o filho de um tecelão teria de aprender a tecer panos, porque era o nascimento que assim determinava.

E dentre os párias, havia os haridjãs, os chamados “intocáveis”, que executavam somente as tarefas mais imundas e difíceis. Quase todos os mendigos eram haridjãs, a exceção dos doentes ou mutilados. Os mendigos deviam trazer uma escudela, uma vasilha de barro ou de madeira, em que seriam jogadas as moedas ou restos de comida, porque não podiam tocar nem ser tocados por ninguém. Se a sombra de um haridjã tocasse na barra das roupas de um brâmane de alta casta, este deveria passar uma semana em rituais de purificação. Contudo, havia monges que se devotavam ao serviço dos deuses e ao ascetismo, para se libertarem de todas as tentações do mundo material e alcançarem mais facilmente o Nirvana, que era uma espécie de paraíso; estes também pediam esmolas e carregavam escudelas, embora as suas fossem geralmente do metal consagrado ao deus que serviam. Os hindus acreditam na reencarnação: após a morte, o espírito volta para animar o corpo de um recém-nascido e isso continua até que o espírito tenha experimentado todos os sentimentos e situações dos seres humanos e se purificado através deles, quando então, livre de todos os desejos, retorna para Brahma, o pai de todos os deuses.

Maylu nunca soube quem eram os seus pais verdadeiros, mas a mendiga que a criara era uma haridjã e assim ela também se tornou haridjã, vivendo na camada mais inferior da sociedade; aprendeu a falar como haridjã, vestia-se como haridjã e se tornou mendiga como sua mãe de criação. Quando esta morreu, pessoas caridosas providenciaram o funeral e a alimentaram durante sete dias, colocando a comida na escudela de barro que fora da falecida e mantendo-a à distância, sem tocar nela, nem em suas roupas, porque a menina era considerada uma “intocável”. E depois disso, disseram que fosse embora da aldeia em que a mãe havia morrido. O bramanismo manda dar esmolas, mas ela era tão feia que parecia atrair a má sorte e, depois de uma semana, todos julgaram já ter cumprido seu dever. Ela que fosse procurar os outros haridjãs.

Maylu saiu pela estrada, mendigando, comia um dia sim, dois não, mas ia vivendo, aprendeu a colher frutas e raízes, comia insetos, gafanhotos, grilos e outros bichinhos, o que só podiam fazer os haridjãs, porque os hindus de melhor casta eram proibidos de se alimentar deles, mesmo na maior fome, sob pena de se tornarem imundos. Mas como os haridjãs já eram mesmo considerados “imundos”, por mais limpos que fossem, eles podiam comer tudo o que aparecesse. Maylu comia os restos das colheitas, alimentava-se de sobras de comida, era escorraçada em toda a parte... Depois passou a morar no mato e aprendeu a caçar e a pescar e assim ia vivendo forte e saudável.

Um dia, quando tinha já dez anos e se arrastava pela estrada, foi abrigar-se em uma caverna à beira do caminho. Acendeu uma fogueira, batendo com um ferrinho em uma pedra de pederneira, como fora ensinada; e a luz indecisa mostrou uma pessoa sentada no fundo da cova. Maylu sobressaltou-se, mas como a pessoa não a atacasse, cumprimentou-a, juntando as mãos e baixando a cabeça em sinal de respeito. Mas a mulher, conforme indicavam suas roupas, não se moveu. Intrigada, Maylu chegou mais perto e viu que era um esqueleto vestido. Não teve medo, estava acostumada com ossos caídos pelos campos. Como as roupas e as sandálias estivessem em bom estado, muito melhor que seus farrapos, ela despiu cuidadosamente o esqueleto, foi lavar as roupas em um regato e se vestiu com elas. Depois armou outra fogueira fora da caverna, levou os ossos para lá e os queimou juntamente com seus trapos.

