O ANÃO GIGANTE

O ANÃO GIGANTE (14 jul 11)

(tradicional hindu, recontado por William Lagos.)

O ANÃO GIGANTE I

Com o tempo, julgando-se imortal,

o orgulho de Indra foi crescendo,

o poderio dos Asuras abatendo,

com seu grosseiro caráter animal,

enquanto o reino dos Devas, ao converso,

se espalhava na abrangência do Universo,

como era o seu destino natural.

E assim sendo, ao verem-se oprimidos,

os Asuras elegeram novo rei.

Pelos ditames de sua antiga lei,

foram os duelos de praxe constituídos,

com a escolha de Bali, um poderoso

guerreiro, de coração virtuoso,

após serem seus rivais submetidos.

E como os Devas estavam descuidados,

Bali os dominou com armadilhas,

ainda em seus leitos; ou tocaias pelas trilhas,

até que muitos foram aprisionados.

E quando se travaram as batalhas,

suas fileiras mostravam muitas falhas,

e assim foram facilmente derrotados.

O ANÃO GIGANTE II

Deste modo, dominou o povo Asura

o quanto antes aos Devas pertencera,

depois que Bali habilmente a eles vencera:

o mar e a Terra e até a galáxia pura...

Porém a índole dos Asuras coibiu

seu novo rei, porque não permitiu

senão agirem com a máxima lisura.

Porque esse Bali era, estranhamente,

portador das virtudes celestiais,

não permitindo, destarte, que jamais

a sua grosseira e violenta gente

fosse com Homens ou Devas inclemente,

mas conservasse na justiça a mente,

porque aos preceitos de Brama era obediente.

E agindo assim, porque a Deus sempre agradou,

por virtude e não pelo que o interessa,

Brama emprestou-lhe o poder que nunca cessa

e então o Universo inteiro dominou

este valente rei, a demonstrar submissão

somente a Deus, cumprindo tal missão

por todo o tempo em que os preceitos respeitou.

O ANÃO GIGANTE III

De fato, era Brama indiferente

a quem mandasse no mundo material,

(porque se acha além do temporal)

com a exceção de maldade permanente;

como aos desejos do mundo dominasse,

Bali mostrou-se virtuoso ante sua face,

de tal modo que o aceitou inteiramente.

Porém Vishnu, Seu filho, duvidava

que tal virtude pudesse perdurar.

Tendo poder, é fácil resvalar...

Naqueles tempos, já se comentava

que o poder corrompe toda a gente

e, desse modo, que absolutamente

o poder absoluto degradava...

E assim, Vishnu tomou a iniciativa

e decidiu-se a assumir outro avatar:

em uma família humana se encarnar.

E novamente, de seu orgulho priva

o gênio Indra, pois à sua mãe Aditi

a Kashyapa engravidar permite,

para que Vishnu, qual ser humano, viva.

O ANÃO GIGANTE IV

E desse modo, pela vez primeira,

Vishnu se fez inteiramente humano,

mas decidiu-se, por imortal arcano,

a ocultar sua natureza verdadeira.

E assim nasceu qual deformado anão.

Vamana foi seu nome na ocasião,

e além das pernas, trazia uma terceira!

Em tudo o mais, perfeitamente humano,

por isso Upendra também foi ele chamado.

Mas de seu corpo tão desengonçado

saíam seis braços, em novelo insano.

Desproporcional ao corpo sua cabeça,

era o quinto avatar, sem que pareça

de forma alguma o guerreiro soberano!

Seus pais eram de casta diferente...

Ao assumir a primeira encarnação

do Universo, na segunda geração,

a Treta Yuga, como a chama a gente,

tornou-se num mestiço e degradado,

só meio brâmane, além de deformado,

aberração de aspecto indigente!...

O ANÃO GIGANTE V

Ora, segundo reza a tradição,

Kashyapa era um filho do desejo

mental de Brama, nascido em um ensejo

muito anterior à humana geração.

Manasaputra foi também chamado,

pois foi com muitas esposas abençoado,

o pai dos Devas na primeira encarnação.

Kashyapa casou-se com Aditi,

a mãe dos Devas, que mais tarde deu à luz

Vamana, o avatar que nos seduz;

Também gerou com a irmã desta, Diti,

esses Asuras de grosseira casta...

E uma vez que tudo isso não lhe basta

para ser mãe dos Nagas, a Kadru incite.

