Suburbano coração juvenil - Parte 1.

Parte 1.

Era uma manhã de intenso sol. Ao redor do tempo pássaros voavam em bando coreografando no ar a liberdade azul do universo distante das grandes cidades de céu cinzento. De longe o som dos berrantes soados pelos vaqueiros em seus cavalos adestrados, amigos inseparáveis de longas jornadas; o som que anunciava suavemente à hora de conduzir o gado para a hora do asseio: banho na travessia do lago, pasto vasto e verde a espera e a melhor alimentação do dia.

Dia de rotina para um lugar pacato embriagado pelo cheiro do campo. Ar puro, água corrente, verde espalhado como se fosse uma imensa tela pintada com capricho pelas mãos de um artista apaixonado em figurar paisagens: cores fortes, tons quentes, traços demarcados.

Do lado de cá do lago a estrada carroçal de acesso ao centro da cidade: o mercado dos grandes comércios de carne e feira livre, mais adiante a agência bancária e do outro lado da estrada a capelinha em devoção a Nossa Senhora mãe do Salvador. Em frente à capela a pracinha dos encontros, dos passeios de fim de tarde e dos encontros dominicais. Mais adiante a prefeitura arrodeada de alpendres, ao lado as casas comerciais de tecido, as bodegas e o vilarejo constituído pelos casarões das primeiras famílias que por ali habitaram há mais de cinco décadas.

Lugar singelo e tranqüilo que não conhecia ainda os mandos e desmandos do crescimento desenfreado, descontrolado, dos grandes tráfegos em horas intermináveis de picos e fumaça, enfim...

Para quebrar a normalidade da situação, algo intrigante aos olhos de quem não é acostumado a ver cenas de novela na vida real. Do lado oposto da estrada, atravessado uma pequena ponte de madeira e corda antigas, estreito lugar para pedestres atravessarem o conhecido lago, cartão postal e orgulho dos moradores daquele lugar; mais conhecida como a passagem das lavadeiras que vinham hora sim, hora não de trouxas na cabeça e pedra sabão a cantarolar as margens do lago enquanto ensaboavam todos os panos e punham-nos a quarar na relva rasteira ao cheiro do anil espalhado pelo tempo enquanto as crianças brincavam de cavalinho de talo a correrem soltos, leves e livres pela redondeza; um vulto desenfreado passava apostando corrida com o vento. Passa rápido, veloz, numa carreira só e sumindo no meio do verde da vegetação e se perdendo entre as flores espalhadas por todos os lugares.

Quando se percebe ofegante para bruscamente pelo cansaço e cai na relva e se mistura em respiração profunda descompassada. Senti-se trêmula, desgovernada e por segundos de tempos percebe que a visão está curta, ilegível, embaraçada. Neste momento leva a mão ao peito e percebe o coração disparado, em ritmo acelerado e um suor frio toma conta do seu corpo morno. Estira-se ali e procura fechar os olhos com toda força que ainda lhe resta, assim como contorce as mãos até a exaustão. Sente as unhas encravadas na carne e morde os lábios sem querer. Não se percebe adormecida e chora e senti e se deixa levar pelo tempo da lembrança, se perde em pensamentos, se deixa conduzir...

Ser diferente ou não ser igual à vontade dos outros? Que mal há nisso ou que bem se vivencia quando se aceita a normalidade das coisas e passa a ser a imagem que os outros fazem de você e não o que se é na verdade, de verdade e pela verdade?

E quem são os outros? Que poderes eles têm de decisão na vida alheia e o que representam na verdade? Todos não passam de uma pequena parte de um pequeno grupo que representa quase nada, embora as línguas ferinas e o poder de difusão dos maus pensamentos, das más atitudes logo se propaguem por aí como o areia ao vento, mas na hora marcada no relógio, os olhos de Clara já machucados, estavam todos inchados de tantas lágrimas. Chorava copiosamente e por mais que desejasse ser forte como sempre fora, a vontade de deixar a enxurrada de lágrimas tomar conta do seu rosto era maior e viu que naquele momento também se sentia nada, objeto perdido, poeira sem destino, coisa sem serventia. Não sabia o que fazer, como se conter ou até mesmo quem era ou o que se passava naquele exato instante que a deixou tão abalada, fora de si.

Por mais que tentasse o autocontrole ensinado pelo pai de sua mãe, seu avô materno, um ser que para ela era sinônimo de grande devoção, não conseguia controlar a emoção.

Chorava, chorava naquela manhã como nunca havia chorado antes. Chorava de tristeza, de vontade de se livrar de si. Pela faltar de razão de se sentir envolvida em algo que para ela não tinha sentido ou razão de ser e de ao mesmo tempo não saber quem era - quem sou – gritava - o que faço aqui no meio de pessoas tão insensíveis, perturbadoras da felicidade alheia – sentia-se acordada e adormecida ao mesmo tempo.

Só o xingamento soando dentro de si conseguia ouvir naquele momento:

- O boi está solto, o boi é encarnado, está a sangrar, mooooooooooooonnnnnnnn!!!