Aquelas roupas eram de uma camponesa de baixa casta, uma pária, mas não uma haridjã. Ninguém a conhecia naquela parte do país e, vestida com elas, porque tinham sido de uma mulher pequena, ninguém pensou que fosse uma intocável, mas uma jovem do campo pedindo emprego na cidade. Na primeira aldeia que encontrou, embora tivesse o rosto muito feio, conseguiu emprego para esfregar o chão, trazer lenha para a cozinha e tirar água do poço. Ganhava comida e tinha um cantinho no estábulo para dormir longe do frio do inverno; e ali foi ficando por quase um ano, embora o dono da estalagem lhe dissesse que não mostrasse o rosto para os hóspedes, senão ia lhe espantar a freguesia. Faziam troça dela, mas a tratavam bem.

Porém um dia, já no início de outro outono, um mercador chegou no meio da noite e viu Maylu agachada, lavando o chão da sala de refeições. O mercador puxou conversa com ela e, como era muito viajado, percebeu pelo sotaque e pelas palavras que usava que era uma haridjã. Foi imediatamente reclamar do estalajadeiro. Como ele podia ter uma intocável em seu estabelecimento? Pois não via que ela contaminava todo o ambiente? Teria de livrar-se dela e chamar os sacerdotes logo de manhã para purificar todos os lugares que ela havia tocado.

O estalajadeiro ficou pasmo e disse não saber de nada, mas chamou Maylu e a interrogou na frente do comerciante. Ela confessou ser haridjã, mas disse não saber que poderia causar qualquer mal a um amo que a havia tratado tão bem, que dormia no seu cantinho do estábulo, não tocava nas roupas dos amos, comia sempre em sua própria escudela... Mas o mercador insistiu que ela tocava nos pés das mesas do refeitório quando lavava o chão e que tudo estava imundo. O seu patrão encheu-se de raiva e, sem querer tocar nela, expulsou-a para a rua às vassouradas. Maylu caiu no meio da estrada e quebrou um braço, arranhou todo o rosto e partiu duas costelas. Ninguém se importou com seu choro. Agarrando o braço quebrado, respirando mal por causa das costelas partidas, o rosto sangrando e lhe empapando as roupas agora já velhas e estragadas, ela saiu da aldeia, enquanto alguns meninos lhe jogavam pedras e pedaços de esterco.

Numa curva do caminho, encontrou outra mendiga haridjã, que a reconheceu de quando estava com Sutra, sua mãe de criação. A mendiga entalou seu braço, amarrou firme o seu peito para soldar as costelas, secou o sangue de seu rosto e lhe fez uma atadura no rosto, porque o talho era muito fundo. Depois lhe disse que fosse embora depressa dali, porque o dia já estava clareando e quando os moradores do lugar soubessem do acontecido, iriam se reunir para matá-la a pedradas. Maylu não podia correr por causa das costelas, mas caminhou o mais depressa que pode, meio cega de dor e de tristeza e nem percebeu quando uma carruagem se aproximava. Pela janela viu uma mulher de rosto muito claro e uma mão branca cheia de anéis e de unhas e dedos pintadas de hena lhe atirou um pão. Antes que pudesse agradecer, a carruagem seguiu em frente, deixando-a coberta de poeira.

Como era jovem, dentro de duas semanas o braço se soldou... mas ficou torto e seu peito deformado pelas costelas quebradas. Pior ainda, ficou com uma feia cicatriz no rosto. Mesmo assim, quando chegou a uma fazenda onde existia um grande parreiral, viu que estavam fazendo a vindima das uvas. Havia fartura e precisavam de muita ajuda, assim Maylu carregava os cestos cheios nas costas e os levava até um grande tonel, dentro do qual viu duas mulheres que pareciam estar dançando. O capataz disse que fosse se lavar no tanque, tirasse as roupas de cima e entrasse também no tonel. Ela obedeceu, embora sem saber por que, mas as duas mulheres lhe sorriram e ela descobriu que estavam pisando as uvas. As frutas eram esmagadas e o sumo escorria por uns canos, sendo recolhido em bilhas de barro e usado a seguir para a produção de vinho. Maylu trabalhou junto com elas e, de vez em quanto, estendia o braço bom e comia um punhado de bagaço para matar a fome.