Foi dos humanos também o iniciador,

pai de Varuna e do pássaro Garuda;

(a vários monstros é melhor que não se aluda).

Pois sendo um mestre nas artes do amor

a fêmea alguma que se lhe apresentava

não rejeitava e sua semente derramava

em muitos ventres, cheio de vigor...

O ANÃO GIGANTE VI

O próprio Bali era seu descendente,

bisneto de Hiranya e neto de Praladha,

de seu avô a virtude conservada.

Fizera parte da multidão gemente

que sofrera de Hiranya a tirania,

pois os preceitos de seu avô seguia,

em oposição à raça sua descrente.

De Kashyapa se dizia que nascera

envolto em vasta nuvem luminosa,

de que sugara a aptidão virtuosa.

Fora por isso que seu nome recebera:

o "Bebedor da Luz", esse andarilho,

que alguns diziam ser neto e não o filho

de Brama e que Mashini o concebera.

Vê-se, portanto, a força da ironia

com que Indra outra vez foi humilhado.

Nasceu Varana de sua mãe gerado,

pela semente que seu pai trazia...

Nem era Deva e nem era perfeito,

reunindo assim em si grave defeito,

embora fosse um avatar que reluzia...

O ANÃO GIGANTE VII

Mas como filho do brâmane Kashyapa,

Vamana tinha direito a se trajar

como um brâmane e a todos se mostrar:

turbante na cabeça, ao cinto a faca,

uma túnica bordada e seus calções

firmados com perneiras e botões:

nada em sua fina indumentária escapa.

E assim vestido, foi seu primo visitar,

mas seu aspecto era digno de pena,

qual um palhaço vestido para a cena,

a sua terceira perna a balançar,

três braços, a surgir de cada lado,

de sua túnica já rasgavam o bordado,

um resultado, afinal, de lamentar...

Mas mesmo assim, em tal indumentária

a sua casta a todos indicava

e os Asuras, a quem Bali controlava,

deram passagem à figura solitária,

muito embora, às suas costas, motejassem

e mais se rissem do que admirassem

a sua audácia, pois parecia mais um pária.

O ANÃO GIGANTE VIII

Chegou Vamana e prestou-lhe reverência,

inclinando-se sete vezes ante o rei,

que seguindo de Brama a antiga lei,

tratava a todos com benemerência.

Jamais a um brâmane desrespeitaria,

mesmo esse, que insignificante parecia

a quem saudou com magnificência...

Com voz pausada, falou-lhe então Vamana:

"Senhor Bali, conquistaste o Universo!"

"Todo o domínio foi-me assim converso

pelo favor de Quem tudo dimana..."

"És o senhor de toda a Terra, então..."

"Isso é verdade," respondeu com emoção,

"mas sob Deus a humildade nos irmana."

"Porém, bom Bali, as terras de meus pais

incluíste em teu domínio permanente..."

"Mas de que modo isto seria diferente?

Pois Brama deu-me tanta coisa mais...

Toda a galáxia controlo no Seu nome,

de todos cuido e ninguém mais passa fome

e não permito que ninguém sofra demais..."

O ANÃO GIGANTE IX

"Nesse caso, o senhor não se importaria

de dar alguma terra para mim...?

Pois não precisa ser tão grande assim,

somente aquela que com os pés eu pisaria...

Porém que saiba me pertence inteiramente,

sem prestar contas a nenhum valente,

pois sua posse a mim, talvez, contestaria..."

Bali o encarou, um tanto desconfiado:

"Mas você pode morar onde quiser:

o Universo é grande, não é mister

que um pedaço tão pequeno demarcado

seja só para você, meu caro amigo.

Pode viver onde quiser, não há perigo:

será por todos os Asuras respeitado..."

"Ah, meu senhor, perdoe o meu capricho,

pois, afinal, só peço por tão pouco!

Não se trata de qualquer desejo louco:

é pouco mais do que um pequeno nicho,

que eu possa abarcar com meus três pés...

Tens o Universo inteiro por tuas sés,

dos sóis em erupção controlas o esguicho!"

O ANÃO GIGANTE X

Bali, então, ponderou bem lentamente...

O que se achava por trás desse pedido?

Por que razão seu primo mal nutrido

pedia terra assim tão urgentemente?

"Deves ter uma razão mais importante,

para fazer pedido tão insignificante,"

redarguiu Bali, sentindo-se impotente.

O senhor Brama jamais aprovaria

que a seu primo tão pouco recusasse.

