felicidade quw se destina
FELICIDADE QUE SE DESTINA
Adaptação teatral da obra original “Felicidade Clandestina”, de Clarice
Lispector.
Texto: José Vilseki e Lavínia Batista
Personagens:
P1 (gorda)
Narizinho
Rabicó
Vozes de Dona Benta e Saci
P2 (magra)
Emília
Visconde
CENA I
No quarto da vovó
EMÍLIA – Ai que vontade que eu estou de brincar com a Narizinho, mas
esqueci que eu to brigada com ela porque ela foi passear com o Pedrinho e me
abandonou aqui sozinha. Mas eu vou me vingar dessa danada! Vou me
esconder aqui e nunca mais aparecer! Ou talvez eu apareça porque eu to com
uma saudade de levar uns apertão dela... Mas não posso me esquecer que to
com raiva.
Não contem nada pra ela! SSSSSHHHHHHHHHIIIIIIIIII! (vai até o baú e se vira
para o público) Vocês não vão contar né? Se você contar aqui oh pra você!
Entra Narizinho
NARIZINHO – Emília! Emília! Cadê você minha bonequinha? Estou louca para
te dar uns apertãozinhos e te contar como foi minha aventura com o Pedrinho.
Deu um trabalhão danado, mas finalmente caçamos o Saci. (Procura pela
boneca
e
depois
de
cansada
senta-se
em
cima
do
baú)
Vocês
viram por acaso a Emília? (Emília bate dentro do baú e narizinho
assusta-se procurando o barulho pelo quarto.)
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Ai meu Deus do céu! Será que o Saci fugiu?
(Levanta-se para verificar se o Saci ainda esta na garrafa, enquanto Emília se
levanta toda empoeirada, sufocada e tossindo.) Oh venha aqui minha
bonequinha amadinha, queridinha, lindinha quero te dar uns apertãozinho!
EMÍLIA – Você além de me largar aqui abandonada quase me mata sufocada!
NARIZINHO – Não foi por quererzinho é que eu estava te procurandinho.
EMÍLIA – To bem de mal com você pra sempre toda vida forever.
NARIZINHO – Aé então não vou te mostrar o que eu trouxe.
EMÍLIA – i to nem ai, quem se importa.
NARIZINHO – Quem se importa o rabo intorta, coma torta atrás da porta! Já
que você não quer ver eu vou embora (cochichando).
EMÍLIA – Quem cuchicha o rabo espicha!
NARIZINHO – (gritando) JÁ QUE VOCÊ NÃO QUER VER EU VOU EMBORA.
EMÍLIA – (Saindo da caixa) Espere!
NARIZINHO – Ah eu sabia, sabia que você não ia ficar de mal comigo! (fazem
festa, pulam, se arrodeiam) Deixa eu te contar! Quando eu e o Pedrinho vimos
o redemoinho arrodiando, arrodiando... (se arrodeia)
EMÍLIA – (Segura-a pelo braço) Pare! Conte de uma vez.
NARIZINHO – E nós lá na roça escondido atrás dos pé de milho e o
redemoinho vindo arrodiando, arrodiando... (arrodeia Emília junto)
EMÍLIA – Meu Deus guria! Pare de se arrodiar que eu nem sei que lado você
tá!
NARIZINHO – E você sabe que quem faz redemoinho é o malandro do Saci se
arrodiando. E pra caçar o Saci a gente joga a peneira em cima do redemoinho,
pega ele e prende dentro da garrafa. Só que na hora o Pedrinho escorregou e
saiu se arrodiando com o Saci, eu corri pra ajudar e nós três acabemos saindo
se arrodiando, arrodiando, arrodiando... Então eu peguei pela perna do Saci e
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o Pedrinho enfiou ele dentro da garrafa segurou firme e eu tampei. E aqui esta
ele.
(Emília entristece)
NARIZINHO – Que foi? Você não gostou?
EMÍLIA – Coitadinho. Você não tem dó de prender ele ai dentro?
NARIZINHO – Eu não! Ele deu nó no rabo dos cavalos. Agora vai ficar ai de
castigo até amanhã (coloca a garrafa dentro do baú e retira um livro). Olha só o
que eu achei!
