EM BUSCA DOS CRISTAIS MAIAS

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CONHECENDO AIRON

Não era simples passar pelos portais de fogo. Havia dois gárgulas enormes, cinzas, que se disfarçavam de estátuas e pulavam sobre a vítima quando se entrava pela saleta vermelha de Airon. Eles tinham espadas de aço feitas em Marte e enviadas pelo fantasma Kukus, braço direito do vilão Etromis, do reino negro de Wichwill. Essas espadas, no Airon, possuíam um grande poder: ao decapitar seus inimigos, se apoderavam de suas almas e, assim, brilhavam cada vez mais em uma tonalidade anil. Eu ainda possuía alguns fractais e eles iluminavam minha bolseta de couro. Eu sentia a energia. Me sentia forte para passar pelos gárgulas. Depois da saleta vermelha do salão das almas, não sabia o que me esperava. Apenas sabia que havia de encontrar mais fractais e poções de vida para conseguir destruir o rei Soulless, libertar a princesa Jade, filha do rei Miró, de Autun, e recuperar os três Cristais Maias que aliariam os reinos de Autun, Slim e Greenwood, em guerra há 13 séculos pela mácula do ladrão e desalmado rei de Wichwill. Mas primeiro, os gárgulas.

Parei junto ao primeiro portal e olhei os arredores. Andei mais uma vez pela Sala do Tempo, que foi a mais difícil de encontrar, pois a cada dia ela desaparecia e aparecia, ao novo amanhecer, em outro lugar, conforme a orientação energética. Só achei a Sala do Tempo depois de 47 horas de batalha, na província de Luce, bem como me informou o mago Meyer. Lá dentro, tive muito trabalho para destruir o exército de barro de Glinks, o general. Ele, Glinks, me esperava atônito em seu trono de lama, até que eu derrubasse o seu último guerreiro. Depois, levantou-se. Andou solenemente até o centro da Sala, apresentou suas armas como em saudação, e começamos o duelo. Eu me sentia fraco. Cansado. Mas nunca haveria de desistir. Por Jade e pela paz dos três reinos sagrados. Lutamos por longos minutos. Ele, com seu cuspe de lama mortal e espinhos que lançava pelas guelras douradas, me machucava muito a cada golpe. Contudo, me acertava pouco. Glinks era cinco vezes maior que eu. Tinha a aparência de um sapo gigante e marrom, oito braços e um largo pescoço, onde ficavam suas guelras assassinas. Eu, menor e mais ágil, o retalhava com minha espada de gelo cada vez que nossos caminhos se cruzavam, até que o derrotei, arrancando sua gorda cabeça. Seu corpo quedou e o silêncio reinou na Sala do Tempo. Ajoelhei-me. Agradeci ao mestre Ashtar em pensamento por todo seu ensinamento. Eu sangrava. Precisava de fractais e poções, que encontrei atrás do trono do imundo general. Havia tantas poções que me senti revitalizado e forte para encarar os gárgulas, que me esperavam adiante. Os fractais iluminaram de imediato a bolsa que ganhei do velho Ducan. Achei também um mapa, que guardei junto aos fractais. Sabia que iria usá-lo mais adiante.

Era a vez dos monstros de pedra. Os gárgulas gigantes de Airon, escravos de Etromis. Quando entrei pelo corredor escuro e encontrei os portais de fogo, eles ganharam vida. Levantaram-se e armaram-se: o bicho iria pegar. Me pus em guarda com minha espada de gelo enquanto Alfa e Beta me cercavam, grunindo e batendo asas. Aos poucos, se aproximavam. Sei que me temiam também. De repente, avançaram e...

- Tá na hora de desligar este computador, Duda. Você ainda nem tomou banho, garoto!!! Esqueceu da prova de matemática amanhã? Fica a noite inteira aí na frente deste computador e depois tem pesadelos. Já estudou? Acho melhor você ir dormir que o seu Nélson não vai esperar amanhã cedo. Ou você quer que eu chame seu pai?

- Ah, mãe... eu tava indo tão bem. Os gárgulas...

- Não quero saber de gárgulas, de bruxos nem de nada. Ou você desliga isto agora ou vou pedir pro seu pai vender este trambolho.

- Ah, mãe... só mais um pouquinho, vai...

- Nem um nem dois pouquinhos.

Primeiro acendeu a luz. Depois, desligou o estabilizador. Ainda bem que eu havia salvado o jogo na Sala do Tempo. Não ia ser nada bom passar de novo por Glinks e seu exército. Santo F9!!! Fui dormir pensando em como passaria pelo desafio da temida tia Rute, professora de matemática, e suas equações mortais.

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CONHECENDO DUDA

Seis e meia da manhã. O despertador me acordou aos berros. Deixa ele, pensei. Virei de lado e, quando me preparava pro cochilo gostoso, dona Helena, minha mãe, abriu a porta de pijama.

- Duda! Será o pé do cabrito? Levanta moleque! Olha a hora.

Eu acordava descabelado. Zonzo, ia até o banheiro. Naquele dia, nem consegui escovar os dentes. O seu Nélson, motorista, já buzinava a vizinhança toda.

- Calma seu Nélson! Já tô indo.

Entrei pela porta da frente, mas gostava de sentar atrás. O lugar da bagunça. Oba! Lá na frente era o lugar pro Mateus-quatro-olhos e sua turma. Eu gostava de ficar com o Diabo-loiro. Ainda mais que perto da roleta sentava sempre a Mariana, com aquele jeitinho de princesa. Uma pena que ela nunca me notava. Eu daria um dedo pra dar um beijo nela, igual aqueles que dava em sonho. Mas eu tinha vergonha: preferia chamar a atenção dela fazendo parte da “gangue” do Diabo-loiro.

Mas naquela manhã a bagunça foi pouca. Uma ou outra bolinha de papel cruzava o ônibus. Quase todas da turma da terceira, que não tinha prova. O pessoal da quarta, minha turma, estava folhando os cadernos da tia Rute, se preparando para a prova das dez. Inclusive a Mariana.

Mas me desculpe. Ainda nem acordei direito. Não tive nem tempo de me apresentar. Meu nome é Eduardo. Duda, pra família. Corujito, no colégio. Eu detesto minhas orelhas grandes. As da Mariana são tão lindas... Onde eu tava mesmo? Ah... Meu nome é Duda. Tenho 10 anos e estudo no Dom Bosco. Moro na praia, por isso o seu Nélson vem me buscar toda manhã. Minha mãe é a dona Helena. Ela é gordinha e usa sempre uns vestidos floridos e rolinhos no cabelo. Meu pai é o Joaquim. Ele tá sempre correndo pra lá e pra cá com uma pasta preta. É advogado. Acho que ele é milionário, pois dá muitos presentes pra mãe e muitas flores pra Lindalva, a secretária dele. A mãe não sabe. O pai pede pra eu não contar que ela vai ficar brava e a mãe brava tu sabes como é, diz ele.