Ela entendia de muitos trabalhos rurais e passou facilmente por camponesa. Explicou que quebrara o braço em uma queda e, depois da vindima, foi ficando na fazenda, carregando lenha e tirando água do poço, como já o fizera na estalagem, varrendo e limpando, alimentando os animais e fazendo tudo o que lhe mandavam. Dormia num canto da cozinha, comia as sobras da mesa, mas recebeu novas roupas em lugar de seus trapos e foi sendo mais ou menos bem tratada, embora todos fizessem troça de sua feiúra. Não obstante, Maylu já estava acostumada com zombarias e apelidos e nem se importava mais com isso.

Até que um dia, já no meio de outro outono, apareceu um sacerdote, que viu Maylu carregando a lavagem para os porcos. Reparou como era feia, com um braço torto e o peito deformado. Era um sacerdote do hinduísmo popular e acreditava em karma como sendo o destino das pessoas e em dharma como sendo castigo por crimes de encarnações passadas. Ele chamou a menina, sem maldade, querendo saber por que era tão feia, talvez até pretendendo rezar com ela a alguma divindade que removesse um pouco da má sorte que ela trazia consigo.

Porém Maylu se assustou, lembrando-se do que lhe ocorrera antes e saiu em disparada para fora da fazenda, sem que ninguém soubesse a razão. Esperavam que voltasse à noite, mas nunca mais foi vista por ali. Durante a fuga, a pobre Maylu escorregou e quebrou um tornozelo... Contudo, estava com tanto medo que foi se arrastando até um matagal, amarrou o pé com tiras rasgadas da roupa, quebrou um galho grosso para se apoiar e seguiu mancando até achar um lugar bem protegido, em que os galhos das árvores formavam um teto e as ramas e musgos eram tão espessos que pareciam paredes. Fechou bem a abertura com espinhos e dormiu ali. No outro dia, o pé estava todo inchado, mas pensou que só estava torcido... Mesmo assim, saiu em busca de frutinhas e raízes e, de um jeito ou de outro, ficou morando ali até o pé sarar.

Sarou, de fato, mas ficou bem torto, o pé apontava para o lado e o tornozelo ficara com o dobro da grossura anterior. Usando um galho grande como muleta, tomou de novo a estrada, arrastando o pé e prosseguindo muito devagar, até que chegou nos arredores de uma cidade. Ia pedindo esmola pelo caminho e quando as pessoas viam que era manca e coxa, além de ter aquela horrível cicatriz no rosto, tinham pena dela e lhe davam comida ou algumas moedinhas de cobre. Mas o inverno já chegava e Maylu foi procurar uma granja e se escondeu num galpão para dormir. Na manhã seguinte, foi acordada por uma mulher, que a acusou de estar roubando. Maylu já aprendera a disfarçar seu sotaque de haridjã e até mesmo praticara durante os seus tempos de retiro para curar os ossos quebrados, de tal modo que falava como uma camponesa daquela parte do país e se defendeu, dizendo que só estava se protegendo do frio, que era mendiga e não podia trabalhar por ser feia e aleijada.

A mulher sentiu pena dela, vendo que realmente não podia fazer nenhum serviço pesado, mas deu-lhe uma muda de roupas usadas para trocar seus trapos e tamancos para os pés descalços, que suas sandálias há muito se haviam desmanchado. Deu-lhe comida e deixou que dormisse no galpão durante esse inverno. Mas ensinou-a a cardar a lã e o linho para o tear e Maylu descascava frutas e recolhia ovos, levava canjica para as galinhas e se demonstrou útil apesar de sua feiúra e do aleijume.

