Confissões de um magistrado

Confissões de um magistrado

Confessou-me que sendo menino ainda, teve em sua vida um grande sonho o qual um dia se tornou realidade. Nada para ele tinha mais valor do que ser dono de um cãozinho. Podia ser pequeno, mas que fosse só seu.

Era um dia como tantos outros, acordou com o barulho da fazenda. O canto suave dos pássaros que se aglomeravam no grande pé de Kiri, com seus quinze metros de altura. Ali, os sabiás – laranjeiras faziam seus ninhos de tigela e bicavam as cápsulas ovóides e lenhosas. Quando ouvia grande algazarra, chegava-se à janela e podia ver que se tratava de alguma cobra-cipó que subia pelas cascas descoladas do possante Kiri.

Deixou o confortável leito que abrigava seu corpo de homenzinho e seus sonhos coloridos. Estendeu a colcha de retalhos e foi tomar o café que a mãe preparava com esmero. A taça de chocolate que às vezes repetia e o pão quentinho com manteiga, batida na tigela.

Depois veio o melhor momento, aquele que até hoje guarda na lembrança. Terminara de empinar o último gole do chocolate quando ouviu a mãe chamá-lo tão alto que correu até o alpendre, quase pisando no bichano e perdendo seus chinelinhos.

Toda aquela agitação fora porque o pai chegava a cavalo, carregando uma caixa, com certo esforço, como a cuidar do que vinha dentro.

Imagine que a mãe conhecedora do deu sonho, sentiu uma enorme emoção quando viu o pai chegando com aquele cãozinho, que hoje se sabe, não existe e nunca vai existir nenhum igual no mundo.

Ela, hoje velhinha, confessou-nos depois, que o pai fizera segredo até para ela que só ficara sabendo na véspera dos oito anos do filho. A idade mais bonita de um menino de fazenda.

Depois daquele dia, a vida nunca mais foi a mesma. Foi tão feliz, que ainda hoje, homem feito, não consegue descrever a emoção que sentia. Quando acordava pela manhã, o cãozinho já estava a lhe esperar para as brincadeiras no pátio.

A casa da fazenda era grande e confortável. O pai campereava e a mãe cuidava da casa, preparando tachos de marmelada e figos verdes cozidos na calda, e outras tantas coisas gostosas que todos os meninos das fazendas gaúchas provaram.

Hoje ele sabe o quanto era feliz. Lia e ouvia muitas histórias bonitas, de personagens vencedores que guarda até hoje entre os inúmeros livros de teoria e normas jurídicas. Esses personagens também tinham um cão, um papagaio ou outro animal qualquer. Mas o que não sabia é que ele e seu cão eram os grandes heróis e que a história, versada na fazenda dos pais, era a mais bonita de todas.

Cusco, assim o chamou, foi o seu melhor amigo, o seu companheiro e, às vezes, quando algo acontecia e não queria dizer ao pai ele era o seu confidente. Sabia escutar, rosnava baixinho, olhando-o nos olhos e depois deitava sua cabecinha no pequeno colo de menino.

Passou a acordar mais cedo para cuidá-lo e para que não saísse a camperear com o pai, ao lado do cavalo zaino. Morria de medo que ele fosse machucado e seu coração só se aquietava quando o via deitado na varanda ou perto do fogão à lenha.

As bolinhas de gude eram seu brinquedo preferido. Adorava jogar longe, um osso de canela de boi, só para vê-lo buscar na boca., correndo com tanta velocidade que suas orelhinhas pareciam abanar ao vento.

No fundo do campo havia um recanto só de árvores nativas. Quando era tempo de frutas, o lugar era um encanto.

Fugia com Cusco, nas tardes ensolaradas ou no frescor das manhãs enquanto o pai e os agregados cuidavam do gado.

Nesses dias, Cusco deitava-se à sombra dos pés de araçás e ele, munido de uma vara de bambu, batia nos ramos e o chão cobria-se das frutas maduras, amarelas e doces. Voltava p’ra casa, carregando as frutinhas e sentava-se na escada da varanda para saborear.

A mãe parecia não se preocupar, o mato ficava perto. Prevenia-o das cobras, confiando-o aos cuidados de Cusco.

Um dia, construiu no recanto, uma casinha de madeira. Com a ajuda do pai, é bem verdade. Com madeira nova, pregos e martelo construiram a morada, com telhas de zinco novinhas e um dos homens da fazenda, colocou-a firmemente, no alto de uma figueira mata-pau , das mais frondosas, cujos ramos enchiam-se de figos. Subindo pela escadinha, trançada de vime, ele e Cusco ficavam lá em cima a comer os araçás e as pitangas que carregava para o alto numa latinha. Como era gostoso! Colocou um peleguinho à porta da casa para Cusco tirar suas sonecas. Nas tardes de chuva, os ramos da figueira, diminuíam o impacto da água e quando caía nas folhas de zinco era uma sinfonia agradável, que embalava e fazia com que dormisse junto de Cusco.

A mãe preparava um lanche que levava para a casinha da figueira. Sentia-se um herói, adentrando a floresta, a espreita de algum animal selvagem e imaginava enfrentá-lo, com a sua lança e o seu valente Cusco.

No forte do verão, descia da casinha e ia banhar-se nas águas que corriam fresquinhas pelo perau, molhando as imensas raízes da figueira mata-pau que desciam pela barranca do rio.

Durante o inverno, não habitava a casinha, mas tinha-a protegida com ramadas e folhas de zinco para que no verão, estivesse ainda novinha.

Mas numa fria manhã de inverno, quando os campos branqueavam de geada, Cusco não veio deitar-se perto do fogão à lenha. Todos estranharam sua ausência. Encontraram Cusco doente.

Não faltaram esforços. O pai mandou buscar remédios, a mãe ( que hoje ainda lembra) agasalhou-o próximo ao fogão e ali ficaram junto dele a querer amenizar seu sofrimento.Dormiu um longo tempo e depois abriu os olhinhos e olhou o menino, como a pedir desculpas por ter de partir.

Aquela manhã gelada foi a mais triste da sua infância. A fazenda perdeu a alegria e o encanto de antes.

O pai colocou Cusco numa cova funda sob a figueira mata-pau onde ficava a casinha.

Ficaram as lembranças: o osso de canela de boi, as bolinhas de gude, a casinha da árvore e o pelego... E, lá ficou também o coração do menino da fazenda que nunca mais foi o mesmo...

Pouco tempo depois, foi afastado da fazenda para “formar-se um homem” como dizia seu pai. Voltou muitos anos depois, magistrado, ocupado com imenso volume de trabalhos. Quando chegou na fazenda, a primeira coisa que fez foi dirigir-se ao recanto dos araçás e teve a certeza que o homem que ali estava, era ainda o menino da fazenda, com a sua meninice pulsante.

A sua formação profissional passara antes por valores transcendentes. Os valores culturais e humanos, daquele menino da fazenda que brincava na casinha da figueira mata-pau e lia seus livros de histórias, cujos personagens eram rememorados incontáveis vezes.

Até hoje tem saudades do menino da fazenda e da companhia de Cusco.

Ali, fora estabelecida a verdadeira dimensão humana daquele jurista.

Ao jurista M. J. C. L e a sua mãe dona Miréla, que ainda mantêm os hábitos e costumes das moradoras das fazendas gaúchas: servindo mate em casca de laranjas.

Eliza Fernandes
Enviado por Eliza Fernandes em 25/02/2006
Código do texto: T115900