EMÍLIA – (Tomando o livro) Deixa eu ver, deixa eu ver, Facilidade Intestina, de
Carice Lisberto!
NARIZINHO – FELICIDADE CLANDESTINA DE CLARICE LISPECTOR! Eu sei
por que já li na escola, conta a história de uma menina que tentava ler a minha
história.
EMÍLIA – E não tem eu ai?
NARIZINHO – Claro que não, quem é que iria escrever sobre uma bonequinha
de pano.
EMÍLIA – Deixa eu ler? Deixa?
NARIZINHO – Deixo (oferecendo o livro), mas só amanhã (recolhendo o livro)
porque você se escondeu de mim, e agora fique ai bem quietinha e não se
mecha.
EMÍLIA- (Fica estátua, logo volta a se mexer inquieta, com gestos impacientes)
Ah eu queria tanto ler o livro agora, mas aquela danada levou embora. Ah! Já
sei! (pega o saci de dentro do baú) Saci, Saci, eu vou te soltar daí se você fizer
aquele livro vir parar aqui! (esticando a mão com a palma para cima) iii não deu
certo, esse Saci não é de nada só sabe da nó em rabo de cavalo.
Emília sai de cena atrás da Narizinho. Entra a Sardenta enchendo a boca de
bala com gestos repugnantes.
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P1– Aquela magrela perna de saracura quer meu livro das Reinações de
Narizinho emprestado, mas eu vou mostrar pra ela que a vida é dura. Aquela
morta de fome com cara de quem não come faz dias. Tudo tem que emprestar,
tem que dar, é por favor, muito obrigada, AH! Eu não sou obrigada a nada!
Você quer? (oferece o livro para alguém da plateia) Vá comprar! Quem mandou
não ter um pai igual o meu, dono de uma enorme livraria. (Sai de cena)
Entra P2
P2 – (Feliz porque está indo buscar o livro) Meu livro meu livro estou indo
buscar, a felicidade vai me destinar... Meu livro meu livro estou indo buscar,
porque esse livro eu vou tanto amar... Meu livro meu livro to indo buscar porque
a felicidade não é clandestina e a mim vai se destinar... (Canta várias vezes
tentando compor a música e se criticando. Fica de costas para a entrada,
chega P1. A P2 não fala nada, mas demonstra com gestos e caras sua
expectativa, surpresa e emoção em pensar que vai receber o livro, P1 fica
indiferente.)
As duas personagens repetem 3 vezes as falas ao mesmo tempo:
P1 – O que você faz aqui?
P2 – O que você faz aqui?
P1 – Eu perguntei primeiro!
P2 – Eu perguntei primeiro!
Na quarta vez a P2 finge que repete, enquanto P1 realmente fala:
P1 – Eu perguntei primeiro! ... O que você faz aqui?
P2 – Então, sabe o que é...
P1 – Fala de uma vez menina.
P2 – Queria saber se você trouxe o livro
P1 – Que livro?
P2 – Aquele do Monteiro Lobato, As Reinações de Narizinho.
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P1 – iiiiiiiiiiii
P2 – iii o que?
P1 – Isqueci!
P2 – Esqueceu?
P1 – Esqueci que eu te prometi e emprestei o livro para a Mariazinha.
P2 – Que Mariazinha?
P1 – Aquela que é minha vizinha riquinha, bonitinha... Mas como você é minha
amiguinha queridinha eu vou lá pegar para te emprestar!
P2 – Agora?
P1 – Não, amanhã. Volte amanhã buscar. Ta bom?
(P2 concorda acenando com a cabeça tristemente. P1 sai de cena.)
P2 – (Lentamente) Meu livro, meu livro eu vim buscar, mas a felicidade acaba
de me escapar. É todo dia assim, ela me manda vir no outro dia buscar e
nunca me entrega o livro. Fez isso ontem, onteontem, tratonte, escabonte, lá
atrás do monte. Bem que dizia meu pai “eita mundo veio sem porteira”, isso
quer dizer que a maldade ta solta pelo mundo igual essa daí. (Sai de cena)
Música - entra Rabicó.
