O Mundo de Bilico

Para contar essa história, primeiro preciso me apresentar. Meu nome é Bilico e quando era pequena gostava de fazer muitas coisas como qualquer criança gosta de fazer, mas tinha uma que as crianças de hoje não conhecem ou nunca experimentaram. Em minha opinião, é uma delícia. Quer saber qual é? Equilibrar uma lata cheia d’água na cabeça, sem ¨rudia¨(uma pano enrolado para não doer a cabeça ou então para equilibrar melhor), mas a pessoa que tinha bom equilíbrio não precisava de rudia, colocava a lata direto na cabeça e pronto, andava e nem se preocupava.

De tanto observar e tentar fazer o que as outras mulheres faziam, eu conseguia manter a lata cheia d’água e claro sem derrubar o precioso liquido, que todos os dias buscávamos a uma distância daquelas. Íamos todos juntos: Crianças e adultos, num ritmo só, e enquanto caminhávamos as notícias eram colocadas em dia. Depois que chegavam do trabalho, era a vez dos maridos. Não tinham medo da Mula-sem-Cabeça, nem do Lobizomem, nem na Maria Folôzinha, nem das ¨Coisas-Ruins¨ que apareciam lá para os lados da Bica.

Não sabíamos das notícias de jornal, nem de televisão, pois nessa comunidade poucas pessoas tinham contato com livros, por não saber ler ou por não ser tão acessível os livros como hoje são. Não tínhamos TV, pois não havia luz elétrica. Se tivéssemos alguma tarefa da escola, fazíamos de dia, pois não podíamos gastar o querosene, que era utilizado exclusivamente para colocar no candeeiro para clarear dentro de casa até a hora de dormir, que geralmente era às vinte horas. A claridade era pouca e só havia um candeeiro na casa e ele ficava onde a dona da casa estivesse. O momento máximo daquela comunidade era que por volta das 18 horas, todos iam para frente de casa, ¨palestrar¨, sob a luz da lua e o piscar das estrelas as crianças brincavam e os adultos conversavam.

Notícia só na Hora do Brasil ou então no Bandeira Dois que eram Programas populares na época, onde as pessoas com um rádio de pilha ouviam os últimos acontecimentos. Todos ficavam em silêncio. Era a hora de ¨saber das coisas¨. Um programa passava a noite e o outro pela manhã.E, quando os vizinhos se reuniam, contavam o que tinham escutado e o que pensavam a respeito.Também se falava dos acontecimentos do bairro: o marido que bateu na mulher, a mulher que colocou o marido pra fora de casa, o ladrão que foi pego com a mão na botija, o menino que foi atropelado por aqueles ¨demônios¨( os carros.), era a moça que se ¨perdeu¨com o namorado. Nós ficávamos sem entender essa do ¨se perder¨. Se perder? Aonde Fulana se perdeu? Ninguém foi atrás para ajudá-los encontrar o caminho de casa?. Essa era a época que criança não se ¨metia¨em conversa de adulto. Ficávamos sem entender e ai daquele que tentasse descobrir perguntando aos mais velhos... Era um cascudo ou um puxão de orelhas na certa.

Nesse tempo, havia muitas árvores frutíferas: cajueiro, goiabeiras, laranjeiras, mangueiras, bananeiras, coqueiros, limoeiros. Também se encontrava com facilidade, Pés de murtas, macaíba, pitangas, dendês, araçás, romãs, carambolas, e outras mais. Geralmente quando as pessoas iam à bica, já levavam uma sacola, e dependendo da época, voltavam com a barriga e sacola cheias. Ah! Festa mesmo acontecia no dia de lavar roupa. Todas numa fila indiana, com as trouxas na cabeça, rindo, contando histórias, e a criançada à frente correndo uma atrás da outra. Ninguém brigava. Era uma época onde havia muita camaradagem. Porém não nos afastávamos muito, pois temíamos os jacarés, as cobras, e qualquer outro animal que pudessem surgir naquele local tão cheio de marcas desconhecidas. E o medo maior era cair nos lugares alagados, os poços onde havia muito massapê. Geralmente acontecia de um animal descuidado ir beber água e, o coitado ficar atolado. Quando alguém via, então saia chamando os outros, conseguiam uma corda e puxavam o animal que já estava desfalecendo e com os olhos esbugalhados, temendo a própria morte, pois havia local onde um animal de alto porte, como um boi, por exemplo, podia ser engolido inteiro.