No colégio, estudo na segunda sala depois do refeitório, à direita. Gosto de geografia e de educação física, mas detesto matemática. Adoro a Mariana... Mas não gosto muito da Julieta-cara-de-cachorro, que vive correndo atrás de mim. Detesto despedidas e novelas. Torço pro Dínamo e adoro jogos de dados. Amo de paixão sorvete de chocolate e odeio abacate e fruta azeda. Minha vó Sofia faz bolinhos fritos quando eu vou visitá-la e meu seu Édio me leva no clube, nos fins de semana de verão, pra tomar banho de piscina e jogar bola com o Pedrinho. Não sei empinar pipa, mas sei fazer o melhor castelo de areia da cidade. Coleciono figurinhas do Campeonato Brasileiro, pedras da sorte e gibis. Adoro ler as placas de trânsito quando viajo com meu pai, mas não aturo muito meu irmão Nandinho: ele tem só quatro anos e quer ser gente grande. Fica sempre querendo ir onde eu e os maiores vamos. Briga por causa do danoninho e fala sempre que vai contar pra mãe quando a gente discute. Mas de todas estas minhas características, a mais marcante é que sou louco por vídeo game. O pai me deu no último Natal um computador moderno: eu não entendo nada de computador pra dizer qual o modelo, a velocidade e tal, mas sei mexer nos programas como ninguém. Até ajudo a mãe a ler os e-mails. Mas o Profeta, que é um amigo do meu primo Tito, ele instala uns jogos pra mim, claro. O Profeta é hacker. Eu não sei direito o que é hacker, mas o Profeta é. De todos os jogos que o Profeta trouxe, os que mais gostei foi o futebol, um dos maguinhos que atiravam fogo e que não lembro o nome e o Pacman. Mas um dia eu disse pro Profeta que agora que já sou grande, que tenho 10 anos, eu queria os jogos que ele jogava. E ele instalou o Crystals of the Peace. Eu adoro! Se pudesse, nem dormia nem comia. Não entendo inglês, mas sei que o nome em português seria Os Cristais da Paz. O jogo é assim: você é um guerreiro e tem a missão de unir uns povos em guerra e recuperar...

- Duda... Chegamos!

- Vai descendo, Corujito.

Nossa... que gritaria! Que bagunça! Detesto quando o Diabo-loiro me dá tapa na cabeça... Meu colégio é azul e fica bem no centro da cidade. Quando a gente chega, todo mundo desce feito louco, correndo e arrastando suas mochilas pesadas e enormes. Menos a Mariana, claro. Ela é uma princesa. Parece que tá sempre desfilando. Vou pra sala da tia Rute. Eu nem estudei direito, mas seja o que Deus quiser.

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OS SEGREDOS DA BIBLIOTECA

- Alunos!!! Silêncio, por favor. Silêncio. Fábio, senta! Que foi Maurício? Não, hoje não. Silêncio!!!

A diretora sempre batia com a régua na mesa quando queria silêncio. Tia Dalva, o nome dela. Ela veio no lugar da tia Rute, que pegou uma forte gripe e não iria poder aplicar a prova hoje. Salvo pelo gongo, pensei.

- Hoje vamos à biblioteca. Cada aluno vai retirar um livro e trazer no dia 14 uma ficha de leitura, como a profe Luciana ensinou a fazer. Com o nomezinho, o título, o nome do autor, o resumo...

- Profe??? Pode ser qualquer livro?

- Não. Não pode ter muitas figuras e tem que ter mais de 30 páginas, Claudinha.

A Claudinha anotava no caderno as informações pela décima vez com suas canetas coloridas. A turma toda foi levantando e fomos até a biblioteca, que ficava no outro lado do pátio, perto da quadra esportiva. Eu adorava livros com figuras... principalmente os gibis, mas gibis não são livros, né? Droga! A tia Dalva era mesmo uma chata. Ficha de leitura...

A biblioteca era um lugar estranho. Era silencioso demais, não dava pra gente fazer bagunça lá dentro. Nem correr. E a Vânia, a bibliotecária, era uma mala-sem-alça. Era só a gente conversar um pouco e lá vinha ela com seu psxxxxxxxxx, pedindo quietude. Ela ficava nos cuidando por cima do óculos e eu (e até a Mariana) já tinha ouvido ela comentar que a turma da quarta é um terror. Eu fui caminhando, de frente para as estantes, procurando algum livro que me chamasse atenção. O cachorrinho Samba não. Escaravelho do Diabo não. O menino de asas, que legal!!! Mas acho que não! Que é isso? Memórias Póstumas de Brás Cubas? Cruzes, que grosso. Acho que eu levaria a vida toda lendo. E nem tem figuras.

- Corujito!? Olha só o que eu peguei! Em busca do templo perdido!

Olhei pra trás e era a Mariana. Nunca Corujito tinha soado tão bonito. Ela veio me mostrar o livrinho que escolheu. Deixa ver, falei. Acho que nunca havia chegado tão perto dela. Só na primeira série, quando ela me puxou o cabelo. Linda... Princesa.

- Não vai olhar o livro Corujito? – disse ela. Já escolheu o seu?

- Ainda não. Tava pensando em levar este, ó! Memórias ‘bóstumas’ de... Póstumas de Brás Cubas.

- Nossa! Você vai ler tudo isso?

- Eu adoro ler!

Que mentira minha! Ela sorriu e saiu. E eu passei por intelectual. Até gostei. Acho que vou levar... Será? Não... eu posso ser burro mas não sou louco. O Sítio do Pica-pau Amarelo! Monteiro Lobato. Que nome engraçado... é esse.

Escolhi o livro e saí, junto com o Diabo-loiro, que não pegou nenhum, o Maurício e o Claudinho-cabeça-de-mula. A Mariana vinha atrás, com as outras meninas. Passamos a quadra e voltamos à sala de aula. Ventava. Eu acho até que iria chover. Bem que a mãe disse pra eu pegar um suéter. Mãe tem sempre razão. Que saco!

Nem havia terminado o recreio e a turma estava na sala. Já chovia. Todo mundo corria, gritava, era guerra de bolinha de papel, aviãozinho, uns riscavam no quadro-negro. Eu joguei algumas partidas de jogo-da-velha com o Cabeça-de-mula e olhava pela janela. Na verdade, estava louco pra chegar em casa e jogar o Crystals of the Peace. Já estava chegando nos gárgulas. Tinha poções. Será que o jogo salvou mesmo? Como vou fazer pra sair do Airon? O que vem depois? Nossa mãe: a ficha de leitura! Que saco! Vou fazer assim: hoje jogo computador tudo o que eu conseguir, amanhã nem ligo ele e parto pra cima do livro do Lobato. Isto mesmo. É bem isso. Onze e meia. Que bom que é quando a tia Rute não vem. Logo logo vai dar o sinal. O seu Nélson já deve até estar esperando.

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A VIAGEM QUADRIDIMENSIONAL

Seu Nélson me deixou em casa. Chovia forte e ele já estava todo molhado de abrir e fechar a porta da van a cada criança que descia. A mãe espiava pela janela, puxando levemente a cortina pro lado. Ela tinha feito cachorro-quente pra me esperar, pois sabia melhor que ninguém o que eu gostava. O pai não estava. Normal: ele sempre chegava tarde. Fui direto pro quarto, joguei a mochila na cama enquanto ligava o estabilizador: os gárgulas iriam ver o que é bom pra tosse, pensei. Alguns minutos depois, minha mãe entrou no quarto, com o lanche.

- Já no computador, Duda? Mal chegou e já vai se pendurar neste troço... Não tem dever de casa não? Como foi de prova?

- A tia Rute não foi mãe. Tá gripada. A gente foi pra biblioteca. Retirei um livro, O Sítio do Pica-pau Amarelo, dum tal de Monteiro Lobato. Vai ter ficha de leitura.

