Mundo Azul

Ele estava cansado, em sua camisa várias manchas de suor, parecia o inferno lá fora. Seus passos gordos eram suavizados pelo carpete macio. Jogou a maleta em um dos cantos e afrouxou sua gravata com grande alívio. Sua garganta já seca pedia algo gelado, foi até a geladeira, pegou uma lata de cerveja, grandes goles fizeram com que a latinha não durasse nem um minuto.

Latinha, lixo.

O sofá gemeu quando sentiu o homem se jogar sobre ele sem pena. Enfim podia relaxar, ligou a tevê em busca de algo que o distraísse, talvez um filme bobo, ou um desenho como os que via em seus dias de infância. Quando parou de mexer no controle remoto sentiu uma corrente de ar gelado que fez todos os pelos do seu corpo arrepiarem de imediato. Olhou para trás, talvez tivesse deixado a geladeira aberta, mas não era isso.

O calor sufocante tomou conta da sala novamente, com certeza foi somente a ilusão de uma mente desesperada. Passava Bob Esponja na tevê, o homem ria timidamente a cada besteira que via, principalmente quando pegou fogo em baixo d’água, era tão absurdo quanto engraçado. Mas o cansaço venceu, era maior que qualquer coisa, e aos poucos seus olhos foram pesando e pesando, até que por fim seus roncos ecoavam por todo o apartamento.

Acorda.

Abriu os olhos em grande espanto, o corpo doía demais, a soneca não havia sido das melhores. Começou a se levantar, algo estava errado, levantava do chão. Olhou em volta, pensou, olhou novamente, até que por fim sentou sobre o carpete, tudo parecia normal, só não entendia o motivo de estar deitado ali no chão, afinal, sua cama era tão perto, devia estar cansado mesmo. O dia havia sido longo e o calor o açoitava cruelmente, pensou no aquecimento global, era difícil questionar algo assim num dia como esse.

Voltou à geladeira, mais uma latinha de cerveja se esvaziou em pouco tempo. Só havia mais uma guardada, se o dia continuasse assim teria que comprar mais...

Não passava mais Bob Esponja na tevê, a tela havia mergulhado no azul profundo da perda de sinal. Pegou o controle novamente e recomeçou a mudar de canal, mas nenhum parecia estar no ar. Então sem muitas opções desligou a tevê e seguiu para o rádio, um pouco de música faria bem. Sem pressa sintonizou numa estação que relembrava velhos sucessos, os sons do momento não lhe agradavam aos ouvidos.

O calor havia dado uma trégua, é verdade, já havia passado das quatro horas, mas à tarde ainda era sufocante. Novamente a velha geladeira, só de abrir sua porta já sentia o alívio do ar gelado que se esparramava para fora. Parado ainda com a porta aberta pegou a última lata de cerveja e tomou tudo, ainda mais depressa do que as outras. Depois de saciada a sede resolve tomar um banho, seu corpo ainda estava todo grudento e sua roupa fedia a suor.

Assim que entrou no banheiro sentiu novamente aquela corrente de ar gelada arrepiar todo seu corpo, “da onde ela vinha?” pensou curioso, tinha que saber, num dia tão quente como hoje um ventinho gelado desses era mais que perfeito e não podia ser ignorado. Saiu do banheiro, entrou mais uma vez, olhou para os lados, abriu e fechou a porta várias vezes, nada parecia recriar a brisa gélida, então por fim foi tomar seu banho.

Ficou horas parado deixando a água fria murchar seu corpo, já estava bem relaxado, mas não queria sair tão cedo dali, porém sentiu falta de algo, a música do rádio parecia ter parado de tocar. Será que acabou a energia? Deixou o banheiro apenas com uma toalha enrolada em sua larga cintura e foi para a sala, lá tudo parecia normal, as grandes janelas abertas mostravam a paisagem lá fora, tão bela, alguns prédios e casas salpicavam o verde, construções de aparência antiga e no geral abandonadas, alguns já estavam inclusive tomados pela mata.

