In Vivo - Capítulo 3

Começando com o pé esquerdo

Eu já era familiarizado com o ambiente do ônibus, mas a escola na qual eu iria estudar a partir de hoje era totalmente nova, eu não fazia a mínina idéia do que estava por vir. Alguns alunos já se conheciam e riam alto como se suas conversas interessassem a todos; outros como eu, pairavam calados com o olhar distraído explorando a estrutura da escola e as pessoas nela. À minha frente havia garotas de protuberâncias e curvas que hipnotizavam, bonitas o suficiente para iludir aqueles que muito se apegam as aparências, bem diferentes daqueles protótipos minúsculos de seios e quadris que eu via na minha antiga sala. Havia caras altos e fortes, e poderiam me amassar como uma lata de refrigerante. Não pareciam ter muita inteligência ao julgar pela extensão de seus vocábulos e os assuntos que debatiam. E eu no meio do rebanho desgarrado dos novatos.

Todos os alunos estavam indo para o pátio, e lá alguns professores falavam um pouco junto com a diretora. Eu me sentia sufocado no meio de tanta gente e nenhum conhecido. Havia vários grupinhos conversando sem prestar atenção aos professores. Prendi meu olhar em outras garotas muito bonitas que estava na frente, eram realmente muito lindas. Um delas tinha o cabelo pintado com mechas verdes, era bem diferente. Era magrinha e muito linda, tinha um rosto limpo que nunca tinha visto espinhas. Provavelmente os caras andam de quatro por ela.

Ao meu lado uns caras idênticos aos que tinham na escola antiga rodando caderno no dedo e falando na gíria arrastada de marginal. Saí de perto deles pra não chamar a atenção, conheço bem meu magnetismo natural para arranjar contendas. Ao longe perto da pista de atletismo eu via um grupo em que um deles tinha um cigarro na orelha, e que orelhas ele tinha, orelhas de abano, poderia colocar uma caixa de cigarros nela. Parecia ser o líder do bando.

Depois e mais um discurso, a diretora nos liberou para conhecer nossas salas. Elas ficavam em um pavilhão que dava um ar de presídio. Sua entrada guiava a um largo corredor que levava às salas. As paredes do corredor eram riscadas com nomes, telefones e e-mails: uma mistura de calçada da fama com agência de encontros. Havia marcas de pés sujos que supostamente caminhavam nas paredes, alguns ultrapassavam a minha estatura. O vigia brincava, dizia que almas de alunos falecidos rondavam o colégio à noite e deixavam aquelas marcas.

Depois de dois dias notei que na frente havia uma carreira de meninas que formavam a linha de frente das cadeiras da sala, uma delas me chamava muito atenção com seus cabelos negros como uma madrugada nublada, os olhos tão verdes que pareciam penetrar na minha alma quando me olhava. Tinha uma pele branca como neve, se ela visse o sol com certeza sua pele derreteria. Eu teria que nascer de novo para conseguir me aproximar de uma criatura tão sublime, e era exatamente o que eu estava proposto a fazer naquele novo ecossistema. Ela era linda, quase da minha altura, pois eu era mais baixo. Seus traços beiravam a perfeição, sua desenvoltura de pessoa segura de si mesma me atraia, era firme nas suas colocações, nunca titubeava, talvez nunca chorasse. Em alguns pontos se parecia com o Mauro do ônibus, ambos são fortalezas intransponíveis nas relações sociais, exércitos de influencia resumidos em um único indivíduo.

- Ei maluco, essa cadeira aí é minha – Interrompeu-me um cara alto com a língua mole, como se estivesse mascando chiclete.

Era ele, o cara de orelhas avantajadas como asas que estava na pista de atletismo, era da mesma sala que eu. Porque um marmanjo daquele ainda estaria no oitavo ano? Ele já conhecia alguns veteranos, provavelmente fosse muito influente fazendo uso da opressão. Parecia ser metido, gostava de se exibir com um boné de marca e um cigarro amassado na orelha que parecia ser sempre o mesmo, como se aquele fosse o seu talismã e lhe desse alguma auto-estima. Gostava de chamar a atenção com seu exibicionismo de playboy metido a marginal, gíria e entonação de maloqueiro e o seu andar encurvado de braços abertos como se fosse levantar vôo a qualquer momento, ou tivesse as axilas eternamente assadas.