RABICÓ – Não pode nem da um peidinho que já junta mosquitinho.
Mosquitinho tão bonitinho não venha aqui me atormentar, zumbe, zumbe,
zummm, fora daqui, vai zumbir em outro lugar (come o mosquito). Ai que dor
na minha barriguinha, acho que eu comi de mais. Enquanto aqueles dois bobos
caçavam o Saci eu caçava milho naquela roça. Ai minha barriguinha, eu não
devia ter comido tanto... (Vai até o baú) Hummm, vamos ver se tem comida
neste baú... Nossa! O que temos aqui: um Saci!
SACI – Quem é você?
RABICÓ – Eu sou o Marquês Rabicó, mas no meu rabo você não vai dar nó!
(Fecha o baú)
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Entra Visconde de Sabugosa.
VISCONDE – Bom dia Senhor Leitão.
RABICÓ – Boa tarde Senhor Sabugão!
VISCONDE – O senhor esta bem seu Rabicó?
RABICÓ – Não... Eu comi de mais e agora minha barriguinha dói!!!
VISCONDE – Também quem manda ser tão glutão senhor leitão. O senhor
devia devorar mesmo é literatura, isto sim engorda a alma e enriquece o
espírito.
(Rabicó tenta interromper fazendo sinal de que quer ir ao banheiro)
VISCONDE – Por que a leitura é a essência...
RABICÓ – ISSO! URGÊNCIA! URGÊNCIA! Preciso ir urgente. (Sai de cena)
VISCONDE – (Interagindo com o público) Vocês viram isso minhas crianças?
Tratem de comer moderadamente e devorar livros vorazmente. Quem aqui
gosta de ler? O que vocês já leram? Gostaram? (enrola conversando com o
público)
Entra narizinho
NARIZINHO – Ah Senhor Visconde! Que bom te encontrar aqui. Será que o
senhor podia me dizer algo sobre a Clarice Lispector?
VISCONDE – Hu Hu claro que sim! Que bom, que felicidade ver você por esse
assunto interessada, em tão tenra idade. A Clarice foi uma ucraniana
naturalizada brasileira, mas cá entre nós ela admitia ser somente brasileira, e
que na verdade era judia, considerada uma das maiores escritoras de todos os
tempos, ao lado de Franz Kafka, Dostoievski...
NARIZINHO – Mas Senhor Visconde, será que não dava pra você simplificar
um pouquinho?
VISCONDE – Mas como simplificar a complexidade das coisas?
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NARIZINHO – Assim falando de um modo que uma criança como eu consiga
entender.
VISCONDE – O que especificadamente você quer saber menina?
NARIZINHO – Eu quero saber sobre essa história. (Mostrando o livro)
VISCONDE – A Felicidade Clandestina. Este é um conto para o adulto e a
criança, mas não é para nós, porque nós somos... Somos...
NARIZINHO – Somos o que?
VISCONDE – Porque nós somos o Sítio do Picapau Amarelo, e somente quem
tem alma de criança pode entrar aqui através dos livros, da leitura, mas nós
não podemos!
NARIZINHO – E porque não seu Visconde?
VISCONDE – Porque nós já estamos dentro!
NARIZINHO – Dentro? Igual o Saci dentro da garrafa?
VISCONDE – Não, temos o mundo inteiro para nós, um universo que pode
abarcar tudo o que a imaginação possa alcançar. Mas você tem um Saci dentro
da garrafa?
NARIZINHO – Sabe o que é seu Visconde, me lembrei que tenho um
compromisso e tenho que sair rapidinho. Tchau! Muito obrigadinha.
VISCONDE – Que menina estranha, será que essa peraltinha tem mesmo um
Saci dentro da garrafa? Onde será que ela guardou? (dirigindo-se ao público)
Será que alguém aqui sabe me dizer onde ela pode ter guardado esta garrafa
com um conteúdo assim tão precioso? Aqui? Dentro do baú? Será que ele está
aqui dentro? (entra no baú) Ta escuro, só se ele estiver bem lá no fundo... Seu
Saci? O seu Saci? (Sai pelo fundo falso do baú.)
P1 entra em cena.