Contudo, ao chegar outro verão, Maylu viu chegar um destacamento de soldados pela estrada, da mesma direção por que antes viera. Tomada de pavor, saiu em carreira desabalada, pulando com o pé normal e olhando para trás para ver se estava sendo perseguida e nem enxergou uma fogueira no meio do caminho. Tropeçou e caiu com a mão boa e o rosto sobre as chamas. Sentiu uma dor horrível, pior que a das quebraduras e se ergueu com o rosto todo empolado. Em seu terror, não quis saber de mais nada e outra vez foi se refugiar no mato.

A mão queimada só ficou com manchas, mas o rosto ficou cheio de marcas e cicatrizes e as feições se tornaram ainda mais deformadas. Contudo, Maylu não se queixou, antes agradeceu aos deuses por não ter ficado cega. Só que agora, realmente, a pobre Maylu virara um susto, braço torto, capenga, peito encolhido e o rosto transformado em uma máscara que mais parecia um rosto de animal. Com restos de tecido que achou à beira do caminho, costurou um capuz, usando espinhos com agulhas e depois coseu uma espécie de manto em que se enrolou. Agora, em vez de um monstro, parecia um fantasma... E o inverno novamente se aproximava, chegara em uma região montanhosa, a comida cada vez mais escassa. Comia a casca das árvores para enganar a fome e bebia quanta água podia para manter o estômago cheio.

Entretanto, ao dobrar a curva de uma estrada, viu um monge sentado à beira do caminho. O monge a olhou e logo percebeu quão esfomeada a menina agora estava. Ela estacou com medo dele, mas o monge a chamou carinhosamente e fez sinal para que se sentasse junto dele. Depois de uma longa prece em uma língua que Maylu desconhecia, abriu a túnica e tirou de dentro uma escudela de bronze. Maylu viu maravilhada que ela se enchia de arroz e favas. O monge estendeu-lhe a comida e a menina devorou até o último grão. No mesmo instante, a escudela se encheu uma outra vez e só depois de comer tudo é que Maylu se deu por satisfeita.

O monge a observava benignamente. Quando Maylu terminou pela segunda vez, ele verteu água de um odre dentro da escudela, lavou-a bem e a secou com um pano que tirou de um bolso, guardando-a de novo dentro das dobras de suas vestes. Só então lhe falou:

"Sei muito bem que és uma haridjã

e não deveria juntar-me a uma intocável,

mas a bondade de Shiva é interminável:

sei muito bem que o deus me perdoará.

Talvez nova penitência me imporá,

mas há muito que me encontro nesse afã..."

"Shiva me deu esta escudela e sua magia.

Como é de bronze, eu vivo a caminhar,

sem precisar ao povo mendigar.

Há sete anos estou em penitência,

no frio do inverno e do verão na ardência,

porém me dá uma refeição a cada dia..."

Maylu sentiu grande vergonha, porque percebera que a escudela se enchera de novo para que o monge se alimentasse também e pediu mil desculpas, mas o monge disse que se alimentava todos os dias e que ela estava precisando muito mais do que ele; além disso, caso esquecesse a caridade, a escudela perderia seu poder mágico, de modo que estava tudo bem e ela não deveria se envergonhar. Mas que o inverno se aproximava e ela não poderia ficar exposta à neve e ao sereno como ele o fazia, cumprindo sua penitência... Porém, no vale seguinte, havia uma aldeia de haridjãs e tinha certeza de que eles a acolheriam, lhe dariam comida e roupas novas.

Maylu desceu até o vale e realmente chegou a um vilarejo, lembrando-se de falar com seu sotaque antigo de haridjã. Foi bem acolhida, serviram-lhe sopa e lhe deram duas fatias de pão preto para comer, o que ela fez, ainda encolhida em seu manto e seu capuz. Mas vendo como ela tremia, mesmo à beira da fogueira, foram buscar roupas de lã que lhe ofereceram. Ela foi até um telheiro aberto para trocar de roupa fora do vento, completamente desprevenida... E quando tirou as roupas velhas e o capuz, viram seu corpo e seu braço deformado e então seu rosto com as feições contraídas de um animal selvagem e, na mesma hora, pensaram que ela tinha lepra, uma doença terrível.