Ele me encarou como quem já fosse acostumado em ver suas ordens sempre cumpridas e suas ameaças igualmente temidas. Andava sempre junto com mais dois caras da minha sala: Alex, um narcisista metrossexual que adorava penteados extravagantes e usava um moicano muito tosco. Encarava-me sarcástico com um risinho maldoso de quem se deleita em ver um fraco se arrastando depois de uma surra injusta. Era um canastrão, estava sempre sorrindo e tirando sarro de alguém. Todos os professores brigavam com ele, era um amante das piadas de duplo sentido. Assim como Abraão, era um exibido, mas diferente dele, fazia o uso da aparência para esse mesmo fim - vestia blusas e camisas extravagantes com estampas, costuras, zípes inúteis e uma praga de bolsos que nem mesmo as roupas de soldados possuem em maior número: era uma alegoria carnavalesca ambulante andando pela escola. O outro era um parrudo de penteado e traços indígenas que todos chamavam de Índio já no primeiro dia, mas isso somente por que ele parecia gostar do apelido, caso contrário, seria o mesmo que cutucar um animal selvagem ou uma colméia de abelha africana. Ele era mais reservado em relação aos seus amigos, era calado, quase não conversava, nem ia atrás de ninguém para falar algo, era sempre o contrário. Não dava trabalho aos professores com seu comportamento, todos o tratavam de uma maneira diferenciada, sobre ele não puxavam piadinhas nem reclamações, somente Alex exagerava às vezes. Era como se houvesse uma reverencia implícita em torno de si, e dava para sentir mesmo, pois era mais respeitado que alguns professores. Dava-se bem com Abraão, e aparentemente tolerava o Alex apenas por conveniência, pois tinham temperamentos opostos, ele nem se impressionava me vendo com o coração mais próximo da garganta, diferente de Alex que beirava o orgasmo ante uma cena de impunidade.

- E aí cara, vai sair ou não vai? Dá pra ser ou ta difícil?! – Interrogou-me ansioso por um pretexto para me socar ali mesmo.

Os três eram como um reino sem castelo, talvez estivessem procurando um. Abraão era sempre o primeiro a falar, o porta-voz, ele seria o Rei daquele feudo. Alex era um palhaço, gostava de fazer graça com os outros, uma graça em que sempre se tira vantagem de alguém, e seu rei parecia gostar disso, ele sem dúvida seria o bobo da corte. Já o Índio era frio de um olhar imponente, parecia não ter apego por nada, mas estava sempre pronto para executar as ordens do rei sem questionamentos, ele seria sem dúvidas o carrasco.

Levantei-me devagar, meus movimentos eram lentos, minha respiração limitada, sentia até a pressão nos meus olhos e a respiração engrossar. Estava apavorado, quase não me mexia como se algo me segurasse. O clima dentro de mim era pesado, denso... Que resposta poderia dar aquele torturador de fracotes? Poderia eu sair ileso daquele sorriso macabro de palhaço? E daquele olhar frio e apertado?

- Sem problemas. – Disse eu com a voz seca e sem impulso.

Eu tirei a bolsa da carteira e a segurei com a mão esquerda. Alex e Abraão se entreolhavam regozijados diante de mais um humilhado, riam como se visse um bebê tentando superar um obstáculo pequeno, ou um bicho pego na armadilha, à mercê de qualquer ataque. Aquilo me deixou chateado comigo mesmo, aquilo estava saindo da mesma forma que na escola antiga: alguém mais forte se divertindo em detrimento da minha moral, aquilo não podia continuar, eu prometi a mim mesmo que dessa vez seria diferente, e se esse caminho for doloroso, que seja! Não foi pra apanhar mais que eu vim pra cá. Não seria eu capaz de me defender? Por que tinha que ser sempre assim?