Outro dia de festa, era quando passava logo cedo um vaqueiro, avisando que a determinada hora do dia ia passar a boiada. É que havia em um bairro próximo um matadouro que é um local onde os animais são abatidos. O aviso era para que todos ficassem dentro de casa, com as portas bem fechadas. Eram animais imensos, e de longe se podia ouvir o som das pesadas patas no chão. Touros com chifres imensos, corcunda balançando ao menor movimento, gordos, de cores variadas. Umas crianças gostavam dos touros cinzentos, outras dos de cor marrom, outras do branco e preto. Havia mais touros que vacas. Como na maioria das casas não havia muros e poucas tinham cercas, era comum vermos pela janela, os animais passarem bem próximos de nós. E quando um fugia do rebanho, torcíamos para que os vaqueiros perdessem, pois é claro que o show iria demorar a acabar. Era o máximo!

Nos quintais criavam-se: galinha, porcos, patos, guinés, gansos, perus. Poucos tinham condições de comprar carne em açougue. Era coisa para rico. Quando se queria carne, escolhia um animal gordo e pronto, a panelada estava para as barrigas o que o mel está para as abelhas.

E quanto às roupas? Hoje é normal as crianças terem muitas e muitas roupas. Não tínhamos essa condição. Roupas novas apenas para alguns moradores. A maioria não podia comprar e se vestir conforme as necessidades. As famílias eram grandes, bem diferentes das de hoje. No mínimo as mulheres tinham seis filhos. Preocupavam-se em encher a pança. As mulheres sempre estavam com uma criança a tiracolo, e quando a criança chorava, a mãe puxava o peito murcho de dentro da roupa e colocava na boca do faminto ou chorão, o peito servia de alimento e também de chupeta. Na mesa era comum encontrarmos: farinha, charque ou ovo cosido, fritada feita com ovo (omelete), feijão ou farinha mexida com água, sal e charque picadinha. Arroz uma vez ou outra; macarrão era um luxo. Fruta quando tirávamos das árvores. Todo dia era: o famoso cuscuz com leite de coco, batata-doce, macaxeira ou inhame. Pão e bolo eram alimentos que era provados e admirados nos aniversários ou no Final de Ano.

Lembro de uma mulher que o filho mais velho tinha 19 anos, e todo ano ela tinha um filho. Na casa havia três quartos: um para o casal e para o bebê recém-nascido. E quando a criança atingia os quatro ou cinco meses, a mãe, já estava esperando outro. No segundo quarto ficavam os maiores, e no terceiro, os pequenos. Não havia camas, nem redes, mas colchões espalhados por todo quarto e ali todos dormiam num entrançado só. Pela manhã, acordavam bem cedinho, iam atrás de fruta. Na época de manga ou jaca, os maiores subiam nas árvores e derrubavam as frutas (as mangas) e no caso das jacas, eles desciam com as frutas, pareciam uns macaquinhos, rápidos e leves, desciam e era aquele banquete. Ali estava o café da manhã. Não havia criança doente. Na hora do banho iam para a bica ou então, os maiores traziam a água e os pequeninos tomavam banho em bacias ou com um canequinho de lata tiravam água da lata maior. Todos moreninhos, de barrigas cheias e sorridentes. A maioria passava o dia pelado, e aparentavam não sentir frio. A mãe quando questionada o porquê de não parar de colocar filho no mundo, dizia: Se Deus quisesse que ela parasse de ter filhos, Ele mesmo o faria. Quem era ela para colocar a mão onde Deus não havia colocado?