P1 – (Fecha a tampa do baú e senta em cima com cara enfezada) Que tédio!
Bem que meu pai em vez de ter uma livraria podia ser dono de uma loja de
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brinquedos... Ah mas brincar sozinha não tem graça. Já sei! Ele podia ser dono
de uma lanchonete, ou melhor, do Mc Donalds! Eu ia poder comer vários
sanduíches, super nutritivos gordurosos, porque isso de comer sozinha eu já to
acostumada, que minha mãe não me deixa comer besteiras, então eu tenho
que comer escondida naquela casa que nem tem comida que deixa a gente
assim: tão saudável e bonita. Vocês não concordam que eu sou bonita? Vocês
são uns chatos! ii por falar chata olha quem vem ai.
Entra P2 da um pulo e faz um passo de ballet repetidamente, se empolga na
dança indo em direção de P1 até quase cair em cima desta. P2 cai do baú.
P1 – Ai, ai, ai, ai, ai, sua desastrada não vê por onde anda?
P2 – Ai me desculpe, é que eu não estava andando, estava dançando.
P1 – E você não olha por onde dança?
P2 – É que quando eu danço eu olho para o céu.
P1 – Outra com a cabeça no mundo da lua.
P2 – Na lua não, no céu, e por falar em céu, trouxe o livro?
P1 – Mas que livro? Eu estou aqui bem tranquila e você só não me derruba por
um triz.
P2 – Isso, isso, nariz! O nariz da Narizinho das reinações do meu livrinho.
P1 – Teu uma ova! Muito meu livro!
P2 – Sim, sim claro, mas você falou que ia me emprestar e falou ta falado!
P1 – Se eu falei ta falado e se eu falei que ia te emprestar amanhã, eu vou te
emprestar amanhã.
P2 – Ah, mas hoje é o amanhã de ontem.
P1 – Não, não mocinha, amanhã é sempre amanhã, e tenho dito! Volte
amanhã. (sai de cena.)
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P2 – (Remedando a gorda) E tenho dito seu Benedito, e tenho dito seu
Benedito, (dançando) e tenho dito seu benetido... (entra música)
Entra Narizinho tentando imitar P1. P1 ao perceber para de dançar.
NARIZINHO – Continue, não pare de dançar, tava tão bonito e eu tava quase
conseguindo dançar igual você! Em, você não viu por aqui o Visconde?
P2 – Que Visconde? Visconde de onde? Visconde de que?
NARIZINHO – De Sabugosa ué.
P2 – Nunca ouvi falar desse lugar.
NARIZINHO – Já não basta aquela boneca, outra que vive com a cabeça no
mundo da lua.
P2 - Na lua não, no céu.
NARIZINHO – Você me ajuda a encontrar o Visconde?
P2 – Ajudo sim, o que eu devo fazer?
NARIZINHO – Olha, acho que a gente devia atrair ele com alguma coisa que
ele goste. Deixa eu pensar do que que ele podia gostar.
P2 – De um livro?
NARIZINHO – Isso um livro! Onde encontramos um livro por aqui? (sentando
no baú)
P2 – Talvez dentro desse baú.
NARIZINHO – É verdade (abrindo o baú), mas eu não estou vendo nada e
você?
P2 – Talvez mais la no fundo.
NARIZINHO – Ei? Achou alguma coisa ai?
(Voz da Dona Benta ao fundo: Narizinho venha tomar café que já ta pronto, ta
na mesa.)
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NARIZINHO – Já vou vovó, já vou.
(Dona Benta: rápido Narizinho, você é muito demorada e eu não tenho o dia
inteiro.)
NARIZINHO – Ei, sai logo daí porque eu tenho que ir.
(Dona Benta: Narizinho rápido menina.)
NARIZINHO – Ai, fique ai, espere um pouquinho, não saia, eu já volto. (Sai de
cena).
Visconde sai de dentro do baú.
