Os Últimos Dias - Ato II - Sonhos Negros

A jovem elfa acordou sobressaltada, despertando devido ao pesadelo que lhe afligia há quase dois anos, desde que inadvertidamente fora acometida por uma maldição. Aos prantos, sentou-se sobre a cama de palha e tecido élfico e ficou ali por longos instantes, buscando afastar as imagens ruins de sua mente. Sem êxito, ergueu-se, vestindo um leve robe de seda verde e caminhou a passos decididos até a biblioteca.

Sua família, os Aninrod, eram membros conhecidos e relativamente abastados dentro da casta dos Lai'Quessir, ou elfos silvestres, verdes ou das matas, dentre tantas outras denominações que os membros dos demais povos haviam encontrado com o passar dos tempos. Seu avô Amakir, era principalmente conhecido, mas não de forma muito querida pelos demais elfos do Bosque Verde, o último reino élfico do mundo.

Pois Amakir havia abandonado a religião sacra à Falena, a deusa élfica da vida para orar em nome de uma divindade humana, Lumnahakk, senhor da sabedoria e do conhecimento. Com sua morte, aos trezentos e noventa e seis anos, todos os seus velhos tomos foram herdados por sua neta. E Enais'tirc, para o desgosto de seus pais, havia optado seguir os passos de seu avô, tornando-se clériga da sabedoria. Contudo, Enai era jovem demais, e inexperiente demais para saber quando parar. E isto custara sua felicidade desde então.

Ao entrar no aposento toscamente iluminado, Enai assistiu as fracas luzes magicamente criadas para iluminarem os principais tomos se extinguirem. Era um efeito menor, um aspecto quase insignificante comparando-se ao todo da maldição. Estar constantemente imersa em trevas, abandonada e sozinha. Ou quase. Pois apesar de tudo de ruim que aquele seu ato lhe trouxe, um único fruto era para Enai a benção infima que a impedia de sucumbir completamente.

A sprite Kururu dormia em um pequeno cômodo confortável entre os livros, construido com a ajuda da própria Enai dias após ser libertada por ela. A biblioteca era onde Kururu passava boa parte de seu dia, ao lado da companheira elfa. As Sprites, que são uma espécie de fada altamente mágica e aparentemente o único ser vivo imune ao seu toque, eram com quem Enai podia compartilhar um pouco de carinho e atenção naqueles tempos difíceis.

Mas mesmo ela dormia àquela hora tardia, o que era completamente compreensível. Mesmo assim, Enai sabia que não recuperaria o sono nas próximas horas, e então poderia dedicar-se um pouco mais aos seus esforços de conhecer melhor os seus próprios problemas, e quem sabe, encontrar uma cura. Decidira, após meses de pesquisa infrutífera, atentar para alguns detalhes oníricos que lhe haviam passado desapercebidos. Os sonhos eram uma forma de nossas lembranças se comunicarem conosco. Sob esta ótica, os pesadelos que lhe tiravam o sono eram no mínimo um pedido desesperado de ajuda.

Enai sonhava com uma torre negra que tocava os céus, de onde uma fênix em chamas surgia. Logo após, tudo se resumia a mortes, dor e perda, até que ela própria sucumbisse ao mar de desespero que se alastrava consumindo o universo. Buscara nos tratados de seu avô indicações sobre uma torre semelhante, sobre lendas antigas da fênix e guerras antigas. Mas tudo o que conseguia era apenas criar mais dúvidas.

Até que, naquela noite, uma vontade interior lhe levara à um ponto quase sempre ignorado do salão. Dentre papiros antigos, velhos encantamentos e tomos milenares sobre a vida e a história do mundo de Meliny, ela a viu. O livro a mostrava, tal e qual em seus sonhos. Negra, rija, erguendo suas formas volumosas até os céus. Não uma obra gerada por mãos mortais, mas sim um pináculo de rocha lisa e perene. Um presente dos deuses e uma prova de toda sua força. Uma montanha em um reino distante. A Torre de Karnak, marco zero do reino de Deanor.

A felicidade voltou a corar o rosto de Enai, mas a nítida sensação de que alguém mais além de Kururu estava na biblioteca a levou a buscar com os olhos o seu observador oculto. Por um breve instante, a elfa podia jurar que ao seu lado alguém sorria, lendo o mesmo livro, curvado sobre seus ombros. Mas, virando-se, nada encontrou. Resignada, passou a pensar nos detalhes e preparativos para sua viagem até o reino de Deanor ao sul. Aquela sensação ficaria esquecida até muito tempo depois deste dia. Para Enai, aquela estranha sensação não passou de um equívoco, gerado pelo movimento das sombras.

E ela estava certa. Mas de uma forma totalmente equivocada.

Armageddon
Enviado por Armageddon em 13/11/2006
Reeditado em 22/02/2008
Código do texto: T290036