Móveis: não se tinha muita opção. Cama era o que não podia faltar. Poucas pessoas tinham cama como nós conhecemos hoje. O que se encontrava nas casas eram camas de lona ou redes. Uma mesa de madeira, cadeiras ou tamboretes, salas vazias ou no máximo uma cadeira de balanço para o velho da família ou para alguém que ficasse doente. Os Colchões eram de palha. A vassoura era feita de mato. O piso das casas era de cimento, onde a última moda era usar uma tinta vermelha ou verde, misturada ao cimento. A casa que tivesse piso, fosse de tijolo, tivesse portas, mais de um quarto era considerada casa de ¨gente melhor de vida¨. Os brinquedos: A maioria era feito em casa.As bonecas de tecido, ou em época junina, pegava-se as bonequinhas do milho e brincávamos por muito tempo até os ¨cabelos¨caírem. Os carros das crianças eram feitos de lata de óleo, ou de madeira. A criança que tivesse uma boneca de plástico, com cabelo e roupa era uma criança de sorte e seus pais eram ricos ou conheciam gente rica.

Dia de chuva, era uma delícia. As mulheres corriam para colocar os tonéis na biqueira (calhas), as crianças corriam para tomar banho na rua, gritavam e sorriam sem parar. Pulavam nas poças d´agua salpicando os colegas.Porém, embora a chuva trouxesse alegria, também trazia tristeza. Isso porque quando chovia vários dias seguidos, os rios transbordavam e a água invadia as casas.Eram as temidas enchentes, que para muitos era a Mão de Deus castigando os pecadores.

A de 70 ficou na História. De dia poucos perceberam o quanto o volume de água crescia, mas a noite ouviu-se gritos, choros, e pessoas batendo à porta das casas que ficavam num lugar mais alto, onde a água não tinha chegado. As famílias que sofriam com as enchentes saiam de casa muitas vezes com uma trouxa de roupa e só. Esperavam a água baixar pra depois contarem os prejuízos. Os colégios tornavam-se abrigo para aqueles que perdiam as casas. Nessa enchente, os alunos ficaram sem aula por muito tempo, pois o número de desabrigados era muito grande e não tinham para onde ir.

O som de um helicóptero ou de um avião era raro. A criançada corria para ver e gritava frases, tipo: Ei, estamos aqui! Olha nós, aqui embaixo!

Carros eram raros. Pois as ruas não eram calçadas e as pessoas da comunidade não podiam possuir um. Havia duas avenidas: uma de terra batida, onde passavam os caminhões carregando massapê, que eram levados para uma fábrica e de lá saia o fosfato. A outra avenida, a principal, calçada por causa de uma fábrica de refrigerante e cerveja, era onde passavam os ônibus e uns poucos carros. Os meios de transportes comuns e acessíveis eram: bicicleta e carroça.

Os passeios para as crianças aconteciam através dos colégios e no Dia das Crianças era comum alguns pais levarem os filhos para um parque público. Local dos passeios realizados pelas escolas: ida a uma Fábrica de Fosfato, Fábrica de refrigerante, e quando realizado pela família: o Parque 13 de Maio. Era o ponto máximo para a criançada. Para os adultos, não se falava em lazer. A mulherada gostava de acompanhas as novelas pelo rádio, e os homens, o futebol.

Por falar em refrigerante, as garrafas eram de vidro. As mais desejadas eram da marca Crush e Fratelivita..E quando havia festa de aniversário ou casamento, as famílias compravam gelo em barra, colocavam as garrafas dentro de um tonel e por cima colocavam o gelo.Era tiro e queda.Gelava pra valer.Era nesse período que matávamos a vontade de comer bolo e tomar refrigerante.Numa festa, onde havia tudo isso e em fartura, faltou energia, e um grupo de meninos sabia onde estavam as fatias do bolo de chocolate, já colocados nos pratos. Foram até o local, comeram até não poder mais, saíram de mansinho, e quando a energia voltou (demorava bastante), estavam longe do local do delito, e só ouviram de longe os comentários que uns ¨desgraçados¨, tinham metido a mão no bolo da festa, o melhor bolo, o bolo desejado por todos.Só deixaram uns pedaços já mexidos e o bolo branco que ninguém tinha tanta vontade assim de comer. Era a criançada aprontando.

No início só havia uma escola, e para lá iam todas as crianças que moravam nos bairros próximos. Meninos e meninas andavam juntos e não havia receio como hoje se ver. Ninguém falava a linguagem que hoje é comum sair da boca da criançada. As crianças eram crianças e geralmente essa fase se estendia até os 12 e até os 14 anos. As brincadeiras eram diversas, mas havia hora para brincar. Geralmente no final da tarde, por volta das 4 horas, quando o sol estava mais frio. E para os que estudavam à tarde, brincavam a noite ou então no início da manhã. O sol não era tão intenso como hoje, e havia distinção entre o inverno e verão.