Por mais que o coração se lhe agitasse,

em premonição, obrigado se sentia

a atender a tal pedido estranho...

Um pedacinho de terra... Que tamanho,

com seus três pés o anão abrangeria?

"Majestade," Vamana respondeu,

"de mim todos no mundo fazem troça,

mas se minha própria terra ter eu possa,

pelo favor que meu rei me concedeu,

serei maior que todos, pois não têm...

Todas as terras são do rei, também

mas meu pedaço posso dizer que é meu!..."

O ANÃO GIGANTE XI

Bali, então, acedeu a seu desejo.

"És um brâmane, não desatenderei

o teu pedido," declarou-lhe o rei.

Com a ponta dos dedos, deu-lhe beijo,

para selo do seu consentimento.

"Escolhe agora, conforme o julgamento,

mas que ocorra hoje mesmo tal ensejo."

"O que me custa, afinal? És um anão

e quanto espaço podes abranger?

Até onde irás tuas pernas estender?

Dou de bom grado, escolhe teu quinhão,

mas que não seja o trono em que me assento!

Só para ele não te dou consentimento:

serias meu rei ao ocupar tal posição!...

E soltaram os Asuras gargalhadas.

Como haveria tal possibilidade?

Que pudesse superar, na realidade,

seu poderoso rei, senhor de espadas,

criaturinha insignificante assim?

Que albergasse tal projeto, enfim,

de a autoridade reduzir-lhe a nadas?

O ANÃO GIGANTE XII

Porém, assim que seu pedido foi aceito,

cresceu Vamana, desmesuradamente;

rompeu o teto do salão, indiferente,

e foi perdendo assim cada defeito.

Virou-se num gigante poderoso

e não parava de crescer... Formoso,

mais do que a Terra se tornou perfeito!

E foi ficando, mais alto do que o Sol,

até tornar-se maior do que o Universo.

Um pé pôs numa ponta... E o inverso

enganchou na ponta oposta, qual anzol,

abarcando a cada uma das estrelas...

mas uma perna ficou, sem pisar nelas,

no ar girando, qual luz de farol...

"Meu senhor Bali, o que farei agora?

A minha terceira perna, onde coloco?

Pois no teu trono de forma alguma eu toco..."

Reconheceu-o Bali, nessa hora...

"Senhor Vishnu, ponha sobre minha cabeça,

que teu poder divino reconheça:

teu é o Universo, como o foi outrora!..."

O ANÃO GIGANTE XIII

Reconheceu assim, ao rebaixar-se

que era Vishnu o herói conquistador,

que como suserano, podia dispor

de tudo quanto no reino pode achar-se

de seu vassalo e justo seguidor,

que em sua virtude, não encontrou rancor.

Bali fiel sempre soube demonstrar-se.

Assim a Vishnu o império devolveu,

que Indra, em seu nome, havia perdido,

outra vez em seu orgulho desmedido.

Porém o deus ao gênio repreendeu:

"Vê se não perdes, Indra, uma vez mais,

pois vez terceira não te darei jamais

esse domínio do mundo que é só meu!..."

É de pensar que nesta estranha história

tudo não passe de humana alegoria.

Pois quem nasce pequeno, cresceria,

até ganhar do Universo inteiro a glória...

E a verdadeira humildade então se via

na criatura que a Deus se submetia,

mesmo em disfarce da mais pura escória...

O ANÃO GIGANTE XIV

Depois de tudo, Bali se ajoelhou

aos pés de Indra, prestando-lhe obediência.

Indra o ergueu, com magnificência

e num lugar a seu lado o assentou.

"Somos irmãos, Bali, o nosso pai

é Kashyapa, que pelo mundo vai

e que tanta criatura originou..."

Porém Vishnu então se aproximou,

Igual que um homem de aspecto normal

e disse a Bali: "Serás um imortal."

E do trono de Indra o afastou.

"Dou-te planeta inconquistável totalmente,

que haverás de governar eternamente."

E o humilde Bali ao deus reverenciou.

"Bebeste o Amrita, na maioridade,

que te serviu o teu avô Praladha,

antes de sua longa vida terminada.

Mas só a ti confiro a eternidade."

E em seu planeta instalou-se o rei Asura,

a governar seu povo com ternura,

qual recompensa final por sua humildade.

LEIA TAMBÉM A VERSÃO EM PROSA.

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

William Lagos
Enviado por William Lagos em 16/07/2011
Código do texto: T3098223
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