A menina, agora adolescente, compreendeu que havia um destino pior que ser haridjã, mendiga e aleijada – o de uma leprosa, que todos expulsavam. Os haridjãs disseram que podia conservar as novas roupas, que já as havia mesmo contaminado, mas não podia continuar no meio deles, que era doente e imunda e contagiaria a todos. Maylu sentiu-se desesperada e humilhada, tentou explicar por que era assim, mas de nada adiantou. Empurraram seus trapos para queimar na fogueira com umas varas de bambu e ameaçaram bater nela com as mesmas varas, caso não fosse embora.

Maylu subiu a ladeira de outra montanha, arrastando o pé, apoiada no galho grosso que lhe servia de muleta. Não tinha fome e as roupas de lã a aqueciam, mas onde acharia abrigo para o inverno? E novamente, em uma dobra do caminho, encontrou seu amigo monge, só que agora caído no meio da estrada, porque havia quebrado uma perna. Maylu o arrastou para o capim que crescia à beira do caminho, trouxe-lhe água, lavou seus arranhões e improvisou umas talas para lhe imobilizar a perna. Enquanto procurava a madeira, viu uma caverna meio escondida entre as ramas. Farejou e não sentiu cheiro de urso, lobo ou outro animal feroz. Voltou até onde deixara o monge e fez com que se apoiasse nela até chegarem à caverna, onde o deixou abrigado. Foi cortar palha e capim e lhe improvisou um leito, acendeu uma fogueira e depois encontrou uns espinheiros para tapar a entrada da caverna.

O monge teve febre e Maylu tratava dele, fazia-lhe chás e aquecia a comida que aparecia magicamente na escudela. Quando ele pareceu estar melhor, contou o que acontecera, jurando não ser leprosa e explicando por que era assim tão feia e deformada. O monge acreditou nela e disse chamar-se Shivavarmana, o que significa “o protegido de Shiva” e que fora por isso que o deus lhe dera a escudela mágica. Que fora Shiva que a mandara de volta para ele a fim de cumprir o seu dharma. Ficaram muito amigos e uma noite, Maylu se lamentou:

"Como eu queria ser rica e bonita!...

Mas levo a toda parte minha feiúra,

pedindo esmolas, cheia de amargura...

Decerto que em outra encarnação

eu ofendi aos deuses, que me castigarão

até a morte, com punição maldita!..."

Porém Shivavarmana, que estava em um momento de lucidez entre os ataques de febre, a consolou, explicando que a vida não era um castigo dos deuses, mas uma experiência necessária para o desenvolvimento do espírito.

"Não é assim, minha filha, porque o karma

não é castigo, nem tampouco o dharma...

Foi teu espírito que a atual vida escolheu,

para viver na pobreza, já que percebeu

que, no passado, esta experiência lhe faltou..."

"Após tua morte, depois do que aprendeste,

o teu espírito escolhe outra experiência,

quer boa ou má, terás de ter paciência,

porém não penses que os deuses te castigam.

Eles só querem que seus preceitos sigam,

mas esta vida, tu mesma é que escolheste..."

E assim, Shivavarmana a ia ensinando, enquanto ela o tratava com o maior carinho, como se fosse o pai que não conhecera. Mas esse inverno foi terrível e o monge não mais se aquecia, embora ela acendesse sempre a fogueira e lhe desse chás e comida quente. Teceu uma coberta com painas e folhas e o cobriu com ela, deitava-se junto dele todas as noites, fazia-lhe massagens nas mãos e nos pés, mas o monge foi emagrecendo, até que uma noite lhe disse que ia desencarnar.

Maylu ficou desesperada. “Mas o que vai ser de mim? Tu foste o único amigo que eu tive, a única pessoa que realmente me aceitou depois que morreu Sutra, a minha mãe de criação. Quem vai me proteger e alimentar, feia e torta como eu sou?” O monge sorriu e disse: “Nestas últimas semanas és tu que me proteges e alimentas... Mas não vais passar fome, eu te deixarei minha escudela como herança e rezarei a Shiva para que lhe conserve o poder enquanto dele precisares.”