VISCONDE – Engraçado eu podia jurar que vi uma menina descendo enquanto
eu estava subindo. Será que eu cai no sono? Será que eu dormi no baú? Fui
parar em um mundo mágico! Eu tenho certeza de ter encontrado o Mundo dos
Livros. Nossa tudo era lindo: as casas eram livros, as árvores davam livros e
era só esticar os braços e um fruto livrificado estava em suas mãos. Ler ou não
ler, eis a questão. As pessoas, assim como eu, eram personagens de livros e
ao mesmo tempo em que estavam dentro estavam fora, isso remete ao Antigo
Egito, onde Hermes Trismegisto dizia que “tudo que esta dentro esta fora e
tudo que esta em cima esta embaixo.” (Fazendo um Rap com a frase.)
Narizinho entra em cena.
NARIZINHO – Ô seu Visconde você ta ai, o café da vovó tava uma delícia, mas
eu tive que comer correndo tudo porque eu tinha que encontrar aquela menina
por que... O seu Visconde você esta ai! Onde que você andava seu sabichão?
VISCONDE – Eu fui procurar o Saci Pererê que estava dentro da garrafa e
acabei caindo dentro do baú.
NARIZINHO – Quer dizer que você se perdeu dentro do baú, e aquela menina
por ali também se sumiu. Tudo isso só pode ser coisa do Saci. Será que aquele
danado fugiu e já ta aprontando por ai? E eu quero ver isso de perto e para
poder confirmar nesse baú eu vou entrar. (Entra no baú e fica entalada.) Seu
Visconde será que você pode me ajudar?
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VISCONDE – (Tentando ajudar) Eu não consigo você não deveria ter comido
tanto no café da vovó, deveria ter comido mais livros em vez de toda aquela
fartura. Não vá a lugar nenhum que eu já volto num zumm. (Visconde sai.)
NARIZINHO – E que lugar eu poderia ir se não consigo daqui sair. Nossa o que
temos aqui, o que será isso? Olha só, são as páginas de um livro. Será que eu
posso montar? Alguém poderia me ajudar? Não, não, tanta gente não, só você
e você. (Saindo do baú puxando uma folha que trás consigo outras diversas
folhas amarradas em um barbante. Monta o livro com duas crianças.)
NARIZINHO – Que legal! Vocês querem o livro de presente? Mas agora para
qual dos dois eu vou dar? Metade pra cada um? Não é melhor um só de vocês
levar, então para ganhar vão ter que disputar.
JOGO DA PETECA – Uma peteca antiga feita com palha de milho envolvendo
uma caixa de fósforos com areia e penas de galinha. Narizinho posiciona as
crianças fazendo algumas brincadeiras, inicia fazendo “pedra papel ou tesoura”
para saber quem começa com a peteca. O primeiro a deixar a peteca cair
perde a brincadeira, e o vencedor leva o livro.
NARIZINHO – A brincadeira é o seguinte, vamos jogar peteca, mas para saber
quem começa antes faremos "pedra papel ou tesoura”. Vocês sabem como
joga isso? Não vale roubar em! Estou de olho em vocês! (Se as crianças não
souberem a brincadeira, Narizinho explica, o ganhador começa com a peteca)
Agora sim podemos jogar peteca! (Termina entregando o prêmio para o
ganhador)
NARIZINHO – Muito bem ganhador você levou um livro, e você perdedor levou
meu abraço amigo. (As crianças voltam para seus lugares, Narizinho vai até o
baú) Nossa que baú mágico, tem de tudo até vara de pescar. Será que com ela
eu consigo um livro pegar? (Tenta pescar dentro do baú, mas não pega nada)
Iii acho que aqui não da é nada. Algo esta faltando, já sei! Vou por uma isca,
ainda bem que trouxe uma rosquinha do café da Vó Benta. (Coloca a isca.) TA
BELISCADO! TA BELISCANDO! PEGUEI! PEGUEI! (P2 morde a isca e sai de
dentro do baú. Narizinho assustada e imóvel)
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P2 – (Comendo e falando) Nossa você não sabe o que eu encontrei, mas
espere porque falar de boca cheia é falta de educação. Um mundo maravilhoso
onde tudo o que eu queria estava no alcance das minhas mãos. Eu dançava de
felicidade olhando para o céu e suas nuvens de livros, tudo era livro. Mas
espere, se eu bem me lembro enquanto eu descia alguém subia. Nossa era o
Visconde! Será que eu estive em Sabugosa? E ele é um personagem das
Reinações de Narizinho. Você acredita que eu encontrei um personagem do
meu livro favorito?