Uma euforia profusa me envenenou a cabeça naquele instante, eu quase fiquei do tamanho deles. Aquela situação injusta que me inferiorizava fez ferver os meus olhos de raiva, sentia como se eles começassem a trincar em rachaduras vermelhas, quase lacrimejei com a pressão sobre eles, ficou apenas uma pequena poça no canto do olho, na iminência de escorrer sobre meu rosto, mas não caiu. Eles riam de mim.

- Ôh... olha Abraão, ele vai chorar! Hahaha! – Ria Alex com sua voz aguda de deboche – Que otário, deixa de ser mole! Assim não vai dá nem graça...

Esfreguei os olhos para remover a lágrima pendurada nos cílios, a respiração estava forte como se meu corpo estivesse suplicando por mais oxigênio. Minhas mãos se fechavam involuntariamente, sentia meu corpo arrepiar, era uma sensação explosiva. Subiu-me uma vontade desordenada de bater de frente com eles, a garganta já havia destravado, a língua ficara úmida novamente. Empurrei a cadeira na direção deles. Consegui enfim cortar o riso deles e fazê-los sérios. Seus olhos ficavam esbugalhados. Aquele meu atrevimento mostrou a eles que estavam enganados em achar que eu agiria passivamente, mas me custaria caro opor-se àquela opressão.

- Está aí sua gloriosa cadeira – Disse com a voz trêmula, enquanto puxava outra cadeira para colocar no mesmo lugar.

O olhar deles condenava o quanto estavam surpresos com minha audácia. O bobo da corte olhava para o rei como quem diz: faça alguma coisa, vai deixar assim? O Índio finalmente tirou o olhar da porta para prestar atenção em mim. Depois de uns quatro segundos, que talvez fosse para mim um minuto de silencio, ele usou sua voz.

- Tu é doido é? Ta vacilando mermão, ta vacilando?! Cai pra dentro otário, quero ver se tu é homem agora! – Disse empinando o queixo em cada sílaba tônica que pronunciava.

- Aê! Agora o negócio vai ficar bom! – Ria Alex tremulando a cabeça.

- Não, você não disse que queria a cadeira? – Falei com os olhos frios.

- Mermão, tu quer levar um tapa bem aqui? Olha esse doido, querendo bater comigo. Se liga rapá!!! – Disse içando os braços como quem diz: “E aí?” – Olha pra ti.

- Achei que você só queria a cadeira... – Disse com a voz firme, sustentada pela coragem que eu não sabia dizer de onde vinha.

- Achei que só queria a cadeira... hahaha, que otário! – Imitava Alex minha voz num tom fino de garotinha assustada – É um Zé Ruela mesmo, já tá se borrando todo.

- Eu quero é o lugar! Deu pra entender agora ou quer que eu desenhe? – Gritou em meio alguns palavrões.

- E por que não pediu o lugar ao invés da cadeira? – Disse num tom mais alto.

- Sai logo magrelo! Antes que eu quebre teus dentes – Gritou me dando um empurrão.

- Sai logo rapá, tu vai ficar bangelo! Hehe – Continuava Alex em provocando.

Eu baixei a cabeça como quem pede forças a uma entidade. Ao levantar a cabeça percebi que estávamos rodeados de pessoas de várias salas, todos assistindo ao grande espetáculo da minha inevitável queda, inclusive a garota da linha de frente feminina e a de cabelos verdes. Eu mal havia chegado àquela escola e já seria ridicularizado dessa forma? Que droga! Então eu o empurrei forte de forma que ele caísse por cima dos colegas e saí correndo rumo à secretaria, onde ele não poderia me fazer nenhum mal, mas depois eu teria que pensar em outra coisa para despistá-lo.