Como Maylu não se consolasse e não parasse de se queixar da maldade do destino que tanto mal lhe fizera, Shivavarmana suspirou e lhe disse: “Minha filha, vou te contar um segredo. Já deves ter percebido que, embora monge mendicante, eu sou um brâmane. De fato, nasci filho de um rajá, embora fosse o mais moço de doze irmãos. Contudo, cada vez que me olhava no espelho das águas ou em um escudo polido e via o reflexo de meu rosto, acreditava ser muito feio. E como tudo em que se acredita, fui realmente ficando mais feio à medida em que o tempo passava e meus irmãos não paravam de fazer troça de mim... Sabes muito bem como são essas coisas...”

Maylu concordou e o monge prosseguiu: “Li, certa vez, num alfarrábio antigo, que em uma montanha, bem no centro do Nepal, existe um templo consagrado a Shiva. Só de ver o nome de meu patrono minha atenção foi despertada. O manuscrito dizia que nele havia três martelos, aos quais Shiva dotara de poderes diferentes. Ao ser tocado, o martelo batia em uma placa de bronze e, no mesmo instante, o seu poder se exercia de forma irrevogável. Um deles concedia a beleza. Outro conferia a riqueza. Mas o terceiro... nos privava do maior de nossos bens. Era uma questão de sorte. Mas poucos demandavam esse templo. Por pior que seja a sorte, sempre existe alguma coisa que não queremos perder.”

Disse a jovem: “Mas eu não tenho. Nem família, nem dinheiro, nem amor, nem beleza, nem sequer saúde. Nada tenho a perder.” Shivavarmana respondeu: “Ah, nunca se sabe!... Mas indaguei dos conselheiros de meu pai e descobri que o templo realmente existia e qual o caminho que conduzia até ele. Parti, com numerosa comitiva, montado em um elefante, levando comigo guardas e servos e muito dinheiro e jóias para ofertar a Shiva, se o deus me concedesse a beleza. Porém não tive sorte: toquei no martelo errado e nada recebi. Olhei-me no espelho que levava e tinha a mesma aparência de antes... ate perceber que meus ricos trajes tinham sido trocados pela estamenha de um monge. Saí do templo e meu elefante, meus guardas, meus servos, minhas riquezas, tudo tinha desparecido. O martelo me tirara o meu maior bem, que era a fortuna...”

Falou a mocinha: “Ah, meu pobre amigo!... Mas estás cansado, descansa um pouco agora...” E ajuntou: “Mas eu não te acho feio!... És um velho e estás doente, mas ainda te acho um homem muito bonito...” O monge sorriu: “Dizes bem... muitas vezes os feios melhoram com a idade. Costumam confundir beleza com juventude... Mas escuta com atenção. Se realmente o desejares, procura o templo e arrisca a sorte. Contudo, não posso te dizer qual martelo retirou meu maior bem. A cada vez que eles batem, seus poderes se transferem de um para outro. E não adianta observar com cuidado, as cabeças dos martelos são três carrancas, cada qual uma careta mais horrível, nenhum parece predisposto a conferir qualquer bem... Mas vai até lá, se quiseres e que Shiva te seja favorável!... Ficarás com a minha escudela e não passarás fome... Mas cuidado! Que podes perder o teu maior bem!...”

O monge soltou um longo suspiro e prosseguiu: “Eu te peço um último favor: tão logo eu desencarne, prepara uma pira para mim e crema meu corpo. Depois derrama minhas cinzas no regato que corre aqui perto. Sei que suas águas vão de rio em rio até chegar ao Ganges, nosso rio sagrado...” Maylu prometeu cumprir os seus desejos. Depois disso, Shivavarmana caiu em profundo sono, de que não chegou a despertar.

