Os Últimos Dias - Ato VII - Embate na Cidade Baixa

A rua indicada pelo homem de semblante sinistro no Templo de Othen era uma das vias principais da cidade de Narun, levando desde o fosso ao oeste até a praça comercial. Apesar de todas as casas serem numeradas e registradas pelo exército, Hector levou um tempo considerável até encontrar a casa de numero seis. Era uma residência simples de pedra e madeira coberta por pequenas telhas de barro cozido. A fumaça subia pela chaminé rodopiando ao sabor do vento, e o odor de broas recém assadas dava um clima ainda mais caseiro ao lugar. Por um momento, Taylor sentiu uma pontada de inveja. Aquela era uma moradia muito mais confortável do que sua residência de soldado montanha acima.

Ao bater à porta de madeira grossa, pôde ouvir algumas risadas ecoando pela pequena janela entreaberta por onde um par de cortinas brancas esvoaçavam ao sabor da brisa. Tornando a bater, agora com mais força e ainda não obtendo resposta, Hector não resistiu em espiar o interior da casa, e deu de cara com um outro soldado vestindo trajes prateados fazendo o mesmo movimento. Lembrou-se dele quase que imediatamente, mais devido ao inesperado reencontro do que por qualquer outro motivo. Era o capitão da guarda que prendera Durio na véspera.

- O que foi? Perguntou o homem.

Agora Hector o analisava mais atentamente, deixando a primeira impressão de oficial de comando de lado por alguns instantes. Era um homem austero, aparentando meia idade com barbas fartas e cabelo bem cuidado, já pontilhado de fios brancos principalmente nas têmporas. De madeira rude, afastou-se da janela e abriu a porta num único rompante.

- Bom dia, capitão Eu poderia conversar com a viúva de Ivan?

- Samara está ocupada agora. - desconversou o oficial terminando a conversa e batendo a porta ruidosamente na cara de Hector.

- E quando posso encontrá-la a disposição? Perguntou o guerreiro para a porta fechada.

- Não sei. – respondeu a voz firme do oficial já um pouco distante da porta, afastando-se em direção ao interior da residência. - Ela acabou de enterrar o marido e não está com a mínima vontade para receber visitas, muito menos de um desconhecido.

- Entendo. Voltarei mais tarde então.

- Ótimo.

Por alguns instantes Hector continuou ali de pé com o rosto próximo à porta. Poderia estar pensando no que fazer ou dizer, ou simplesmente ainda não havia entendido o que havia ocorrido. O que quer que fosse, permitiu que ele ficasse lá tempo o suficiente para ouvir uma voz de mulher dentro da casa. Resolveu por fim tornar a espiar através da janela. E então a viu.

- Quem era? – perguntou Samara pouco antes de notar Hector visivelmente prostrado através da janela. Os trajes de soldado fizeram com que ela se calasse quase que imediatamente, mudando sua expressão alegre que trouxe do quarto de dormir para um misto de surpresa e medo.

- Samara? Eu poderia conversar com você? - perguntou Hector, fitando-a com um olhar curioso e reprovador.

- Claro - respondeu ela desajeitada, arrumando os cabelos longos atrás das orelhas - Entre, pode entrar.

- Samara! o que você pensa que está fazendo? exclamou o oficial, furioso, mas ela voltou-se em direção ao companheiro, sem nada dizer. Restringiu-se a devolver a ele um olhar frio. Ela conhecia aquele soldado, o havia visto um dia antes na taverna. E sabia que sua mente era mais confusa do que toda aquela história em que se metera.

- Obrigado - agradeceu Hector passando pela soleira da porta e parando de pé ao lado de um banco rústico.

A casa não apresentava nenhum luxo. Algumas pinhas ajeitadas em forma de arranjo sobre a mesa de tábuas grossas eram a única decoração aparente, e dois bancos completavam toda a mobília que preenchia o pequeno cômodo. As cortinas ainda esvoaçavam com a brisa, e o cheiro bom de broas agora era tão convidativo que lembrou a Hector de que ele não comera nada desde a noite anterior.

- Sente-se - ofereceu Samara com um sorriso forçado - Fique a vontade.

- Nós poderíamos conversar a sós?

- Isso é ridículo soldado, eu não vou...

- Claro - interrompeu a moça para o visível desagrado daquele homem - Claro. Querido, poderia nos dar um segundo?

Os olhares de ambos se encontraram novamente, e então ele assentiu e se foi em direção do quarto. Temia pelo que a mulher pudesse fazer ou dizer, mas sabia que naquele momento não possuía outra escolha a não ser confiar em Samara, ou na tolice por trás daqueles olhos azuis e intrometidos que surgiram para assombrar um dia que tinha tudo para ser perfeito.

- Ele é seu irmão?

Aquela pergunta de Taylor foi tão cheia de ingenuidade que Samara não conseguiu disfarçar o alivio que sentiu. O peso da culpa saiu de seus ombros. Ela tinha apostado pesado naquele instante, apostado de que a distração do soldado não fosse apenas um joguete com ela na taverna. Apostou que ele realmente era um idiota completo, e aparentemente havia acertado.

- Sim, é meu irmão, Uri. Não sei o que seria de mim sem o apoio dele nesta hora tão dificil.

- Foi um choque para todos nós. - comentou o soldado desinteressado.

- Nunca pensei que ele fosse morrer daquela forma, em meus braços.

- E como achou que ele morreria?

O tom de voz ausente que acompanhou a pergunta de Hector atingiu Samara como um soco. Uma lágrima correu pelo rosto dela, e ele acreditou por um breve instante que estava sendo duro demais para com a mulher. Então o teatro de bonecos lhe voltou a mente, trazendo novamente a certeza para seus atos. Ela já havia chorado antes.

