Lições de Vôo III - Zryr, em busca do Homem (Primeiros capítulos do livro em desenvolvimento)

A série LIÇÕES DE VOO foi iniciada há mais de vinte anos, quando publiquei a primeira edição do livro sobre a vida do passarinho Zryr pela Fundação Espaço Cultural da Paraíba, tendo sido sua 2ª edição publicada pela editora Bagaço, de Pernambuco, e a 3ª pela editora Persona, de João Pessoa (PB). A saga infantojuvenil - que também costuma agradar aos adultos - conta a história de um pássaro que viverá a aventura de superar suas vertigens a finalmente alçar voo. A segunda parte da trama, LIÇÕES DE VOO II - A DESCOBERTA DE ZRYR, publicada pela editora Persona, conta a história das descobertas do pássaro sobre a realidade da morte e da força da Poesia como complemento dos sentidos da Vida. Abaixo, as páginas iniciais da nova aventura do passarinho, que sempre se encantou com os feitos "humanos", tendo o desejo incontrolável de, para a contrariedade de seu pai, visitar a Cidade dos Homens.

Boa leitura.

*

- Você não me pega! – piou Crisálida, um beija-flor fêmeo multicor pairando de repente ao lado de Zryr, pousado calmamente sobre o galho de uma árvore a olhar para a cidade, ali, do outro lado do rio que a separava da floresta onde morava ele, sua família e seus amigos; perto e cada vez mais perto dos monumentos de aço, cimento e vidro que os homens construíam em honra do que chamavam “civilização”.

- Você não me pega! – piou Crisálida novamente, dando um giro rápido em torno de Zryr a provocá-lo interesse pela brincadeira.

Zryr piscou, saindo do momentâneo deslumbramento que a visão da cidade sempre lhe provocava, desde que havia descoberto que ela era um lugar “maravilhoso e terrível” – como lhe ensinara o velho Professor Coruja, a quem a visão da cidade também sempre lembrava e suas lições sobre os interessantes feitos humanos.

Zryr saltou do galho onde estava e saiu voando o mais rápido possível atrás de Crisálida – a quem jamais conseguiria alcançar, se ela não facilitasse a aproximação dele, deixando-o mesmo ultrapassá-la às vezes.

Claro que Zryr sabia que conseguir alcançar Crisálida era uma armação dela para satisfazê-lo, e ele sempre brincava de pega com ela para satisfazer sua vontade de estar com ele.

Porque ela gostava de Zryr.

Dizia a si mesma que teria coragem o bastante para pedir para namorá-lo, mesmo que aquele passarinho da cor do céu e olhos dourados sempre falasse sobre seu desejo maior: ir conhecer finalmente toda a Cidade dos Homens – de onde todos pensavam jamais poder regressar – para desgosto dela e de Papai-Pássaro, pai de Zryr, que procurava dissuadi-lo da idéia de conhecer aqueles a quem se denominavam “homens” – para ele, os seres mais desumanos da Terra.

Mas, por causa de certas vivências entre eles, Papai-Pássaro foi forçado a reconhecer a presença de algumas boas almas entre a maioria daqueles que, para ele, ainda não haviam passado de feras pensantes, perigosas ameaças que, muito breve, estenderiam seu império de aço e lixo para além do rio.

Muito breve – ele sabia – não existiria mais o lar de sua família e de seus amigos, sendo possível a futuras gerações que finalmente esquecessem da cor verde.

Crisálida girou sobre si mesma e subiu através dos galhos de um jambeiro, que mais parecia uma árvore de natal de tão carregado de frutos que estava, vermelhos como corações. Ela passou como um raio diante dos olhos atentos de outros pássaros que ali estavam degustando belos jambos arroxeados, parando momentaneamente de bicar as frutas para ver o beija-flor ziguezaguear rápido dentro da árvore e as acrobacias que obrigava Zryr a fazer ao persegui-la.

- Você não me pega! – piou ela estridente, sorrindo, saindo rápido do jambeiro pelo topo da árvore, enquanto Zryr se esforçava para não esbarrar no emaranhado de galhos a frente dele – já que era bem maior que a amiga – girando o corpo enquanto batia e recolhia as asas numa alternância de movimentos rápidos e precisos. Zryr daria orgulho ao Professor Coruja, se vivo ele ainda estivesse para ver o que ele havia finalmente aprendido sobre a arte de voar, depois que, com a ajuda da sábia ave, superara suas primeiras vertigens.

Zryr saiu de dentro do jambeiro e estacionou no ar, batendo com força e rapidamente as asas.

Havia desenvolvido aquela manobra, difícil para a maioria das aves, graças a Crisálida, que lhe ensinara como aproveitar a força do vento para exercitar a proeza.