Lembro que foi num verão, que a bica começou a secar, ou melhor, onde havia olhos d´agua, começou a diminuir o volume , e aquilo começou a preocupar a todos. Quem pôde, procurou cavar uma cacimba. Como era um verão, a água custou a aparecer. Mas na nossa casa, depois da cacimba que meu pai cavou, a nossa vida melhorou muito. Não precisávamos mais ir buscar água. Tirávamos água com uma lata, e o ruim era quando precisávamos encher os tonéis, pois havia dia que o nível baixava muito e a água tinha um cheiro ruim. Nós dizíamos: Pai, a água está com cheiro de enxofre!Era um cheiro de coisa fedida.

E eu, que já tinha aprendido a equilibrar a lata na cabeça, fui perdendo a prática. É que meu pai, por medo que caíssemos dentro da cacimba, como aconteceu num bairro próximo, comprou uma bomba e pôs uma tampa de cimento. Ai era só mexer na alavanca e pronto, a água surgia, limpinha, e gostosa para tomarmos banho ou qualquer outra tarefa que nossos pais nos mandavam fazer. Por exemplo: Molhar as plantas, lavar o banheiro, os pratos, dar banho no cachorro, encher a jarra e o filtro. Coisas que qualquer criança pode fazer para ajudar os pais.

Mas preciso falar sobre o acidente da cacimba. Num lugar um pouco distante da nossa casa, uma criança estava brincando de bola, e na frente da casa havia uma grande cacimba, destampada e com muita água. Quando a bola caiu dentro da cacimba, aquele menino tentou tirá-la e caiu dentro, quando a mãe viu o filho morrendo afogado, não pensou duas vezes, jogou-se e também morreu afogada. A imagem que tenho é o corpo dela por cima do corpo miúdo do filho. Estava agarrada ao seu bem mais precioso e por ele perdeu a vida. Quando as pessoas vinham olhar, saiam cabisbaixas, e a maioria ficava sem fala diante daquela triste cena. Quando os bombeiros chegaram, lembro dos primeiros que olharam para baixo, e em silêncio usaram as cordas, e quando pegaram o corpo daquela mãe, ela estava tão ligada ao filho, que aquela cena causou comoção.

Outro momento que ficou na lembrança foi quando um vereador procurou o meu pai e lhe pediu que colocasse um nome numa rua que estava para ser registrada. Meu pai todo orgulhoso, escolheu.

Ainda ouve em toda comunidade um momento que guardo com carinho. Foi a chegada da luz elétrica. Que momento! Quanta alegria e alvoroço. Pudemos comprar uma radiola, e ali quando a luz foi instalada, passávamos o dia todo colocando discos: uns pequenos que só tinha duas músicas de cada lado. E os discos grandes, com 5 ou 6 músicas de cada lado.Ruim era quando a maioria dos vizinhos compravam suas vitrolas e colocavam suas caixas em alto volume.Era uma zoada só. Aprendíamos certas músicas, mesmo sem querer. Havia os que gostavam de músicas do tipo 'roedeiras', era a chamada ¨choradeira de amor¨. Foi nessa época que um homem que tinha várias cabeças de gado, portanto considerado remediado, comprou um aparelho de TV, preto e branco, e no final da tarde, havia tanta gente se empurrando para encontrar um lugar nas janelas daquela casa para assistir ¨umas coisas que passavam naquele aparelho que tinha muito brilho¨. Um aparelho que era uma lindeza.Era assim que eles denominavam a televisão.E eu, claro, estava entre aqueles olhos extasiados, esquecendo o motivo de estar na rua àquela hora: tinha ido comprar o pão.Por muitas vezes, perdia o dinheiro naquele empurra-empurra.Quando chegava em casa, por volta das 18 horas, já estava escuro, minha mãe me aguardando no portão, com uma vara pronta para descer sobre meus cambitos, e eu sem ter como me explicar saia pulando como cabrito, esquecendo por um momento as lindas cenas que tinham me deliciado.