NARIZINHO – Pois além do Visconde e da Narizinho aqui, nessa história
também tinha um Saci que estava bem ali! (Vai até o baú) Aham ta aqui!
P2 – Um Saci preso na garrafa? Como conseguiram isso?
NARIZINHO – A gente pega uma peneira e joga... Ah isso não vem ao caso,
não importa.
P2 - Nossa, pobrezinho, preso ai dentro. Ele que é tão acostumado a viver ao
ar livre, cuidando da mata, castigando aqueles que prendem os passarinhos
nas gaiolas.
NARIZINHO – Guardião da natureza? Este ta mais pra fazer safadeza. Mas eu
vou verificar, se os rabos dos cavalos já estiverem desamarrados eu volto te
libertar. Ouviu Saci? Enquanto isso cuida bem dele, e não deixe ele escapar.
P2 – Ta bom. Vá num pé e volte no outro, não faça igual o Saci que num pé só
vem até aqui.
Narizinho sai.
SACI – O menina, me tira daqui menina, to muito apertado e eu to com uma
vontade de fuma meu cachimbo, mas aqui dentro não da se não com a fumaça
eu vo sufoca.
P2 – Eu não, eu prometi que ia cuidar pra que você não saia daí. A Narizinho
foi ver se o rabo dos cavalos já estiverem desamarrados ela volta pra te
libertar.
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SACI – Essa menina é uma malvada, onde já se viu me prender em um lugar
assim tão apertado, não tem nem cadeira pra sentar e eu aqui num pé só sem
poder fumar.
P2 – E que culpa eu tenho? Eu acho que ela até fez bem em te castigar, assim
você aprende a se comportar!
SACI – Comportar? Eu sou um ser do mato, me comporto do jeito que a mata
mandar.
P2 – Bem que agora eu gostaria de te libertar, mas eu prometi pra Narizinho te
vigiar.
Entra P1 escondendo o livro As Reinações de Narizinho, atrás de si.
P1 – (Vendo a garrafa) O que você tem ai?
P2 – Nada! (Escondendo a garrafa atrás de si)
P1 – Tem sim! (Tenta espiar, P2 se ocultando)
P2 – (Vê que P1 esconde algo) Ah, mas o que temos ai? (Tentando espiar, P1
se ocultando)
P1 – Nada!
(As duas dão de ombros e saem caminhando, com os objetos agora na sua
frente, em direções opostas. Voltam correndo ao lugar inicial e novamente
escondem os objetos atrás das costas.)
P1 – Vou te propor uma proposta!
P2 – Desde que não seja uma aposta porque eu só perco.
P1 – Não, é um negócio explícito.
P2 – Desde que não seja ilícito.
P1 – Aqui não tem nada ilícito. Tudo que eu faço é dentro da lei, agora você,
sei não, parece ter preso ai um anão.
P2 – Ade não.
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P1 – Viu, eu não disse?
P2 – Disse o que Berenice?
P1 – Chega de enrolação, mostra tua mão. (P2 mostra a mão vazia, segurando
a garrafa com a outra mão atrás das costas) Agora a outra. (P2 repete o
mesmo movimento trocando de mãos) Agora as duas juntas!
P2 – Você não manda em mim e vá comer capim. Eu não vou te mostrar o que
eu tenho aqui nem que você tenha um piriri, porque eu guardo bem o meu
Saci.
P1 – Um Saci! Vamos fechar logo esta proposta, você me da o que tem ai e eu
te dou o que tenho aqui.
P2 – Não sei, deixa eu pensar. O que você tem para trocar?
(P1 mostra o livro.)
P2 – Meu livro, o livro que eu queria tanto, tanto, tanto, tanto que agora não
quero mais.
P1 – Como não quer mais? É as Reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato,
uma edição de luxo!
P2 – Pouco importa! Agora eu estou dentro da história.
P1 – Como assim?