Olhou para os lados e viu que Crisálida voava rápido se dirigindo para umas árvores a beira do rio, e então tratou de segui-la.

2

- E Zryr? – piou Papai-Pássaro de repente, despertando de um cochilo.

– Onde está Zryr?

- Não se preocupe querido – piou Mamãe-Pássaro, enquanto chocava dois novos ovos a esperar que, depois de Zryr, Flyn e Cré, depois dos três filhos pássaros que lhe dera a Grande Gaivota, duas pássaras viessem ao mundo trazer mais vida e alegria a sua família.

- “Não se preocupe, não se preocupe...”, é o que sempre pia você munida de sua fé cega, mas não fossem minhas preocupações...

- E talvez você vivesse um pouco mais feliz – o repreendeu Mamãe-Pássaro aborrecida. – Estou aqui há uma semana e nunca vi você preocupado se nossas filhas estão ou não demorando a nascer, como fez quando esperávamos nossos filhos. Até parece que não quer suas filhas...! – piou ela, depois de um breve silêncio.

- Penso que, depois de tantos invernos, foi um erro lhe pedir para me dar fêmeas – piou Papai-Pássaro, mais rabugento do que nunca. – Aliás, como sabe que são fêmeas? E, aliás, que diferença isso faz agora? Fêmeas ou machos, pelo menos ainda estão seguros dentro dos ovos – gralhou Papai-Pássaro, mais aborrecido. – Como dizem as gaivotas, o mar não está pra peixe. O mundo não está para qualquer um de nós que aqui vivemos, é o que eu digo. E como se não bastasse o erro de termos posto três filhos aqui, perto daquele lugar cheio de homens e máquinas – Papai-Pássaro apontou para a cidade com o bico – a Natureza sempre nos castiga, ora com secas, ora com tempestades. E logo virá a velhice, talvez a doença e certamente a morte.

- Você devia se lembrar das lições que aprendeu com o Professor Coruja. Não existe apenas maldade entre os homens e a Natureza não nos presenteia apenas com secas e tempestades. E o que faríamos se vivêssemos para sempre? Como caberiam tantos no mundo entre os nascidos?

- Para quê nascer, é o que tenho me perguntado. Pra viver uma vida de aflições, poucos prazeres e depois morrer sem ter conservado a memória de que existiu um dia? E pra quê a existência desses a quem chamam “homens”, se servem apenas pra nos depenar?

- Entre os que vivem na metrópole, considere os que escreveram poemas, os artistas... Tente lembrar sempre de belas manhãs de primavera, de...

- Bhá, bhá e bhá! – trinou Papai-Pássaro interrompendo a esposa, sacudindo as penas, afastando-se de Mamãe-Pássaro, saltando até a ponta do galho. – Poesia. Você quer me fazer ver o mundo com os olhos de um poeta, como o Professor Coruja e Hildeberto, aquele urubu vegetariano que, graças ao seu apoio, se tornou amigo de Zryr e alimentou ainda mais as fantasias que o Professor lhe pôs na cabeça sobre as “belezas da humanidade e do mundo”. As leituras que fizera o Professor Coruja dos livros dos homens transformaram nosso filho num romântico cheio de ilusões.

- Bom pra eles. Pelo menos isso que você chama de “ilusões” deram paz de espírito a mim, ao Professor Coruja e a Hildeberto, coisa que tem lhe faltado de umas primaveras pra cá e que Zryr pode vir a conservar até a velhice, se continuar interessado em descobrir as maravilhas que há no mundo, na cidade...

- Có, có, có e có! – cacarejou Papai-pássaro, irônico.

- E não é culpa minha que você esteja cada dia mais infeliz. Bem sabe a Grande Gaivota que nos protege o que tenho feito para...

- Lá vem você de novo com essa história de “Grande Gaivota”. Desde quando isso que você chama de “Grande Gaivota” ligou para o que anda fazendo os homens com nossas florestas? E onde estava seu “São Fernão ” quando aquele falcão destruiu nosso primeiro ninho e perseguiu você e Flyn na tentativa de devorá-los?

- A Grande Gaivota sabe o que faz. Todos têm seu livre-arbítrio e seu destino, embora sejamos também responsáveis pelo que fazemos a nós mesmos e ao mundo que Ela nos deu para viver.

- Como você pode dizer que “a Grande Gaivota sabe o que faz”? Se soubesse como seriam os homens não os teria feito; ou os teria feito a Sua imagem e semelhança, como dizem que nos fez. E dizer que são “responsáveis” aqueles que andam a transformar florestas inteiras em infernos de luzes, lixo, barulho, miséria, fumaça e concreto armado? Tenha paciência.