- Tá bom. Vem comer o cachorro-quente. Já vou te trazer o refrigerante. Desliga isso Duda. A chuva tá forte e pode cair um raio e queimar o computador. Teu pai pagou os olhos da cara nisso. E tu bem sabes como teu pai é quando fica bravo, não é?

Recomendações de mãe... Às vezes minha mãe parecia mais nervosa que os gárgulas ou o próprio Glinks, o general. Eu disse tá bom, ela saiu, eu inseri o CD-Rom: tinha uma missão a cumprir, embora a dona Helena não entendesse. Insert disc, play game, load game, last game, loading... feito: a batalha recomeçaria.

Lá estava eu, com minha espada de gelo. Glinks, o general, estava morto, caído no chão com seu exército. Os gárgulas me esperavam, e eu concentrava energias para entrar no Airon.

De repente, um raio cortou o céu escuro. Pelo que me lembro, foi o maior que já vi. Cabrumm!!! O som veio logo depois. As luzes piscaram e, a última coisa que me lembro antes de desmaiar foi de ter levado um grande choque, que me lançou ao alto e deixou minha cadeira rodando no quarto vazio. Quando a mãe entrou, trazendo o refrigerante, não encontrou nada além da tela escura do meu PC. Ela deixou o copo cheio sobre o CPU e me procurou no banheiro, na sala-de-estar e até no pátio molhado pela densa chuva. Mas não adiantava mais nada: eu já havia começado minha viagem pelo mundo de magia.

Acordei num local escuro. Levantei zonzo, como nas manhãs em que o seu Nélson buzinava pelo meu atraso. Olhei ao redor e notei que não estava em casa. No chão, uma espada de gelo. Ao lado, Glinks, o general, que começava a feder e a juntar moscas para o banquete que se tornou o seu quartel. Atrás de seu trono, duas poções: uma rosa e uma amarela. Peguei os frascos e tomei o líquido, que tinha gosto de suco de frutas. Reparei que levava comigo uma pequena bolsa de couro, onde coloquei quatro fractais que brilhavam intensamente. Me senti revigorado, vivo. Não havia portas laterais e uma imensa grade interrompia a passagem atrás de mim. A única saída era um grande corredor que levava aos portais de fogo. Mais adiante, encontrei um mapa, feito em papiro antigo. Coloquei-o na bolsa para utilizá-lo quando fosse necessário. Com os fractais encontrados, iluminei o caminho e pude ver, sentados sobre grandes pedras quadradas, dois gigantescos monstros: os gárgulas Alfa e Beta. Aí então percebi, de fato, que o raio havia me transportado para dentro do Crystals of the Peace: agora eu não era mais o filho da dona Helena e do seu Joaquim, advogado. Eu era o guerreiro Ex Aravex.

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NOS RASTROS DE ETROMIS

O fractal verde começou a brilhar em uma intensidade tamanha que era impossível olhá-lo sem cingir os olhos. Tirei-o da bolsa e ele iluminou todo corredor que até Alfa e Beta e os portais de fogo sumiram na luz. Repentinamente, ele foi enfraquecendo e surgiu a imagem do velho mago Meyer, que flutuava em minha frente.

- Meyer? – perguntei.

- Ex Aravex, meu amigo guerreiro. Eu sei de tudo o que aconteceu e de sua viagem quadridimensional para dentro do mundo de Etromis. Você tem uma grande missão agora e o povo de Autun, Slim e Greenwood precisa ser salvo da maldição do perverso rei Soulless. Cada tribo acredita ter sido roubada pelas outras, pois os três Cristais Maias, quando unidos, têm um poder mágico de transmitir a paz e o amor ao povo e devolver as cores que, com eles, foram roubadas das províncias. Mas quem possui os três Cristais Maias é o próprio Etromis, e ele os mantém isolados na Caixa Negra de Mamba.

- Mas Meyer... eu gostaria de poder ajudar... mas tenho questões a fazer. Um: como faço pra voltar pra casa? E dois: por que Etromis e Soulless não se tornam bons se possuem os três Cristais Maias?

- Meu menino... você só conseguirá sair da quarta dimensão quando devolver a paz aos povos e libertar a princesa Jade, filha de Miró, que está presa na torre do castelo de Wichwill, o Palácio da Morte. Já quanto aos Cristais Maias, eles estão com o poder limitado pela Caixa Negra de Mamba, a bruxa que os guarda na masmorra de Wichwill. Sem os cristais, Autun, Slim e Greenwood estão condenados a viver na tristeza do preto-e-branco e em guerras por toda a eternidade. Só você poderá ajudá-los, meu amigo.

Meyer foi desaparecendo, mas eu ainda tinha muitas perguntas.

- Meyer... como faço pra te encontrar de novo?

- O fractal verde... encontre o fractal verde, ele é o portal...

- Mas Meyer...

O mago sumiu por entre as sombras da parede. A luminosidade baixou e pude reparar o ambiente, no qual dois imensos gárgulas me cercavam, grunindo e batendo suas horripilantes asas. Consegui pular a tempo de escapar do golpe do grande rabo de Beta e do fogo cuspido por Alfa. Com minha espada de gelo na mão, eles mantiveram distância. Mas por muito pouco tempo: embora soubessem do poder da minha espada, sua sina era me atacar. Sacaram suas espadas marcianas enviadas pelo fantasma Kukus: elas reluziam o aço e, pela primeira vez, no vermelho Airon, tive medo.

Se aproximaram e lutamos. Diferente do meu cotidiano como Duda, na quarta dimensão eu sabia empunhar a espada. Os golpes que trocamos fez saltar pedaços de aço e gelo por todos os lados e, além das espadas, eu também tinha que me defender do fogo e do rabo dos gárgulas, que a cada passo que davam faziam desmoronar pedras do teto.

Saltei sobre a tumba que havia no centro de Airon e arranquei a asa de Alfa, num golpe rápido e preciso. Depois, rolei pelo chão e, com a espada sagrada, amputei o pé de Beta, que caiu. Ambos urravam, mas teimavam em continuar a luta. Eu tinha que aproveitar o momento, e assim o fiz. Pulei sobre os ombros de Alfa, que sangrava muito, e degolei-o. Quando sua cabeça caiu ao chão, Beta me atacou. Me acertou com sua grande cauda e me lançou contra a parede rubra. Sentei, desorientado. Beta, rapidamente, veio para cima de mim, abriu sua grande boca e me desferiria uma mordida fatal se eu não levantasse a espada de gelo e atravessasse seu grande pescoço. Beta caiu novamente. Levantei-me, retirei minha espada de seu corpo inerte e imediatamente um fractal branco e uma poção violeta apareceram sob a tampa da tumba, que se abriu sozinha. Peguei os itens. A poção, mais uma vez, me revigorou. O fractal, guardei: sabia que ele se comunicaria quando chegasse a hora.

Da tumba aberta, surgiu uma grande escada que descia rumo ao desconhecido. Dela, milhares de almas começaram a sair e, através dos portais de fogo, sumiam ao infinito. Eu entrei na tumba e segui a escada, que se tornou um corredor escuro e, depois, uma grande porta de metal. Abri e saí em um pântano sombrio. Senti que algo vibrou na sacola que ganhei de Ducan: era o mapa. Ele mostrava o caminho de Wichwill. Eu precisava atravessar o pântano na direção das Montanhas Gêmeas e assim, comecei uma longa caminhada, com a estranha sensação de estar sendo observado.