As vozes se perdiam nos seus pensamentos, se perdiam dentro de si e se sentia ou se achava um eco, vazio e quanto mais punha as mãos nos ouvidos querendo não mais ouvir nada, o som ecoava mais forte, mais vezes, mais...

Era uma menina de pouco riso, filha única e o centro das atenções dos pais. Tinha desde sempre o seu próprio espaço e fora educada para a felicidade. Aulas de piano, balé, línguas, literatura, embora desde cedo tenha trocado as teclas pelas cordas do violão, as sapatilhas pelas botas de montaria, as línguas pelas variações das linguagens coloquiais de colonos, jagunços e nunca quisera perder o cordão umbilical com a leitura. Ler era o seu maior prazer. Lia tudo, dos versos simples aos grandes clássicos, era antenada e informada com tudo que acontecia no mundo. Adorava também criar suas próprias histórias e as histórias das pessoas que estavam ao eu redor.

Recém chegada na nova morada, a cidade de Quero Bem, um pequeno vilarejo de agricultores e desocupados. Quero Bem era pacata, organizada como uma terra de assentamentos. Tinha aproximadamente dez mil habitantes e o mesmo número de cabeças de gado, a fonte de renda de todos. Ali os homens ou eram donos das leiterias e dos reprodutores ou trabalhadores deles. Para as mulheres restavam os afazeres domésticos ou os trabalhos nos abatedouros. Tratavam do coro do animal morto e das partes menores.

Fora matriculada na única escola do lugar, um grupo escolar modesto construído pelo trabalho coletivo dos moradores. Os professores eram da própria comunidade, alguns aposentados que deixaram os grandes centros e vieram parar ali atrás de sossego e descanso.

Destacava-se pela cor clara da pele, o rosto tão bem desenhado, os olhos mel abertos de uma beleza rara. Os lábios carnudos, umedecidos e pelos hábitos nobres. Tão bem educada, saudável, estava sempre a se destacar e ser ovacionada pelos mais velhos e professores.

Vinda de uma cidade maior vestia calças compridas justas, usava cabelo trançados e bota de quem gostava sempre de montar a cavalo. Mascava chiclete, tocava violão e estava sempre disposta a fazer uma nova amizade.

Os pais muito liberais não faziam objeção as escolhas da filha, tinha já seus quinze anos e precisava aproveitar os momentos da vida enquanto a vida ainda era inocente. A vida naquele lugarejo tão tranquilo e longe de espaços urbanos poluídos e violentos. Logo, logo estaria concluindo o ensino básico e teria de ir morar num centro mais avançado para cursar o ensino médio e entrar para a faculdade de jornalismo como era o seu sonho.

A mãe era dona Cacilda, uma mulher de voz mansa e gestos suaves. Tocava piano e gostava de apreciar um bom vinho. Estava sempre a cantarolar e a prestar atenção aos afazeres domésticos. Não gostava de aborrecer o marido e tudo devia estar pronto a tempo e a hora. Logo pela manhã abria a janela do quarto e ficava a escutar a cantarola dos pássaros. Dizia algumas palavras como se eles a escutassem e tinha sempre um punhado de ração que quando jogado, em revoada iam alimentar-se. Ainda rezando o terço matinal ia à cozinha para observar o preparo do café do esposo. Provava do bolo, do suco, vigiava se o leite estava bem fervido e se a mesa estava posta como do agrado do amado. Subia, acordava-o mansamente e o conduzia ao banho. Eram felizes e daquela felicidade o fruto de amor dos dois: Uma bela filha compreensiva, dinâmica, inteligente. O sonho de amor dos pais.

O marido era seu Henrique, homem alto, de corpo espadaúdo, ombros espalmados e braços musculosos. Um belo homem de olhos claros e rosto liso. Um galante de encher os olhos das moradoras dos sítios vizinhos e das ruas, calmas ruas daquele lugarejo. Gostava sempre de estar a mastigar um pequeno palito e quando sorria mostrava a beleza dos dentes. Era doutor de animais, médico veterinário e logo caiu na graça de todos do lugarejo. Cuidava do gado e tinha programa para melhorar a produção do leite do lugar, além de propor uma exposição na cidade para mostrar às outras cidades as maravilhas do lugar. Tinha saído cedo de casa como todos os dias e também por motivos do coração, havia resolvido voltar para casa mais cedo. Largou tudo nas mãos de Simão, seu ajudante e dentro de seu jipe vinha quando de longe avistou algo que para sua vista era conhecido. Debaixo de uma grande mangueira, jogada no chão, com uniforme escolar sua menina Clara e logo mais adiante encostado na cerca, o Camilo que quando viu o jipe aproximasse, montou-se logo em seu cavalo e disparou.

Para o seu Henrique, corre ao encontro de sua menina e docemente a tem em seus braços. Braços de pai, de homem íntegro, de quem sabe entender e dar amor a quem está necessitando. Senta no chão, na sombra daquela mangueira e acolhe no seu peito o rosto de sua filha. Afaga-lhe o rosto e busca olhar dentro de seus olhos fechados de dor ou vergonha ou qualquer coisa que naquele momento poderia despregá-la da força de amor que seu pai lhe transmitia. [...]