Após secar as lágrimas, Maylu foi ao bosque, munida de uma faca que pertencera ao monge e encontrou árvores de sândalo. Cortou madeira suficiente para fazer uma pira, uma grande fogueira e a carregou para a entrada da caverna, depois de várias viagens de ida e volta. Lavou o corpo de seu amigo e colocou Shivavarmana deitado sobre a lenha. Com o ferrinho e a pederneira lançou uma centelha sobre a palha que colocara embaixo e logo a faísca incendiou toda a pira, até consumir totalmente o corpo do ancião.

Por um momento, Maylu chegou a pensar em jogar-se também ao fogo, para acabar com sua vida miserável (um costume chamado na Índia de “Sutí”), mas logo lembrou que assim não cumpriria a sua promessa e esperou pacientemente até as cinzas esfriarem. Depois as recolheu com o maior cuidado e as derramou nas águas do regato, que corria placidamente em direção ao sagrado rio Ganges.

Ficou sozinha na caverna até o final do inverno. A escudela a alimentava uma vez por dia e ela meditou por longo tempo. Talvez pudesse permanecer ali por muitos anos, tinha comida e não sentia frio... Mas que vida era aquela, sem sentido? Até os bichos saíam de suas tocas na primavera... Ela iria procurar o templo dos Três Martelos de Shiva. Tinha duas chances em três de acertar. Se ficasse bela, poderia conseguir facilmente um marido, um negociante, um oficial, quem sabe até um rajá!... E se ficasse rica, que importância teria sua feiúra? Teria guardas, escravos e servas, poderia até pagar algum homem belo para casar com ela e então teria filhos com ele, tão bonitos quanto o pai... Poderia encontrar médicos famosos, que consertariam seus ossos e melhorariam seu rosto deformado...

E o que tinha ela a perder? O único bem que possuía era a escudela. Se a perdesse, provavelmente morreria de fome no alto da montanha... ou então se jogaria em um abismo. Pobre e feia, sem o seu poder mágico, não poderia sobreviver por muito tempo... Teve então outra ideia: a vida! Seu maior bem era a vida, mas que vida era aquela que tivera até então? Melhor mesmo que a perdesse... E se fosse a inteligência? Que diferença lhe faria? Se perdesse a inteligência, não perceberia mais que era tão feia e pobre... Não. Seu maior bem era a escudela, era só isso que poderia perder.

E assim, tão logo se firmou a primavera, Maylu confeccionou uma muleta melhor que os galhos em que se apoiara até então e se pôs a caminho. Levou meses, mas foi indagando aqui e ali, motivo de troça e zombaria, por todos espantada e a todos assustando quando erguia seu capuz, mas conseguiu descobrir a senda da montanha que conduzia ao templo dos Três Martelos de Shiva.

A trilha estava quase apagada, estava claro que pouca gente a usava, mas não lhe faltava comida e teve forças para chegar até lá. E diante dela se abria a porta do templo, todo trabalhado com estátuas e pinturas, mostrando a vida, as obras e o poder de Shiva. Repetiu as preces que Shivavarmana lhe ensinara, tomou coragem e cruzou a soleira para o interior, em que reinava a escuridão.

O templo estava totalmente deserto, não havia uma lâmpada acesa, não encontrou nenhuma oferenda, não achou qualquer sacerdote. Mas lá no fundo... emergindo da obscuridade, viu uma massa de pedra... Seus olhos se acostumaram ao escuro e percebeu que eram três cabeças... horríveis, disformes, imensas, postadas lado a lado, inescrutáveis como o destino é mudo.

Avançou pé ante pé, até chegar diante dos três martelos. Havia velas em um altar, há muito apagadas. Com a pederneira, lançou faíscas e acendeu os morrões enegrecidos. A luz subiu vivamente, muito mais que se esperaria desses restinhos de vela. As três cabeças se mostraram majestosas. Maylu as contemplou, sem que os rostos horrendos, mas imponentes, lhe dessem qualquer pista. Um deles lhe daria a beleza. O outro lhe daria a fortuna. E o terceiro lhe tiraria sua escudela mágica. Mas qual seria qual? Qual deles lhe daria uma bênção, qual traria a maldição? E mesmo que soubesse, Maylu não conseguia se decidir; não queria ser só bela, não queria ser só rica: queria ser formosa e ter grande fortuna! Mas mesmo que acertasse, só receberia um desses dons...