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KUKUS E O FRACTAL DO BEM

Havia duas luas no céu: uma maior, de tom cinza claro, e outra menor, muito brilhante, que irradiava uma luz de tom laranja. A luminosidade aumentava as sombras do pântano assustador em que me encontrava. Da água saía uma fumaça clara e os sons que vinham de todos os lados aumentavam o suspense. Eu caminhava, guiado pelo velho mapa e pelas Montanhas Gêmeas. Sentia que estava chegando cada vez mais perto de Wichwill e que meu encontro com o rei Soulless não tardaria. Mas agora eu tinha mesmo é que cruzar pela escura mata pantanosa e sua luz laranja, que penetrava pelos pequenos espaços entre as folhas das árvores. Eu nunca imaginei que conseguiria cruzar por uma floresta de noite e sozinho. Mas na verdade, eu não estava sozinho...

Desde que saí do corredor da tumba do Airon comecei a ter uma forte sensação de que alguém me vigiava. Eu precisava andar rápido, mas também na direção certa, pois o pântano era perigoso e ficar andando em círculos não seria nada bom. Posicionei meu norte nas Montanhas do horizonte e as luas no céu: elas poderiam me guiar se entrasse em apuros, embora da mata densa nem pudesse vê-las direito. De repente, senti a bolsa de couro vibrar. Abri: era o fractal branco, que começava a brilhar mais a cada passo que dava. Pensei ser minha aproximação de Wichwill, mas estava enganado.

O fractal branco brilhou, brilhou e brilhou que chegou até a elevar sua temperatura, ficando quase impossível segurá-lo. Foi então que senti ser empurrado fortemente contra uma árvore. Com o impacto de meu corpo contra o caule, o fractal branco voou de minha mão, diminuindo o seu brilho imediatamente. Ainda abalado, recorri o lugar com os olhos, buscando entender o que havia acontecido, e percebi um vulto negro, um fantasma. Aquele ser era muito estranho, pois possuía a forma de um corpo humano, mas sua face não tinha boca ou nariz ou orelhas: apenas dois grandes olhos vermelhos, e seu corpo não era corpo, mas sim uma sombra semitransparente negra que se confundia com as outras sombras do pântano.

- Quem é você? – perguntei. - O que você quer?

Aquela coisa começou a gargalhar entre as sombras da noite. Depois dos risos, uma breve pausa.

- Você acha realmente que poderá resgatar a princesa Jade e recapturar os Cristais Maias? Moleque! Você acha que meu amo Etromis e meu rei Soulless não sabem de tudo?

Aquelas risadas me desafiavam. Queria saber o que estava acontecendo. Quem era e onde estava aquele ser que falava em nome do mal?

- Quem é você? – repeti.

- Sou Kukus, o mensageiro. Estou aqui para matá-lo.

Saquei minha espada de gelo. As poções que havia tomado tinham me dado força. Eu estava pronto para o fantasma Kukus. Agucei meu olhar, o procurando no escuro. Com a espada em riste, me guardei. Sentia-me protegido de costas para uma grande árvore. Repentinamente, levei um forte golpe na cabeça, que me derrubou e me fez perder a espada também. Tentei levantar, mas outro e mais outro golpe depois me fizeram cair novamente. Entre mais gargalhadas, Kukus me batia. Eu, que não conseguia me erguer nem me defender, rastejava. Kukus me tirava muita energia com suas pancadas, e ria. Ria muito.

- Você não deveria estar aqui... Você nunca vai livrar os povos da maldição de Soulless. Eu vou acabar com você.

E o monstro de sombra continuava a lançar suas ameaças e avisos do que eu deveria ou não fazer, enquanto eu fugia. De repente, encontrei o fractal branco, que havia perdido com a batida na árvore, no chão. Quando o segurei, ele iluminou os arredores, fazendo todas as sombras desaparecerem. Todas, menos Kukus, o fantasma, que ficou paralisado, olhando para o item mágico. Consegui me aproximar, e percebi que Kukus não se movia.

- Pare!!! Pare com isso. Afaste esta coisa de mim! – gritava o monstro.

Me aproximei definitivamente. Cheguei tão perto que consegui notar os traços de seu rosto e os detalhes de seu olhar. Senti até o cheiro de seu hálito e o som de sua respiração. Mas Kukus não se movia. O fractal, que agora brilhava como nunca, vibrava em direção ao corpo do mensageiro do mal. Eu, então, concentrei as minhas forças que ainda restavam e, num golpe intenso, cravei minha mão com o fractal branco no coração de Kukus, que parou de gritar. Então, sua luz negra foi se transformando, dos pés à cabeça, e o monstro de sombra começou a perder aquela forma assustadora. Seu corpo foi mudando, adquirindo um aspecto luminoso. Soltei o fractal dentro de seu peito e dei dois passos para trás, observando surpreso aquela mágica mudança. Kukus, o fantasma, virou um ser de luz. Uma fada. Seu rosto escuro tomou forma de um lindo anjo, com um belo sorriso e grandes olhos azuis. Seu corpo era luz clara e ela, num pulo, lançou uma magia e todo o pântano escuro e sinistro se transformou em uma mata clara, de água límpida e vento fresco. Me surpreendi com as cores das folhas e flores que se abriam continuamente por todos os lados, dando vida às árvores secas. Os pássaros voltaram a cantar e as borboletas faziam carrossel em bando. A fada baixou em dança e se aproximou: o fractal a havia libertado.

- Sou Gesebel, a fada do Vale do Alento. Fui escravizada por Etromis há milênios, mas agora você me libertou e trouxe a vida de volta ao meu lugar. Eu estava presa no Vale das Sombras e a magia da bruxa Mamba me transformou em Kukus, o fantasma de sombra. Durante muito tempo meus poderes foram usados para o mal, mas graças a você, Ex Aravex, estou livre. Como posso ajudá-lo?

- Preciso encontrar Etromis e resgatar a princesa Jade, de Autun, e os três Cristais Maias, para devolver as cores e a paz aos três reinos sagrados. Como chego em Wichwill?

- Você está perto das Montanhas Gêmeas. Deverá passar por elas e chegar à Ponte dos Mistérios, onde a bruxa Mamba esperará por você, pois Soulless a ordenou que não permitisse que você passasse para a Planície dos Egos. Ela tem uma bola de cristal e deve estar nos vendo agora.

Por fim, Gesebel me deu três poções verdes e pediu para que eu as tomasse antes de chegar à Ponte dos Mistérios. Elas me fortaleceriam pra enfrentar a feiticeira Mamba e chegar às barbas de Etromis.

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GUSMAN E O COGUMELO DE YACULTA

Andando pelo Vale do Alento, cheguei ao sopé das Montanhas Gêmeas, para uma subida íngreme e longa. A vegetação mudou um pouco: havia menos árvores e mais folhagens. Eu seguia em direção ao lado norte, onde encontraria, segundo Gesebel, a Ponte dos Mistérios e a bruxa Mamba.

Juntei na beira de um pequeno lago de água amarela um cajado, para auxiliar na minha peregrinação topo acima. Andando com ele eu atingia um grande nível de concentração e meditação, sempre buscando as mensagens telepáticas do mestre Ashtar e do mago Meyer, que sentia sempre perto. Assim andei por horas e horas entre as montanhas que o tempo moldou idênticas.