- Paciência é o que você deveria ter aprendido a exercitar com o Professor Coruja. Paciência e esperança.

- Minha esperança diária é que Zryr, Flyn e Crê voltem pro ninho sãos e salvos. E olhe que minha paciência está se esgotando – piou Papai-Pássaro, pulando sobre o galho.

- Não se atreva a sair e procurar seus filhos para vigiá-los. Sabe como eles detestam isso.

- E eles sabem quanto me aborrecem quando saem sem dizer para onde vão e quando vão voltar.

Mamãe-Pássaro olhou para cima numa expressão de súplica à Grande Gaivota para que iluminasse Papai-Pássaro a fazê-lo enxergar seus filhos como quase adultos, com Zryr tendo finalmente superado seus medos de alturas; a fazê-lo enxergar novamente a Vida com bons olhos, cheia de beleza e futuro, como quando ele era um jovem apaixonado a dizer-lhe capaz de voar por ela até as estrelas.

Mamãe-pásaaro lembrava de quando tinham resolvido se aninhar.

Tinham sido longos e prazerosos os dias e as noites que passaram juntos a contrariar o dito humano de que “dois bicudos não se beijam”, e então, poucas primaveras depois, lá estavam dentro do ninho três pequenos ovos cor-de-rosa e, dentro deles, aqueles lhes que trariam tanta alegria e, infelizmente, tantas aflições.

Porque, de fato, como considerava Papai-pássaro, a vida não é fácil, embora não fosse somente o palco de horrores que ele imaginava ser. Porque, para Papai-Pássaro, a vida tinha mudado de cor, sabor e aroma desde que, numa tarde, correra o risco de ser assassinado por caçadores.

Desde então todos os homens lhe pareciam como os tais e o mundo tinha se tornado um lugar constantemente perigoso, principalmente para os seus filhos, a quem procurara ensinar a dar os vôos mais altos; não apenas para enxergar melhor o lugar onde viviam, mas, principalmente, a sempre manterem distância segura da Cidade dos Homens, onde nunca deveriam voar em rasantes – embora, infelizmente, tais animais já tivessem também dito terem “conquistado os céus” com suas máquinas voadoras, seus aviões e foguetes.

- Vou voar por aí – piou Papai-Pássaro de repente, e saltou.

- Me prometa que não vai bisbilhotar o que anda fazendo seus filhos! – gralhou Mamãe-Pássaro arqueando o corpo de cima dos ovos, abrindo as asas, mas Papai-Pássaro já ia longe voando rápido e não pôde ouvi-la.

3

Crisálida rodopiou dentro de uma jovem mangueira às margens do rio que separava a floresta da cidade e se escondeu atrás de um cacho de folhas.

Quando Zryr chegou, agarrou com força um dos galhos da pequena árvore e recolheu as asas.

Podia imaginar o coração de Crisálida a vibrar dentro dela.

Já o tinha ouvido em algumas madrugadas insones, quando ela se abraçava com ele para ouvir a canção da “grande floresta” onde pensavam viver.

Zryr sabia que o coração dos beija-flores vibra durante o dia na velocidade de suas asas, mas bate lentamente de noite, quando se recolhem para dormir. Mas, estranhamente, de dia ou de noite, Zryr pensava que o coração de Crisálida vibrava constantemente, sem que soubesse que o coração da pequena beija-flor vibrava mais por ele.

- Você não me... – ia começar a piar Crisálida e voar em fuga novamente a recomeçar a brincadeira, quando um barulho ensurdecedor a fez congelar de terror.

Zryr também sentiu como se um raio transpassasse o seu ser, e então seu corpo todo tremeu quando ele ouviu o que lhe pareceu ser o barulho de cem milhões de abelhas a voar em derredor.

- Crisálida? – gralhou alto em busca da amiga, muito preocupado, mas nada, nenhum som poderia competir com aquele zumbido horrendo a parecer agora de repente um bilhão de roedores esfomeados em busca de satisfação.

- Crisálida? – gralhou Zryr outra vez, mas não teve tempo de achar a beija-flor, nem ela poderia ouvi-lo, porque a enorme serra elétrica tinha completado o seu trabalho e posto abaixo uma enorme árvore que, agora, desabava por sobre a jovem mangueira onde estavam Zryr e Crisálida.

- Voe Crisálida, voe...! – gralhou Zryr desesperado, sem saber onde estava a amiga e sem que ela pudesse ouvi-lo, enquanto saltava ligeiro a escapar da árvore que, desabando sobre eles entre romper de lascas e esvoaçar de folhas, destroçava a pequena fruteira.

...

Archidy Picado Filho
Enviado por Archidy Picado Filho em 16/09/2010
Reeditado em 17/09/2010
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