Ficou ali parado olhando a vista com mais atenção, tudo naquela imagem lhe passava uma sensação de perda, de incompleta, como se faltasse algo, mas não sabia explicar o real motivo disso. Desistindo da janela foi para seu quarto antes que algum vizinho o visse daquele jeito, vestiu um short, uma camisa florida leve e um par de sandálias.

A noite começava a dar as caras no céu o manchando-o com vários tons de roxo, vermelho e laranja. Algumas estrelas já cintilavam devido à ausência da Lua. As nuvens eram escassas, o que era perfeito para se observar o pôr do sol e as estrelas. Então se preparando para mais tarde, pegou seu velho telescópio do tempo da faculdade, o limpou e o deixou pronto para ser utilizado sobre uma mesa em sua varanda. Puxou uma cadeira, sentou com calma e ficou ali olhando os astros enquanto a noite chegava. Ficou imaginando cada estrela, como elas seriam? Antigamente se acreditava que cada astro era um furinho bem pequeno no manto celeste.

Como seria?

Desceu seus olhos para as sandálias, balançou seus pés, até que por fim ficou descalço. Voltou a ficar de pé, lentamente começa flexionar os joelhos como quem se prepara para dar um pulo, suas mãos vão para frente e para trás, e cada vez mais rápido, até que por fim dá um grande impulso e começa a subir, subir, indo rapidamente em direção á uma das estrelas.

O vento morno passa pelo seu corpo quase que o abraçando, sua casa já estava bem pequena lá em baixo, dali de cima já podia ver o mar e tudo mais que pudesse imaginar, mas mesmo observando toda essa beleza a única coisa que passava por sua cabeça foi que fez bem em deixar suas sandálias lá em baixo, pois elas provavelmente cairiam em algum lugar, ou mesmo em alguém.

Por um instante tudo escureceu, nesse momento seu coração parou. Voltou a olhar para baixo, já não via mais sua casa, tudo que conseguia enxergar era uma bola azul bem longe... Uma luz, voltou a olhar para frente, não muito longe uma grande janela aberta ofuscava levemente sua visão, ia em direção a ela, era a estrela que buscava.

Entrou pela janela e caiu devagar sobre o “chão” branco, olhou em volta, lá não tinha nenhum horizonte que pudesse reconhecer, nem sabia ao certo onde estava pisando. Deu alguns passos ao esmo, não havia nada ali, até mesmo a janela por onde entrou havia sumido. Nenhum som, nenhum cheiro, nenhuma sombra só o branco.

Andou, andou, andou, pelo menos achava que estava andando, não sentia realmente que se movia, tudo parecia tão branco. Cansado sentou-se no “chão”, era confortável, mas algo no seu bolso o pinicava, uma caneta. Não era uma simples caneta, mas deveria ser, afinal, foi bem barato comprá-la, a coitada não deveria durar nem um ano, mas estava ali, pronta para o dever há cinco anos.

Pegou a Bic e começou a desenhar nuvens a sua volta, fofas e redondas, não... Só se fosse um Picasso. Ao final de cada traço, assim que sua caneta parava de riscar cada linha, as nuvens feitas saiam do “branco” e ganhavam vida, vagando pela imensidão de nada ao ritmo da respiração de seu criador.

Tudo pareceu natural, as nuvens, os pássaros e mesmo os palitos que jurava serem pessoas, todos feitos com poucos riscos. E não espantava ao homem que cada um deles saísse andando para todos os lados fingindo estarem vivos.

O tempo foi passando, e passando, anos? Séculos? Quem sabe, quem via? Os desenhos continuaram, sua mão foi dominando a técnica, as curvas foram se aperfeiçoando, até que no fim a única diferença entre o sonhador e suas criações era o tom azulado inevitável da Bic.

Cada personagem criado era diferente, singular, vivo, com o tempo casas foram construídas, carros e estradas, uma vida surgiu, o mundo floresceu, autônomo, não precisando mais de seus criador, que inevitavelmente sumiu nos moldes do esquecimento.