P2 – Sendo assim assado. Quem gosta muito de ler acaba entrando dentro do
mundo da literatura, ou dentro de um baú. Portanto em vez de comer tanta
porcaria pegue esse livro e trate de ler, que eu vou atrás da Narizinho ver se já
da pra libertar o Sacizinho. Enquanto isso cuida bem dele, e não deixe ele
escapar. (Repetindo os movimentos e a entonação que Narizinho usou ao dar
a mesma ordem. Entrega a garrafa e sai em seguida.)
P1 – E não deixa ele escapar que você vai ver, (remendando P2 , olhando para
o Saci) e agora eu tenho que esse livro ler! Coisa mais chata, esse livro é pra
criancinha. Eu vou é tratar de esse livro esconder (guardando o livro no baú) e
esse outro ler (retirando Felicidade Clandestina do baú), pois além de ter
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menos páginas é mais de acordo com a minha idade. A Felicidade Clandestina,
de Clarice Lispector. (Lê o conto e ao decorrer do enredo vai se emocionando
até chorar. Deixa o livro sobre o baú.)
Ela era gorda, baixa e sardenta, enquanto nós ainda éramos magrelas e
altas. Como se não bastasse ela enchia os dois bolsos da blusa com balas.
Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter:
um pai dono de livraria. Mas ela pouco aproveitava. No nosso aniversário, em
vez de pelo menos nos dar um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um
cartão-postal da loja do pai. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda
era pura vingança, chupando balas com barulho.
Comigo ela foi ainda mais cruel, mas como eu queria muito ler nem
percebia, eu implorava que me emprestasse os livros que ela não lia. Até que
um dia ela me contou que possuía o livro As Reinações de Narizinho, de
Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar
vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. Ela me disse que eu passasse na
casa dela no dia seguinte e então me emprestaria. No dia seguinte fui à sua
casa correndo. E Olhando bem para meus olhos, ela me disse que havia
emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para
buscar o livro. De boca aberta, sai devagar, mas ainda com esperança e logo
sai pulando pelas ruas como sempre.
E no dia seguinte lá estava eu, com sorriso e o coração batendo. Mas
ela me disse que o livro ainda não estava em suas mãos e eu teria que voltar
no outro dia. Fui embora, logo estava pulando pelas ruas. E assim continuou.
Eu ia todos os dias na casa dela, sem faltar um dia. Às vezes ela dizia: pois o
livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, então
emprestei a outra menina.
Até que um dia, quando estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e
silenciosa ela dizer que tinha emprestado a outra menina o livro, à mãe dela
apareceu. Pediu explicações a nós duas, até que essa mãe boa entendeu e
surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis
ler!
A mãe ficou horrorizada ao descobrir que a filha era tão perversa e disse
firme e calma para a menina: você vai emprestar o livro agora mesmo. E disse
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para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Isso
valia mais do que me dar o livro, ter ele pelo tempo que eu quisesse. Acho que
eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí
andando bem devagar. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não
tinha o livro, só para depois ter o susto de ter ele. Horas depois abri o livro, li
algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei
ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades
para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser
clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no
ar... havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem
tocá-lo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma menina que fazia parte da
história.
Entra Emília.
EMÍLIA – Oi, você viu a Narizinho por ai?
P1 – Não, ela não esta nessa história.
EMÍLIA – Nossa você ta chorando. Por quê?
P1 – Quem que ta chorando? Eu não to chorando! Foi um mosquitinho que
entrou no meu olho.
EMÍLIA – Será que foi o mosquitinho do Rabicó? (Copia os modos do Rabicó)
“Mosquitinho tão bonitinho não venha aqui me atormentar, zumbe, zumbe,
zummm, fora daqui, vai zumbir em outro lugar.”
