Homenagem para George A. Romero
É um som seco, alto, não importa a onde você esteja, sempre é alto. Meu ouvido ficou zumbindo depois que ela disparou do meu lado. Sua mão firme não tremeu, não vacilou, nem sentiu pena. Foi o mais rápido e benevolente possível.
Não tive tempo para olhar nosso pai jogado no chão, eles parecem lentos, mas nunca é como nós imaginamos. Senti ela puxar meu pulso com força, não havia tempo, enquanto corria eu ouvi o som da carne sendo mastigada. Não fique triste, em mim só havia a vontade de sobreviver.
Ainda era noite quando deixamos o velho sótão de madeira de nossa avó, não vou sentir falta daquele cheiro de mofo que marcou minha infância. Por mais que tentasse lembrar de tudo de bom e feliz por que passei naquela casa, a única imagem que vinha em minha mente era a do corpo de meu pai.
No inicio pensei que tudo acabaria rápido, do mesmo jeito que começou, ninguém sabia de nada, nem o governo, a mídia ou os médicos. Nada podia ser feito.
Em cada cidade, em cada lugar que eu e minha irmã íamos eles estavam lá, com seus passos cambaleantes, gemendo bizarramente ao menor som, fingindo serem humanos.
Quatro dias depois que vi o primeiro as tv’s pararam, nenhuma programação ia ao ar. Às vezes o radio dava sinal de vida, mas chamava muita atenção, eles ouvem longe.
A primeira vez que paramos para descansar de verdade foi quando avistamos um pequeno barco na região dos lagos, ele estava fundo o suficiente para nossa segurança e tinha espaço suficiente para nós dois.
- Dormiu bem?
- Dormi sim... Acho que sim. Não sei se consigo dormir bem com tudo isso que tá acontecendo.
- Eu sei, mas logo deve passar não é?
- É. Você acha que a mamãe?
- Não, logo a gente encontra ela, lembra, ela foi viajar, não deve ter acontecido nada lá.
- Nunca pensei que fosse gostar tanto de ela ter ido esquiar.
- Toma. – Ainda lembro dela me passando aquele sanduíche, seu olhar vago e pensamento distante, a velha colt do nosso avô presa na cintura, apoiada pelo cinto.
- Brigado mana.
- A gente vai ter que ir em algum lugar pegar comida, a minha mochila já ta vazia.
- Não tinha umas casas próximas daqui?
- Tem sim...
- Então?
- É o jeito, mas deixa que eu vo, tu fica aqui.
- Tem certeza?
- Tenho, não quero que você veja nada que não precise.
Não demoro muito pra ela chegar à margem no pequeno bote, e logo não vi mais o carro. Cada segundo depois disso foi uma agonia, em minha mente mil cenas horríveis me bombardeavam a cada momento. Meus olhos vagavam pelo horizonte, sem parar. A noite foi aos poucos chegando, a fome me alcançou não mais rápido que o medo ou a agonia, mas com certeza foi a que me atingiu mais forte. Não vinha comendo direito há dias, tudo tinha que ser feito as pressas, a comida era sempre empurrada para dentro sem piedade. Por fim meus olhos pesaram e o sono me venceu, adormeci sobre o chão úmido e o céu estrelado.
Meu despertar aquele dia não foi sutil, minha irmã havia subido no barco tão silenciosamente que não tinha como eu notar, talvez fosse o sono, também não vinha dormindo direito.
Ela estava pálida, seu olhar mais vago do que antes, suas roupas estavam completamente sujas, uma mistura nojenta de sangue e vomito, mas felizmente ela não havia se machucado. Minha irmã nunca falou o que houve naquele dia, eu nunca quis perguntar também, tenho certeza que é melhor assim.
Sua mochila agora estava cheia, o carro também, tínhamos comida e água para muitos dias.
- E amanhã? Pegamos o carro e continuamos até onde a mãe está?
- Não, o tanque está quase vazio, acho que consigo tirar a gente desse lago com isso.
- Acha que consegue?
- Acho que sim, no momento é o melhor que a gente faz.
Dormi naquela noite com o mesmo medo das anteriores, não sabia o que aconteceria, então a abracei e adormeci.