Meu pai para evitar tanto aborrecimento comprou uma TV. Só podíamos assistir os desenhos animados ou alguns filmes decentes, era assim na nossa época.Lembro de um filme que tinha por título: Perdido no Espaço, havia um outro, Rin-tin-tin. Daniel Boody( nem sei se esse é o nome do filme), se alguém souber, me diga.Afinal, já se passaram quase quarenta anos!

Eram comuns, os almoços de final de semana. As famílias se reuniam e sempre com muito barulho, almoçavam e lá para 3 horas da tarde, iam saindo os que moravam mais longe, pois geralmente andavam a pé. Nas férias os netos iam sem faltar um ano sequer para a casa dos avós. Isso acontecia nas férias de junho e na do final do ano.

As crianças ainda nessa época não sabiam como nasciam os bebês, porém já não acreditavam na história da cegonha. Já se imaginava que as mães iam barrigudas para o hospital e lá acontecia do médico tirar o bebê, só não se sabia como.

Quando uma mulher tinha filho, tudo ficava diferente. A avó vinha para cuidar e dar os primeiros banhos. O resguardo era maior e o bebê quase não abria os olhos. Havia muito cuidado com o chamado vento mau que podia adoecer o bebê, pois afinal quando ele entrava numa casa não quebrava até espelho e até ¨entronxava¨ as pessoas? O que eles queriam dizer era que o vento deixava as pessoas aleijadas. Ouvíamos isso dos mais velhos. E para nós, os mais velhos sabiam de tudo.

As escolas eram poucas, o ensino precário, alunos muito pobres, não havia livros didáticos; o lanche era uma merenda horrível. No dia da sopa: mais água com gordura, o macarrão ou o arroz boiando e a carne e a verdura não sabíamos por onde andavam. No dia do leite com chocolate ,mais água que leite, e o chocolate tinha um gosto de tudo menos de chocolate. Havia abuso de autoridade por parte dos professores e diretores. Alguns professores eram verdadeiros malucos, gritavam por qualquer coisa e nos olhavam com uns olhares horríveis que nos deixavam apavorados. Sentíamos uma ameaça no ar quando eles nos olhavam assim. Qualquer coisa era motivo de ficar de castigo e o chamado ¨Olho de boi¨ era a penalidade que chegava mais perto da máxima, que era a expulsão. Todos nós temíamos tanto uma como a outra, pois os pais eram severos e apoiavam os professores no que eles fizessem.Podiam até puxar nossas orelhas, nos balançar pelos braços ou nos davam uns croquis.Tava tudo certo. Valia por uma boa ¨educação¨. Éramos apáticos e aceitávamos tudo sem questionarmos sequer uma vírgula, pois isso fazia parte do cotidiano de cada um. Também temíamos os bilhetinhos que éramos obrigados a levar para casa. Era surra na certa. Nos levantávamos pra toda autoridade que entrasse na sala de aula: o diretor, o professor, o representante da educação, o excelentíssimos Sr tal, a honrosa visita da ilustríssima Sra Fulustreca,.. E não podíamos arrastar as cadeiras.Era bom dia, boa tarde Sr. ou Sra... As aulas se arrastavam.Para nós parecia uma tortura. Quatro horas de aula valia por oito. Dessa época, acredito que poucos foram os adultos que se tornaram pessoas com autonomia, segurança, equilíbrio, desenvoltura... É essa geração sofrida que vivenciou em nome do bem saber uma educação que deixou a desejar. Uma educação que formou cidadãos, que ainda não descobriram seu valor, que não conseguiram enfrentar a realidade porque foram castrados, manipulados na sua liberdade de se expressar, de entender a vida. Calaram a voz de uma geração que tinha o que dizer.