- Perdoe minha pergunta Samanta...

- É Samara - corrigiu a viúva.

- Não entendi.

- Meu nome. É Samara. Não Samanta.

- Perdão Samara. O que eu estava dizendo mesmo?

- Você insinuou que eu passava meu tempo pensando de que maneira iria perder meu marido, meu caro senhor. E peço que já que sua visita aparentemente tem o único objetivo de me trazer dor e tripudiar de meus sentimentos, que parta agora antes que eu chame a milícia.

- Na verdade meus objetivos aqui são outros Samanta. Pois não foi um taverneiro vingativo que vi naquela taverna ontem. Foi uma mulher desgostosa e desesperada Ele por acaso lhe batia? Por isso resolveu dar o troco?

- Não! - negou Samara chocada. As cartas haviam sido descobertas sobre a mesa, mas ela não tinha mais condições de continuar com aquele teatro. Não lhe restavam mais forças, exaurida como estava após tantos momentos conturbados, e num único impulso, confessou chorando.

- Ele nunca foi violento. Só que eu não o suportava mais. O seu jeito, a sua voz, o seu cheiro. Tudo me dava náuseas. Eu lhe disse isso, pedi que ele partisse e me deixasse, mas ele se negou. Eu o humilhei de todas as formas, lhe ignorei e o traí, e mesmo assim ele me perdoou. Ele não queria me perder, não importando o que eu fizesse. Eu seria dele até o fim, e isso estava me deixando louca. Louca! Eu não o amava, nunca o amei. Mas ele era possessivo. Ele achava que eu era uma coisa dele. Era posse e não amor o que ele sentia.

Hector sentiu-se de certa forma sensibilizado pelo sofrimento daquela mulher. Era só uma menina frágil diante dele agora. Uma menina chorosa que não entendia bem o que havia feito. Ergueu-se do pequeno banco para confortá-la, e este gesto que lhe salvou a vida. Um segundo após, a espada de Uri destruiu o pequeno banco com um poderoso golpe. O som do metal contra a madeira assustou tremendamente o soldado, que num rompante lançou-se para trás de Samara, usando o corpo da jovem como escudo.

- O que...

- Está acontecendo Hector? - ironizou Uri, o oficial responsável pela acusação contra Dúrio - Está acontecendo o óbvio. Você agora sabe demais, e terei que por fim a isso tudo. Felizmente, não será difícil provar que após matar Ivan, o soldado ciumento resolveu terminar o serviço, dando fim a vida também da prostituta que sustentava sem saber ser casada com um companheiro de armas.

Aquelas palavras sujas foram compreendidas por ambos, e um sentimento de ódio puro brotou dos corações de Hector e Samara. Ódio diante da corrupção podre daquele homem que ostentava títulos de grandeza, mas não passava de um rato. A mulher fez uma breve menção de protestar contra a falta de humanidade daquele que ela teve como amante, e que pouco antes lhe jurara amor eterno. Mas a resposta de Uri veio antes. De forma rápida e letal.

Avançando em um único rompante veloz através da pequena sala, e com uma estocada precisa, perfurou o soldado profundamente na altura do ombro esquerdo, através da mulher. O peito dela se esvaiu em sangue, e seus olhos agora estavam tomados do mais repleto pavor. Não era apenas medo, ou surpresa. Era decepção. Teve uma vida medíocre, sem nunca ser realmente amada, e agora caia prostrada diante do algoz que acobertara sob os lençóis por tanto tempo.

- Você atingiu um novo patamar de vilania, Uri - rosnou Hector serrando os dentes em fúria. A resposta do oficial não chegou com palavras, mas sim com uma nova sequencia de golpes que se sucediam, um após o outro. O som do metal batendo um de encontro ao outro ecoava pela casa, e ganhava as ruas. Apesar do intelecto ineficaz e da fala lenta , Hector era um exímio guerreiro. Utilizando uma espada de lâmina dupla, conseguiu se defender de todos os ataques que recebera, e com um golpe certeiro, desarmar seu oponente; não sem levar junto com a espada metade de sua mão.

- Esta luta já me custou muito caro. - murmurou Uri, o corpo latejando pela dor do membro decepado - Irei relatar sua conduta e seus crimes Hector. E você irá pagar até o fim de seus dias no Fosso por ter ousado erguer armas contra um oficial superior. E não será seu pai que irá livrar sua cara.

- Você deveria ter vergonha de julgar a conduta de meu pai traidor. - foi a resposta de Hector - Não pense que sua posição ou cargos irão salvar seu pescoço de ser condenado ao buraco. Farei questão de assistir aos orcs devorando sua carne!

Ante a nova ameaça e com a mão hábil inválida, só restava a Uri fugir. Virou-se rapidamente buscando a porta, mas Hector foi mais ágil. Pegou em suas mãos o pequeno banco de madeira e avançou em direção do inimigo, atingindo-o no meio das costas com força. Uri perdeu o equilíbrio chocando-se contra a parede, destruindo o rosto na pedra. Perdeu os sentidos no mesmo instante.

No chão, Samara permanecia inerte, o sangue quente manchando o vestido branco e os cabelos espalhados, aparentando estar em um sono que, Hector tinha certeza, seria eterno. Jogando Uri sobre as costas e ignorando o ferimento profundo no ombro, saiu pela porta do casebre. Inspirando com pesar, apreciou o mesmo odor convidativo de broas que sentira quando chegou. Desta vez, entretanto, os seus sentimentos eram completamente opostos aos que lhe acompanharam na chegada. Pesaroso, Hector partiu em direção a Praça do Julgamento.

Chegara a hora de fazer justiça.

Armageddon
Enviado por Armageddon em 14/07/2008
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