Depois de algum período de concentração, fui despertado pelo som de uma cascata, quase no topo da montanha, que surgia de dentro da rocha e trazia água de dentro do coração de cristal do planeta e formava o Lago da Juventude de Yaculta, juntamente com a cascata que vinha da outra montanha. Sobre o Lago da Juventude de Yaculta havia uma grande ponte, que levava à Planície dos Egos: era a Ponte dos Mistérios. Era a ponte de Mamba, a feiticeira. Parei próximo à cascata, para beber água e descansar. Foi aí que ouvi uma risadinha fina que foi seguida de uma voz engraçadinha, como de uma criança pequena.

- Que roupa engraçada... ririri. Você deve ser Ex Aravex, o guerreiro. Estou certo?

- Sim. Sou eu. E quem é você? – respondi surpreso à presença daquele duende. Era um ente pequeno, com corpo humano. Mas possuía três olhos e suas mãos, como pude reparar, possuíam uma membrana natatória.

- Sou Gusman, o duende do Lago da Juventude de Yaculta. Eu espero por você há vinte e oito mil anos. Seja bem-vindo, meu amigo. Você é o enviado.

Sorri. Aquele adjetivo “enviado” soou como um elogio. Me senti importante. Mas não deveria: minha missão era muito maior do que meu status: devia ser já a influência da Planície dos Egos. Perguntei como ele poderia viver por tanto tempo.

- Amigo Aravex... Você esqueceu que está em um mundo mágico. Além do mais, eu moro no fundo do Lago da Juventude de Yaculta: não posso envelhecer e, por isso, sou sempre criança. Mas embora meu corpo não evolua, meu amigo, minha experiência se acumula. Por isso, você precisa, antes de enfrentar a bruxa Mamba, vir comigo. Tenho que lhe dar uma coisa. Coma isto. – disse ele, me oferecendo um ramalhete de flores transparentes.

- O que é isso? – perguntei.

- São flores de oxigênio. Vão lhe ajudar a respirar embaixo da água do Yaculta. Precisamos buscar o cogumelo-flor de Robe Fiancé, que nasce no solo sagrado do Lago da Juventude. Você precisará dele para voar. Agora, venha comigo.

Gusman mergulhou. Eu entrei atrás dele, após comer as flores transparentes de oxigênio. Quando submergi, me preocupei em não conseguir respirar. De fato, nem respirava. Não era preciso. São as flores, disse Gusman, sorrindo. Nadamos no profundo lago até que pude ver a casa de conchas de Gusman. Ao lado, havia um tapete branco de cogumelos-flores lindos e compridos. Eram os Robe Fiancé. Gusman coletou alguns e voltamos à superfície, depois de nadarmos entre peixes de múltiplas cores.

Já fora do lago, Gusman pediu que eu comesse aquelas plantas também. Disse que eu não tivesse medo do que aconteceria depois, pois eu chegaria muito mais rápido à Ponte dos Mistérios se fosse voando. E, seguindo os conselhos do pequenino ser, as comi. Ele me segurou pela mão e me levou numa longa caminhada até uma grande pedra que ficava na beira do penhasco. Na frente, o penhasco da outra Montanha Gêmea.

- Vá, amigo! Pule.

- Não posso, Gusman. É muito alto.

- Lembre-se de que o medo é o contrário do amor. Não tema e será um vencedor. Agora pule e boa sorte.

Respirei fundo, abri os braços e saltei. Meu corpo foi desabando, desabando, se aproximando das pedras. Eu não conseguia fazer nada, a não ser cair. Foi quando ouvi a voz de Gusman, num grito forte.

- Acredite que você voa. Você é um pássaro, Aravex.

Foi então que abri as asas e planei. Consegui, com algum esforço, me equilibrar no ar. Eu, de fato, voava. Batia minhas asas em um ritmo harmônico e sobrevoei as montanhas, junto com outras águias e condores. Vi as duas cascatas, o laguinho amarelo, vi o Yaculta... Lindo!!! Gusman me acenava, pulando e brincando. Sorria. Tornei ao norte e pude ver, ao longe, a Ponte dos Mistérios. Atrás dela, a Planície dos Egos. Minha próxima parada.

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MAMBA E A PONTE DOS MISTÉRIOS

Durante o sobrevôo sobre as Montanhas Gêmeas, pude notar um grande ninho, que ficava em cima de uma pedra no meio do penhasco. Desconheço o tipo de ave capaz de fazer um ninho num local tão assustador, mas o que me interessava neste ninho não era a espécie de animal a que pertencia, nem ovos, nem filhotes. O que me chamava ao grande ninho de galhos era um fractal verde, o portal para o contato com o velho mago Meyer.

Fiz uma breve observação do vento que batia, analisei sua direção e intensidade. Tudo mental e telepaticamente, como fazem os pássaros. Abri bem as asas e, costeando a gigantesca parede de pedras, pousei. Junto ao fractal havia uma poção luminosa que pus na bolsa. Segurei firme o fractal que, assim como da primeira vez, brilhou intensamente. Meyer apareceu.

- Aravex, meu amigo guerreiro. Que bom vê-lo!

Meyer estava de pijama verde. Parecia ter sido despertado. Sua touca e sua cara de sono evidenciavam isso.

- Eu estava tirando uma pestana, Aravex. Mas já era hora de nos vermos. Você está indo bem, meu amigo. Soulless observa pela bola de cristal de Mamba, a feiticeira. Ela lhe espera na Ponte dos Mistérios.

- Eu sei. – respondi. É pra lá que estou indo.

- Meu amigo, as nações sagradas torcem por você. Muito cuidado com a Planície dos Egos: ela é amaldiçoada. Sentirás as energias tentando impedi-lo de cumprir sua missão. A princesa Jade, de Autun, sente que você se aproxima e Soulless pretende fazer com ela um ritual mágico para gerar um herdeiro sem alma que dominará o mundo e cumprirá a profecia de destruir todos os reinos que não forem fiéis a ele e ao mal. Você não tem muito tempo, Aravex.

- Meyer... Como faço para destruir Mamba?

- Use a poção luminosa das verdades: ela impedirá você de mentir. A mentira fortalece a bruxa, lembre-se disto.

- Mas Meyer... Como...

Era tarde: Meyer esvaiu-se como fumaça. Assim que ele desapareceu, surgiu um condor gigante, provavelmente o dono do ninho em que me encontrava. A ave me atacou e, com seu enorme bico, me empurrou penhasco abaixo. A poção luminosa caiu primeiro. Precisava buscá-la e não poderia perder tempo com a ave gigante, que voou atrás de mim. Ela estava no seu lugar: eu era, ali, o invasor. Não havia por que lutarmos. Enquanto o grande condor me seguia, eu seguia a poção luminosa das verdades, voando em altíssima velocidade rumo ao chão, desviando dos galhos e pedras do penhasco e tentando pegar o precioso líquido, que caía, caía.

Embora aquela situação representasse um grande perigo, sempre acreditei que conseguiria. Ora bolas: minha mente devia me obedecer. Eu tinha livre-arbítrio: se naquele momento eu era um pássaro, por que não ser o pássaro mais veloz de todos os mundos? Acreditei que era e consegui pegar a poção. Desviei rapidamente do chão, que agora era muito próximo, e subi. Mas o condor gigante descia e iria me pegar. Iria, se não fosse uma fenda na rocha na qual me escondi, sem que o animal percebesse. O grande pássaro passou em minha procura e eu, livre, voei na direção de Mamba.