Corri feito um louco trombando nas pessoas do corredor. As pessoas riam de mim e o Abraão já estava logo atrás de mim, quase me alcançando. Minha barriga começava a doer, mas eu não podia parar, precisava chegar ao menos na secretaria. Quando já estava no pátio, onde havia várias pessoas, meu corpo veio ao chão numa pancada estridente que fez todo meu corpo estremecer. Ele havia me alcançado e me derrubou com um soco bem sonoro nas costas que chamou a atenção de todos por ali. Eu não era nada, ninguém veio sequer me ver, ficavam apenas me olhando de longe fingindo pena, aquilo que dava nojo. Demorei um pouco ali estirado no chão até conseguir recobrar o fôlego enquanto as pessoas passavam por mim olhando de canto. Pessoas da cidade são assim: não oferecem ajuda, mas adoram assistir a desgraça alheia.

Levantei-me e procurei um lugar ermo para descansar e pensar em algo. Eu não poderia chamar a diretora, pois ela só o chamaria, daria uma advertência ou coisa assim e ele se encheria de mais raiva comigo, o que só agravaria as coisas. Eu precisava agir por conta própria, fazer minhas próprias armas, e eu sabia que era capaz, só precisava pensar.

Voltando a sala, o professor já havia começado a falar sobre a sua matéria. Era o Professor Rubens, de matemática, homem de altura mediana, cabelos pouco encaracolados e pretos. Por trás dos óculos e da barba tinha um olhar nada amigável e muito menos uma voz afável, que parecia pesar sobre todos na sala. Eu gostava de professores assim, que faziam valer sua autoridade. Abraão estava no fundo da sala, sentado no trono ladeado por seus cães treinados, com o ventilador acima ao seu dispor. O professor se virou para mim na porta me vendo com o uniforme sujo e suado como um mendigo.

- Você é dessa sala rapaz?

- Sou sim professor, me desculpe por interromper sua aula, posso entrar? – Disse com a voz triste de um cão sem dono, morto de vergonha.

- Porque mesmo que você está todo sujo? Parece que estava correndo – Disse inclinando o rosto como quem desconfia de algo.

- É que eu me atrasei professor, vim correndo.

- Sei... Estava jogando bola não é? Pois nem precisava vir, já que jogar bola e mais importante que matemática.

- Professor, eu não estava jogando bola, eu nem sei jogar isso! – Disse indignado, mas eu não poderia dizer que estava assim porque tinha levado uma surra – É que eu caí. Vim correndo pra sua aula.

- Meu rapaz, se você não respeita minha aula, você desrespeita a mim. Vai lá, pode continuar com sua bola, porque aula minha você não assiste mais hoje! – E fechou a porta como se eu fosse um estudante desinteressado como aquele que me socou nas costas. – Com licença.

- Droga, esse Abraão me paga! – Sussurrei.

- Tava se rolando no chão menino? – Perguntou uma professora que passava, magra e morena de cabelo cacheada, rindo com o canto da boca.

- Nada, só tava levando uma surra pra não perder o hábito – Disse fingindo naturalidade – Normal...

Aquilo era o fim: eu mal havia chegado à escola e as coisas já haviam se complicado dessa forma para meu lado. Fazer inimigos tudo bem, eu já estava acostumado, mas perder o respeito de um professor antes mesmo dele saber meu nome logo na primeira aula?! Foi a primeira vez que isso me ocorreu. Eu sempre fiz questão de tratar bem os professores e ganhar o respeito deles, e agora essa?! Tenho que correr atrás do prejuízo, ficar de mal com um professor é algo que eu abomino. Eu não queria ter uma fama de desleixado com um professor, sem falar que eu nem jogo futebol.

Então eu fui despejado do trono do rei antes mesmo de adentrar no castelo. Eu era um mero camponês próximo ao seu estandarte. Mas o que mais me deu raiva foi ver o sorriso daquele palhaço bobo da corte enquanto a porta se fechava, fazendo gestos obscenos. Fui feito de idiota na frente de um professor, e o Rubens não era só qualquer um, era o professor de matemática, e parecia dar sua aula muito bem. Sujar minha imagem para um professor é algo imperdoável. Pra mim estava declarada a guerra, aquelas orelhas de abano vão pagar caro.

Marcos Paulo Silva
Enviado por Marcos Paulo Silva em 29/12/2010
Reeditado em 29/12/2010
Código do texto: T2698252
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