P1 – Ah por falar em outro lugar (levando o Saci) eu tenho que ir, porque agora
eu descobri o que tem de tão precioso nos livros. É isso! (como se tivesse
descoberto algo) Meu pai guarda um tesouro lá em casa, em prateleiras e mais
prateleiras, livros saborosos! E eu quero devorar um atrás do outro. (Sai de
cena)
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EMÍLIA – (Parada olhando) Um livro atrás do outro? Tipo sanduíche? Eu
também quero!!! (Vê o livro Reinações de Narizinho sobre o baú) Vixiiii! O que
temos aqui? Um livro saboroso... Vamos ver se você é mesmo assim tão
delicioso. (Morde o livro) Eca! (Cuspindo e limpando a boca) Acho que o sabor
esta em ler e não em comer. Olha só é o livro Facilidade Intestina, não, não, F-
E-L-I-C-I-D-A-D-E C-L-A-N-D-E-S-T-I-N-A, espero que o Visconde não tenha
escutado isso, porque a Narizinho já até me corrigiu. Será que o Saci já foi
libertado pra esse livro aqui na minha mão ter chegado? Bem que a Narizinho
podia estar aqui agora pra esclarecer isso!
NARIZINHO – Esclarecer o que dona Emília?
EMÍLIA – Esclarecer sobre a claridade Clandestina da Clarice.
NARIZINHO – Do que você esta falando minha bonequinha de pano com
cérebro de fio embolado?
EMÍLIA – To falando se o Saci já foi libertado?!
NARIZINHO – Ahh, mas é bem isso que eu ia te contar. Estava eu olhando se
os rabos dos cavalos já estavam desamarrados (fazendo gestos com as mãos
de como seria os rabos dos cavalos desamarrados) quando... Você conhece
uma menina alta magra com pernas de saracura?
EMÍLIA – Nunca nem vi!
NARIZINHO – Então, essa mesmo. Quando olhei para o lado ela estava
fazendo a mesma coisa que eu; conferindo se os rabos dos cavalos já estavam
desamarrados (fazendo gestos com as mãos de como seria os rabos dos
cavalos desamarrados), quando... Você conhece uma menina meio cheinha,
sardenta e rabugenta?
EMÍLIA – Essa eu já vi! Mas não era rabugenta.
NARIZINHO – Então, essa mesmo. Ela veio vindo, veio vindo, veio vindo e de
repente puft, tropicou numa pedra e a garrafa se espatifou em mil pedacinhos,
e o Saci saiu livrinho, livrinho. A menina foi tentar pegar o Saci que estava
fazendo redemoinho e saiu se arrodiando, arrodiando, arrodiando, então a
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magrinha perninha de saracura foi tentar ajudar, mas levianinha daquele jeito
só não saiu voando porque saiu com eles se arrodiando, arrodiando,
arrodiando.
EMÍLIA – Pare de se arrodiar que eu nem sei de que lado você tá!
NARIZINHO – Nisso do meio da roça saiu o Visconde falando suas palavras
difíceis, ele tentou ajudar, mas tudo que conseguiu, além de resmungar, foi sair
se arrodiando, arrodiando, arrodiando.
EMÍLIA – (Tenta falar, mas Narizinho interrompe) Conte...
NARIZINHO – Mas (erguendo a mão) ai surgiu o Rabicó!
EMÍLIA – Já sei, já sei, e ele saiu se arrodiando, arrodiando, arrodiando.
NARIZINHO – Não, pesado daquele jeito ele fez um grande feito! Parou o
redemoinho.
EMÍLIA – Ah que pena agora que eu estava gostando de me arrodiar.
NARIZINHO – (Percebe que Emília esta segurando o livro Felicidade
Clandestina) Olha só! Você encontrou o livro da Clarice Lispector!
EMÍLIA – Se a dona é a Clarice eu não sei, mas eu queria tanto ler...
NARIZINHO – Sabe minha querida, amadinha, lindinha, Emília, veja só quanta
coisa vivemos tudo graças a um livro! Com as histórias nós aprendemos o
quanto é bom ter amigos, compartilhar aventuras, comer comidas saudáveis
haha, e principalmente que com a nossa imaginação podemos criar tudo. E eu
descobri que sem você a minha história não teria graça nenhumazinha, pra
falar a verdade eu não sei se nesse livro tem uma bonequinha de pano, mas se
não tiver eu escreverei a nossa história!
EMÍLIA – Só tem um jeito de descobrir! Vamos ler juntas e embarcar em uma
nova aventura?
NARIZINHO – Só se for agora!
FIM
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