Cheguei à Ponte dos Mistérios pelo lado sul. Aterrissei alguns metros antes de alcançá-la. Dali para a frente, iria caminhando. Lembrei das três poções verdes que ganhei da fada Gesebel e as procurei na bolsa de couro. Tomei-as e me senti, de imediato, fortalecido, mas deixei a poção luminosa das verdades guardada para o momento certo. Ao pôr os pés sobre a grande ponte, senti vontade de me olhar no espelho, pois meu cabelo parecia desajeitado depois de tanto vôo. Reparei também nos meus músculos e notei o quanto aquele corpo de guerreiro era maior e mais bonito que aquele que eu possuía na terceira dimensão. Era a Planície dos Egos agindo sobre minha mente.

Quando percebi a atuação fútil do mal na Planície dos Egos, senti que poderia perder muita energia na batalha com Mamba. Me preocupei, pois vencedor é quem se vence e a pior batalha é a que lutamos contra nossos próprios limites. E, enquanto pensava, andava. E foi caminhando que recebi o primeiro ataque da bruxa Mamba, que apareceu repentinamente, voando em sua velha vassoura de palha, e me lançou cinco bolas de fogo, gargalhando como de costume para as más feiticeiras. Eu, rápido como sempre, mas temendo como nunca, levantei-me e fiquei atento a seu ataque. Mamba voou até a outra ponta da ponte, fez a curva e se aproximou, pousando a cerca de cem metros a minha frente.

Já no chão, Mamba lançou um feitiço e a velha vassoura se transformou em um dragão verde, que cuspia fogo. Destructor era seu nome.

- Aproxime-se, Aravex. – disse a bruxa má.

Andei mais alguns metros e parei, longe o bastante da velha sibila e de seu “bichinho” de estimação. Claro que pensei que, com seu poder, Mamba poderia me destruir em pouco tempo. Mas, sabe-se lá... Eu estava em um mundo mágico, na Ponte dos Mistérios, num caminho sem volta... Percebi então que nem Mamba sabia o que ocorreria. Tomei a poção das verdades e falei:

- O que é, bruxa Mamba? Estou rumo a Wichwill, o Palácio da Morte. Se saíres de minha frente agora, permitirei que você viva.

- Rárárárá... Garoto insolente. Estúpido. Eu e Destructor podemos acabar com você em poucos segundos. Você tem sorte de estar na Ponte dos Mistérios: ela impede, misteriosamente, é claro, que se mate qualquer ser vivo sobre suas pedras. Mas para você passar por ela, menino tolo, terá que responder a três perguntas que lhe farei. Nunca alguém passou por meus desafios e não será você, garoto idiota.

Fortalecido pela poção luminosa das verdades, concentrei no que me dizia o coração. Caminhei para mais perto ainda da feiticeira do mal. Destructor, o dragão assassino, como um cão ensinado, aguardava pelas ordens de sua tutora, enquanto babava de ira ao me olhar.

- E se eu acertar, Mamba?

- Se você acertar, serei enviada ao Vale do Alento e poderá seguir a sua estrada.

- Então fale, bruxa. Não tenho tempo a perder.

Neste momento, Mamba lançou treze pedras no chão e pediu para que eu escolhesse três. As pedras eram dos mais variados tamanhos, formas e cores. Escolhi um rubi vermelho, um quartzo rosa e uma rocha de Urano. Joguei as pedras na direção de Mamba, que pegou o rubi entre suas longas unhas.

- Rubi vermelho... a pedra do amor. A Ponte dos Mistérios quer saber o que é o amor, Aravex. O que é o amor?

Nessa hora, lembrei-me de Gusman.

- O amor é o contrário do medo.

Quando eu terminei a frase, a pedra explodiu. Se fez em milhões de cacos e evaporou-se. Mamba arregalou os olhos: estava surpresa. Uma resposta rápida e curta para algo tão complexo. Apenas eu, Gusman e a alma da grande ponte sabíamos do que estávamos falando. Mamba pegou, rapidamente, o quartzo rosa.

- Quartzo rosa. A pedra do coração. Do amor próprio. Da vida. A Ponte dos Mistérios quer saber, Aravex, qual o segredo da vida? Por que se vive e onde se busca chegar?

- A vida não tem segredo. A vida não é a pergunta: a vida são as respostas.

O quartzo rosa, assim como o rubi, se fez pó. Mamba, agora respirando atônita e nervosamente, pegou a pedra de Urano. Eu sabia que ela estava temendo, pois a rocha de Urano era a pedra decisiva. Um de nós seria destruído.

- Urano. O sétimo planeta. Pai de Titã, Saturno e Oceano. O planeta do egoísmo. O Deus do céu. Aravex, a Ponte dos Mistérios quer saber qual a verdade sobre outras dimensões, outras vidas, céu e inferno?

- Verdade? Não existe verdade, Mamba. Existe a Sua e a Minha Verdade.

Com esta resposta, a rocha de Urano sucumbiu. Toda Ponte dos Mistérios, neste momento, começou a tremer, em um grande terremoto. Mamba e Destructor gritavam: aos poucos iam desaparecendo, como fumaça. Enquanto sumiam rumo ao Vale do Alento, onde seriam reeducados por Gesebel e receberiam a carga de amor e luz necessária para forjá-los grandes guerreiros da paz, acho que pude ouvir a voz da feiticeira dizendo que eu nunca chegaria, que não conseguiria e estas coisas, enfim. Mas eu sabia que conseguiria. Eu acreditava, e o mundo nada mais é senão aquilo em que acreditamos. Ajoelhei-me e orei: agradeci ao mestre Ashtar e ao mago Meyer, meus guias, e a todas hierarquias de luz. A Ponte dos Mistérios floriu: estava aberta pela primeira vez.

Passei o grande desafio da bruxa Mamba e adentrei, de vez, na Planície dos Egos. Agora já podia ver Wichwill, dentro das nuvens negras que o cercavam. Caminhando, meditei: sempre concentrava quando andava. Como eu pude acertar as respostas? Não era apenas a poção luminosa das verdades, era o eu-criança. E criança sempre sabe tudo.

9

ETROMIS E O PALÁCIO DA MORTE

Andei dois dias e uma noite até chegar em Wichwill. Um enorme castelo, dos maiores que já vi, embora não lembrava de ter visto algum nas dimensões que passei. Só na TV. Parecia até uma obra inca. Maia, talvez. Mas tinha muitas nuvens negras e uma energia triste: eram as ações de Etromis e seu rei, Soulless.

Dei uma volta pelos arredores do castelo, estudando a melhor entrada. Em Wichwill, o Palácio da Morte, sempre era noite. Decidi que entraria pela masmorra, pois Mamba já não existia mais.

Uma grande porta de metal me separava do lado de dentro de Wichwill. A torre onde estava Jade era muito alta e os Cristais Maias deveriam estar com Soulless. Entrei: as paredes eram muito largas e havia ratos, morcegos e esqueletos por todos os lados. Tudo tão escuro que me obrigou a carregar pelos corredores uma tocha que peguei junto à parede.

Saindo da masmorra, subi uma longa escadaria que me levou até uma ampla sala central. Nela, centenas de teias de aranha decoravam o teto. Próximo à grande janela que mostrava o horizonte triste e sombrio da Planície dos Egos estava, de costas, com sua capa preta, Etromis. Chamei pelo seu nome e ele virou. Tinha grandes olhos negros e seu semblante reunia muita dor, ódio e tristeza.

- Aravex... Estava lhe esperando. Você conseguiu chegar até mim, guerreiro. Acho que é isso que você veio buscar.