Então, firmou o olhar e viu que os três martelos eram interligados por uma única trave de bronze... Um ideia reluziu em sua mente e agradeceu pela inspiração de Shiva, pois só o deus a poderia ter inspirado. E se ela estendesse o braço bom e tocasse na trave e não nos focinhos horrorosos dos martelos, não acionaria os três a um só tempo? Perderia a escudela – ou talvez a inteligência – mas receberia beleza e fortuna. Não poderia perder a vida, caso contrário não receberia os outros dons. Pensando bem, nem poderia perder a inteligência, pois então nem saberia que era rica e formosa... Não, só podia ser a escudela. Tirou-a das dobras de suas vestes e a beijou como um último adeus.

Como era magra, esgueirou-se facilmente por entre dois martelos, sem roçar nem em um nem no outro. Estendeu o braço direito, respirou fundo e tocou com a ponta dos dedos na trave de bronze. Ouviu-se um estrondo, como um grito de surpresa e raiva e os três martelos bateram ao mesmo tempo sobre a longa placa de bronze que servia como bigorna... Maylu sentiu fugir a luz de seus olhos, tudo girou-lhe em volta... e desmaiou.

*** *** ***

Ao acordar, estava deitada em um largo divã coberto de almofadas. Havia cortinados e tapeçarias, tapetes e jarrões de metais preciosos. Servas se moviam pelo aposento, uma delas a penteava, outra derramava água quente em uma piscina, como se estivesse a preparar seu banho... Três outras dançavam, enquanto músicos tocavam flautas e alaúdes... Oh, Shiva, obrigado! Eu consegui, tornei-me rica, graças, grande deus!... Mas e a beleza? Será que consegui também?

Limpou a garganta e a música cessou. Todos olharam para ela, com o maior respeito. Maylu indagou: “Eu pareço feia para vocês?” As servas riram e aquela que a penteava respondeu:

"Senhora, não existe alguém mais bela!...

Seu rosto é liso, tem olhar de estrela,

seu corpo está perfeito até agora!..."

Olhou para seu corpo e percebeu, por entre as sedas que o envolviam, que o braço não estava mais encolhido e que seu pé e o tornozelo estavam perfeitos... Passou as mãos sobre as costelas e percebeu que era esbelta, como sempre fora, mas que não tinha mais qualquer deformidade. Mas e o rosto? Nesse instante, seu olhar recaiu sobre uma mesinha e sobre o tampo divisou sua escudela. Oh, deuses! Mas se eu a tenho ainda, o que perdi então...?

E a serva continuou, alegremente. “Senhora, seus cabelos são os mais lindos que já vi. Finos e lisos, prateados como a lua!...” Maylu pediu um espelho e lhe alcançaram um do mais fino cristal. Viu nele o rosto de uma desconhecida, sem cicatrizes, sem manchas, somente algumas linhas de expressão, mas sem grande profundidade... E seus cabelos!... Tinham-se tornado em pura prata!... Sem dúvida, era bela!... Mas o rosto que a contemplava era o de uma mulher muito bem cuidada, mas que tinha, no mínimo, uns sessenta anos!... E com um choque percebeu que não enganara os martelos... Fora justamente o oposto... Tinha a riqueza e tinha a formosura... Mas o terceiro martelo lhe tirara o seu maior bem: a Mocidade!

EPÍLOGO

Viveu rica e feliz, porém constantemente,

durante os anos que ainda lhe restavam,

sofria dúvidas que bastante a atormentavam.

Porque pensava se cumprira a sua opção

ou deveria, em mais outra encarnação,

retornar feia e pobre... novamente!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 21/06/2011
Código do texto: T3047655
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