As aulas eram decorebas desde o início. A criança tinha que decorar o ABC, os números eram decorados de forma cantada, e aí de quem dissesse que não sabia aquilo que o professor tivesse determinado que os alunos decorassem. Poucas eram as crianças que chegavam ao Ginásio. Os pobres já estavam contentes só com o fato dos filhos saberem ler. Era raro alguém ficar sabendo que o filho de alguém tinha concluído os estudos (científico) ou se tornado doutor (ido até a faculdade), só se tivesse o patrão de alguém dado sua parcela de contribuição. O comum era as meninas estudarem até se formar para professora que era a ¨profissão máxima¨, como a medicina é hoje.E os meninos irem para o quartel e se tornarem alguma coisa de farda. Pronto, os pais estavam realizados. E se as filhas casassem cedo, melhor ainda, pois a preocupação diminuía. Não havia o risco da filha se perder como as outras.As moças quando casavam engravidavam logo e era um filho atrás do outro.Logo aquela linda menina se tornava uma matrona, e assim se afastava do convívio com as jovens, o lugar dela era outro.O que no início trazia brilho, orgulho, e até uma certa altivez na moça que logo assumia compromisso para casar, logo percebíamos uma dose de tristeza pelo que deixou de ser vivido, mas o círculo continuava, porque as jovens que não casavam cedo, por volta dos 15 ou 16, quando entravam nos 20 já eram tachadas de estarem em perigo e se chegassem aos 25 podiam se considerar ¨pra Titia¨e só havia viúvos pra casar com essas coitadas.Se caso encontrassem um casamento, tinham tirado a sorte grande, mesmo que fosse com um velho corcunda e 'banguelo'.Se encontrassem um jovem solteiro, mais ou menos da idade dela, então essas moças ganharam na loteria. Nas reuniões em família, a primeira coisa que se perguntava: E você já casou? E quando a coitada respondia que não, o olhar de compaixão era visível e a enjeitada, como um cachorrinho enxotado, saia murcha, ou então disfarçava o desconforto dando logo mil desculpas: ¨Não estou com pressa. Resolvi ficar sozinha. Ou então, inventava um namorado fictício para causar admiração. Conheci uma jovem que até os 73 anos continuou esperando casar porque não aceitava sua condição de ¨esquecida de Deus¨. Coitada, deixou de viver tanta coisa!

Carnaval ainda era pouco comemorado. Mas havia uma casa onde as pessoas gostavam de se vestir de palhaço, usavam máscara e se aproximavam de todos sem serem reconhecidos. Era nessa época que os rapazes que admiravam uma moça conseguiam chegar perto e por alguns momentos tirar a forra, mas logo chegavam as mães que vigiavam as filhas e tiravam suas ¨rosas¨ para longe dos perigosos ¨espinhos¨.

Os maridos eram os chefes, os provedores e mandavam em tudo. Desde o que colocavam à mesa, na maneira da mulher e os filhos vestirem, cor da roupa, corte de cabelo, quando podiam sair e com quem sair. As mulheres eram ainda o reflexo das mães. Sofriam caladas, eram submissas, suportavam a traição dos maridos, e aquelas que tomavam coragem e rompiam esse círculo eram rotuladas e não tinham apenas que sofrer a falta de apoio da própria família, mas também da sociedade. Mulher deixada não tinha valor era o que se ouvia dizer. Ruim com ele, pior sem ele. Mesmo que nesse ficar estivesse ocorrendo espancamento, tortura psicológica, estupro, maus tratos com os filhos, tentativa de homicídio. Lembro de um caso: quando o marido ameaçava a esposa, ela no dia seguinte corria para dizer aos pais. O velho antes do genro chegar, deitava debaixo da cama da filha, para no caso dele vir a tentar por em prática a ameaça, vir em socorro da filha.

O tempo foi passando. Muita gente se mudando, outras caras novas aparecendo. Muitas casas sendo construídas. O bairro estava crescendo. De onde tiravam o massapê, aterraram e fizeram um loteamento. Onde havia a bica, os tratores, aterraram tudo, abrindo uma larga estrada federal, fazendo ligação entre duas cidades. Os morros derrubaram e junto com esses foram embora as árvores frutíferas e os lindo pássaros. Fábricas fecharam, as favelas foram rodeando os bairros, e o povo que usufruiu da Bica ou conheceu de perto esta história já morreu ou partiu para outros lugares.

Só quem sabe onde ficava a Bica são os mais velhos. Depois de 35 anos, voltando ao local, descobri que fizeram do local um lixão. Lugar onde só podemos ver lixo, urubus. Animais e pessoas esqueléticas a procura de alguma coisa para comer ou pra vender. Tudo mudado. Fedido.

É, o homem mudando tudo, só não posso afirmar que está mudando pra melhor.

Ione Sak (12/12/08)

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 12/12/2008
Reeditado em 11/06/2016
Código do texto: T1332401
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