Etromis apontou para a Caixa Negra de Mamba, que estava no chão. Eram os três Cristais Maias. Eu, com a espada de gelo já em punho, apenas observava. Etromis abriu os braços e sua capa preta caiu. Pude reparar, por seus trejeitos e seu físico, que era um ótimo guerreiro. Talvez o mais poderoso de todo o reino do mal.

- Sua princesa Jade esta noite já não existirá. Ela será colocada no Cubo do Mal e se transformará em um zumbi. Depois, Soulless colocará em seu ventre um filho, o enviado sem alma que destruirá todo bem e todas as cores do mundo. Mas antes, eu, Etromis, guerreiro negro, o destruirei.

O anjo mal sacou seu tridente e começamos a luta. Etromis era muito forte, eu sentia em seus golpes. Eu sabia que deveria esquivar de suas tentativas: encará-lo frente a frente não seria nada bom. Ele, que suspirava a cada novo ataque, mostrava uma grande performance: pulava e atacava, usando dezenas de golpes diferentes. E foi no primeiro momento em que me distraí que Etromis me acertou com um chute no peito e me fez voar até a grossa parede da sala escura. Tonteei. Não consegui me mover antes que Etromis cravasse seu tridente em minha perna, causando uma dor horrível. Quando olhei-o, ele já estava penetrando seu punhal de fogo em meu ombro esquerdo, que agora sangrava demais. Eu podia sentir o gosto do sangue em minha boca e os cortes eram tão profundos que achei ser meu fim. Etromis se afastou, vestiu sua capa, e ao contrário dos outros demônios, não sorriu. Ele sabia o valor da morte. A morte, eu sei, é a transformação mais profunda e concreta a acontecer com todos. Apenas esperamos nas filas do destino. Mas dentro de mim havia algo que dizia que aquela não era minha hora: a missão não poderia estar finda. Vi Etromis pegar seu machado arcaico, olhou-me e, sem dizer uma palavra, correu em minha direção. Iria me matar. Ainda encontrei energias para virar minha espada de gelo, segurá-la pela lâmina e lançá-la. Etromis, o grande guerreiro negro, o poderoso lutador do mal, caiu morto com minha espada atravessada no grande olho escuro: eu havia acertado o golpe decisivo.

Me arrastei até seu corpo, que sumiu gradativamente. Em seu lugar, quatro poções: duas amarelas, uma laranja e outra vermelha. Consegui arrancar seu tridente da perna, que estava muito machucada, e seu punhal de fogo do ombro esquerdo. Meu sangue jorrava nas paredes e chão da sala e me sentia muito fraco. Tomei de imediato as poções e todas as feridas foram se fechando, como passe de mágica. Eu estava vivo, com minhas esperanças.

Peguei a Caixa Negra de Mamba. A coloquei dentro da bolsa de couro e levantei a cabeça: parte de minha missão estava cumprida. A paz seria reconquistada. Eu agora precisava achar Soulless.

10

ENCONTRANDO O REI

Derrotar Etromis foi um grande feito. Nunca imaginei que o derrubaria: agora parecia fácil encontrar Soulless e vencê-lo também. Mas talvez não fosse...

Segui o corredor após a escada da grande sala e cheguei a uma porta dourada que julguei ser a do rei do preto-e-branco. Empurrei e abri: Soulless estava sentado em seu grande trono negro enquanto Jade permanecia presa na pequena sala na torre superior. Para entrar lá eu deveria pegar a chave da alta torre que estava no coldre do rei.

- Maldito! – disse Soulless, cheio de ódio. – Como conseguiu?

- Com amor, Soulless. E muita fé. – respondi.

Soulless levantou. Tinha longas pernas de pau e uma comprida capa cor de vinho. Uma longa barba branca que me lembrava Papai Noel na terceira dimensão e, na mão, um cetro negro. Em seu cinto, a chave da torre balançava.

- Eu o odeio, Aravex.

- O ódio não existe, rei Soulless. Nós é que o criamos em nossos corações repletos de ânsias e medos. Você roubou as cores e a paz dos reinos sagrados e seqüestrou a princesa Jade para plantar o mal, mas o mal sempre perde.

- Nunca! – gritou. – O mal sobrevive e sempre retorna. O mal é eterno.

- Não, Soulless. O mal retorna sempre em forma de bem se soubermos lidar com ele. E o bem que busco para o mundo é fruto do conhecimento de sua própria necessidade. A paz, o amor e a bondade são necessárias.

- Amor? Bondade? Paz? O que você sabe sobre isto? Quem é você para me falar em como lidar com o que sinto? Eu sou um rei: sou soberano e poderoso.

- Mas seu reino caiu, Soulless. Os mundos precisam de luz, cores e afeto. E eu apenas aplico a sabedoria e a transformo em ação correta. Você perdeu, Soulless.

A piedade que sempre carreguei comigo e a paz que sempre fecundou meu coração deram espaço momentâneo para que eu aplicasse com eficiência minha missão. Saquei minha espada de gelo e cortei as pernas de Soulless. Ele caiu. Não tinha poderes mais: seu reino estava deposto. Privei-o da morte, porque acredito, dentre tantas coisas, que as pessoas precisam e merecem uma segunda chance. Perdão, amor e humildade: este era o tripé em que minha alma se ancorava.

Soulless, até então o poderoso rei do mal, agora estava caído, sem força alguma. Era um velho vencido e arruinado, como toda mentira e ódio são. Peguei a chave da torre em seu coldre: ele não reagiu. Subi as escadas rapidamente, como fazia nas escadarias do Dom Bosco, e abri a porta da prisão das alturas. Jade estava sentada e olhava pela janela.

Fechei a porta atrás de mim, enquanto Jade virava para me olhar. Reconheço este rosto, pensei. Era Mariana. A princesa Jade, de Autun, filha de Miró, era minha colega, a linda Mariana. Eu já sentia o cheiro da terceira dimensão, a dimensão dos relógios. Tudo agora fazia sentido para mim. Jade pulou e correu pra me abraçar e aquele encontro esperado foi selado com um longo e apaixonado beijo. Eu havia conseguido.

11

DEVOLVENDO JADE, AS CORES E A PAZ

Jade possuía duas flores no cabelo. Coisa de princesa, não? Disse-me que estava ansiosa para voltar a Autun e reencontrar sua família. Eu também estava ansioso, afinal, não é todo dia que se dá cores e paz de presente a nações sagradas. E também não é todo dia que a gente faz uma viagem ao lado de uma princesa. Só na van do seu Nélson, com a Mariana. Mas agora o caminho era outro.

Saímos do castelo. Ele ficaria no remoto canto reservado às memórias indesejadas em nosso passado. Caminhamos algum tempo pela Planície dos Egos, até Jade querer parar para o descanso. Neste momento, quando ela deitou seu lindo cabelo em meu colo e eu acariciava sua cabeça, reconheci as flores que trazia consigo. Eram as Robe Fiancé. Quando contei, ela relatou uma visita que recebera de Gusman, o duende, antes de ser raptada pelo exército do mal. Disse que o pequeno amigo estava preocupado: sabia dos rumores na Planície dos Egos para seqüestrá-la e fora alertá-la. Contudo, a princesa não teve tempo de contar para seu pai, o rei Miró, nem ao menos se defender: Etromis a levou no mesmo dia.

Contei a Mariana, digo, Jade, sobre o poder das flores e propus que nós as comêssemos, como forma de voltar mais rápido a Autun. Ela confiou em mim e que aquelas plantas brancas facilitariam a viagem. Então voamos. Percorremos todo caminho de volta, vimos a Ponte dos Mistérios, as Montanhas Gêmeas, o lago da juventude de Yaculta, o Vale do Alento, tudo. Ela segurava em minha mão com seus angelicais dedos que pareciam pétalas. Mariana... Jade... eu era o pagão de duas princesas. Estava tão admirado que, quando dei por mim, estávamos sobrevoando Autun. Fomos chegando, chegando, e pousamos no hall do Palácio de Miró. Ele saiu, com seus guardas.

- Não creio!!! Não creio!!! Jade, minha filha.

Após um longo abraço, Jade nos apresentou. Contamos tudo o que havia se passado e Miró chorou. O rei de Autun enviou um cavaleiro para Slim e outro a Greenwood, os outros dois reinos sagrados, e convocou uma reunião pacífica de emergência no campo de batalha de Ituzain, para o outro dia. O campo de Ituzain foi o local das batalhas mais sangrentas entre os três principados e onde havia a Pedra Eterna, em que ficavam os três Cristais Maias roubados, mas agora, depois de tudo, seria o local para selar a paz. Miró e eu cavalgamos até lá e montamos acampamento, à espera dos reis Andre, de Slim, e Galácticus, de Greenwood, que chegaram no outro dia, junto com Jade e a rainha Icle, sua mãe.

Depois de contar a eles minha aventura e toda a verdade sobre Soulless e seus planos, tirei a Caixa Negra de Mamba da sacola de Ducan. Abri e os três cristais brilharam. Eram, sem dúvida, as pedras mais lindas que eu já havia visto, e olha que de pedras eu entendia. Eu colecionava pedras da sorte na terceira dimensão. Mas aquelas eu não podia levar pra casa: uma pena! Elas tinham de ficar. Caminhei até a Pedra Eterna e pus cada cristal em seu devido lugar, fazendo todas as cores ressurgirem de imediato. Jade ficou mais bela ainda. Arco-íris brotavam do chão. Flores, pássaros, roupas: tudo voltou a ter cor. Muitas pessoas choraram, outras riram, outras gargalharam e pularam e brincaram: o processo estava acontecendo.

Jade se aproximou e me deu um beijo. Neste instante, um Portal dos Seres se abriu, em milhares de cores, sob o grande plátano. Jade chorou e me segurou pelo braço.

- Não vá, meu amor. – falou.

- Minha missão está cumprida. Meu lugar não é aqui. Tenho que voltar e realizar muitas coisas que me esperam.

- Mas, meu amor... aqui você será um rei.

- Eu não preciso ser rei, minha flor. Eu preciso apenas viver.

Entrei no Portal dos Seres. A festa dos reinos ficou pra trás, sobre as lágrimas de Jade. E eu dei um pequeno passo para um guerreiro, mas um grande passo para o moleque Duda.

12

VOLTANDO PRA CASA

Caí em minha cama. A cadeira ainda girava no quarto e ouvi os gritos de dona Helena, minha mãe, me procurando pela casa. Sobre o computador, um cachorro-quente e um copo de refrigerante gelado. Lá fora, a chuva tamboreando na janela.

- Onde você estava, moleque? Não ouviu eu te chamar? Não sabe como eu fico brava quando você some e não me fala nada, ai ai, chega a me dar um troço...

- Calma mãe. Eu estava aqui, dando uma olhada no jogo.

- Olhada no jogo... Olhada no jogo... é só isso que você pensa, menino? Já começou a ler seu livro, Duda?

Meu livro... aquelas palavras me situaram na terceira dimensão. Aqui, pelo menos, as pessoas mais bravas, como diria dona Helena, eram meu pai, minha mãe, a diretora Dalva e o Diabo-loiro. Todo mundo fichinha perto de todos desafios da quarta dimensão em que eu havia passado. Então me dei ao luxo de dormir naquela cama macia até o outro dia, quando o seu Nélson buzinava e buzinava na porta da frente.

Lembro de ter aberto os olhos. Ouvi um movimento ao longe. Meu pai se aproximou, se bem recordo, e me deu um beijo na testa. Minha mãe apareceu e me acariciou a cabeça. Depois, abriu a janela do meu quarto e gritou para o seu Nélson:

- Hoje ele não vai, seu Nélson. O Duda tá com febre: acho que foi o frio de ontem.

Ainda ouvi a van arrancar antes de suspirar aliviado: eu adorava matar aula. Porém, dona Helena, sempre enérgica, depois de servir o almoço, veio me trazer um chá, daqueles chazinhos de mãe, doces, ver como eu estava e cobrar se já tinha começado a ler o Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Era meu tema de casa, enfim, mas ela podia ter um pouco mais de paciência.

- Não, mãe. Tô com dor de cabeça. Vou começar agora à tarde.

Ela saiu ainda me olhando. Deixou o chá sobre o computador, como sempre. E eu, que não conseguia nem pensar em Crystals of the Peace, até achei legal mexer nas páginas do velho Lobato. Era hora de ler, pois estudar é importante e a leitura pode nos levar a lugares muito mágicos também. Eu sabia disso, pois ler é desenvolver a alma. Ler é ter asas e voar. Ler é viajar com os pés no chão e o bumbum no sofá, dizia minha vó Sofia. Faltava agora aplicar a sabedoria: era a ação correta. Lembrei de Aravex.

13

NO SÍTIO DE LOBATO

Agora que eu era grande, que tinha quase onze anos e tinha que terminar meus estudos pra fazer a dona Helena e o seu Joaquim felizes, precisava deixar um pouco meu computador de lado e praticar a leitura. Já havia começado com o Sítio e agora Monteiro Lobato esperava por mim, assim como a diretora Dalva.

Aquele dia estava muito especial: o sol brilhava e dava vida às árvores lá fora. O cheiro dos bolinhos vinha da varanda e ouvi o som das crianças brincando. Estranhamente, aquela manhã o seu Nélson não buzinou. Nem minha mãe abriu a porta do quarto brigando. Que bom, pensei, não haveria aula novamente. Três vezes em uma semana: isto é mesmo um milagre. Obrigado, senhor!

Saí do quarto de pijama, meu bom e surrado pijaminha de ursinhos que já tinha meu cheiro impregnado, e de meias brancas, que por azar o meu, também tinham meu cheiro impregnado. Notei aquele corredor um pouco estranho e não entendi o fato do cavalo e dos cachorros que nunca tinha visto brincarem naquele lugar que, pra mim, era novo também. Algumas galinhas ciscavam o pátio e um pequeno João-de-barro construía seu futuro. De repente, ouvi um grito de vó vindo da cozinha.

- Não vai pra mata, Emília, que a Cuca te pega.

Correndo, meio sem jeito e na velocidade costumeira de uma criança, a pequena boneca de pano dobrou a sala e esbarrou em mim. Caímos.

- Você já acordou, Pedrinho? – disse ela.

Pedrinho não era meu nome, ao menos era o que eu lembrava.

- Quem é você? – perguntei.

- Como quem sou eu? Acorda moleque: tá dormindo. Cadê seu estilingue? Vamos lá pra fora que a tia Anastácia fez bolinho de chuva. Vamos... Corre... corre...

Quando percebi, a menina Emília já havia sumido porta afora. Eu, sem entender nada, parei e pensei:

- Acho que conheço aquela boneca...

Era óbvio que nunca esqueceria o belo rosto da princesa Mariana.

Duda Keiber
Enviado por Duda Keiber em 09/11/2006
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